Rev. bras. psicoter. 2022; 24(3):47-58
Teche SP. Da vivência no campo analítico até a formulação da interpretação. Rev. bras. psicoter. 2022;24(3):47-58
Artigo Original
Da vivência no campo analítico até a formulação da interpretação
From the experience in the analytical field to the formulation of interpretation
Desde la experiencia en el campo analítico hasta la formulación de la interpretación
Stefania Pigatto Techea,b,c
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
No encontro de um analista com seu paciente cria-se uma atmosfera de expectativas e sentimentos. Quando o encontro acontece, borbulham sensações. Ambos precisam se organizar, cada qual em seu papel. O analista capacitado a ouvir e vivenciar com o paciente esta nova experiência, o paciente disposto a narrar e a transmitir seu sofrimento e suas expectativas. Surge aí o desafio no encontro analítico. A partir das vivências no campo, como o analista deve formular interpretações que propiciem à mudança psíquica no seu paciente?
O conceito de campo analítico foi nomeado por Madeleine e Willy Baranger em 1961. Estes autores descrevem o campo analítico como o produto do trabalho consciente e inconsciente do analista na relação intersubjetiva com seu paciente, num processo dinâmico e eventualmente criativo1.
O analista deve posicionar-se neste campo analítico seguindo as recomendações do enquadre e adotando uma atitude analítica. A atitude analítica apresenta especificações de acordo com a teoria a ser seguida. Por exemplo, a transferência e a contratransferência já foram entendidas como obstáculo à tarefa analítica quando o objetivo do analista era revelar os conteúdos reprimidos no inconsciente através de interpretações para serem conhecidas pelo consciente de seu analisando7 .
Já em 1952, Klein entende a situação analítica como uma situação total, na qual a transferência é reeditada na relação atual com o analista através do contínuo processo de introjeção e projeção dos objetos do analista e do mundo interno. Nesta época, o foco da interpretação centrou-se na projeção da hostilidade, com isso, deu lugar a transferência negativa no campo transferencial e estreitou a receptividade de outras vivências18.
Atualmente, com o conceito de campo analítico, houve a retomada de ampliar o estudo das vivências emocionais na formulação da interpretação. Assim, a formulação da interpretação pode ocorrer em dois níveis. O primeiro é a comunicação do conteúdo, através da palavra, a partir da teoria psicanalítica. O segundo se desenvolve na metacomunicação, através do modo de como será ajustado para o entendimento do paciente18.
Mas surge aí um questionamento, um ponto de partida: Qual conteúdo eleger entre tantas experiências que ocorrem no campo analítico para uma interpretação que propicie o crescimento do self? Esta pergunta conecta muitos conceitos importantes em psicanálise, que podem ser amplamente estudados. Contudo, neste estudo, pretende-se descrever alguns desses conceitos e apresentar parâmetros que auxiliem o analista em formação na tarefa de formular a interpretação, a partir das vivências no campo analítico com seu paciente.
Dar-se-á destaque a atitude analítica no campo, aos parâmetros para eleger o conteúdo e ao modo de transmitir a interpretação, visando um maior aproveitamento para aquele determinado paciente, respeitando sua subjetividade e o objetivo clínico da psicanálise.
MÉTODO
Foi realizada uma seleção de artigos e capítulos de livros após uma revisão narrativa da literatura que contivessem o tema de como formular uma interpretação psicanalítica incluindo o referencial que a interpretação fosse desenvolvida a partir das vivências no campo analítico. A revisão da literatura partiu de uma busca nas principais bases de pesquisa de artigos, acrescida da indicação de leituras obrigatórias na grade de conteúdos programáticos da formação psicanalítica na Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA).
As palavras-chaves utilizadas foram interpretação psicanalítica [Título] e campo analítico, em português e Psychoanalytic interpretation [Title] and analytical field, em inglês. As bases para a pesquisa de artigos foram o Psychoanalytic Electronic Publishing (PEP) e google scholar, visto que a busca nas bases Pubmed, Lilacs, Scielo e PePSIC não encontrou artigos neste tema.
A seleção dos artigos ocorreu através do resumo naqueles que apresentavam o vértice da elaboração da interpretação incluindo o campo analítico. Foram selecionados um total de 20 referências de interesse no tema, dos quais dois são artigos clássicos fundamentais e nove artigos de autores contemporâneos, além de nove capítulos de livros complementares ao objetivo da revisão.
RESULTADOS
Após o estudo das referências selecionadas, optou-se por dividir os resultados nos seguintes assuntos de interesse que serão desenvolvidos a seguir: o objetivo da psicanálise em termos de melhora clínica; a atitude analítica para a compreensão do campo; parâmetros para formular a interpretação incluindo o conteúdo, o modo e o momento a ser transmitida ao paciente.
1. O objetivo da Psicanálise em termos de melhora clínica
A psicanálise está inserida em muitas áreas do conhecimento com intersecção sobre a mente e o comportamento humano. Dedica-se ao estudo do funcionamento das estruturas do mundo interno do paciente. Devido a complexidade do psiquismo, este pode ser estudado em diferentes vértices que apresentem sugestões ao objetivo da psicanálise. Em resumo, acredita-se hoje, que o objetivo clínico da psicanálise é buscar o alívio do sofrimento emocional e ampliar das capacidades do self, através da expansão do processo associativo simbólico. Ou, pode-se dizer que o objetivo da psicanálise é permitir que o paciente descubra sentidos de maneira criativa e que, nesse processo, se torne mais plenamente vivo16.
Conforme Baranger (1961), citado por Favalli (2016), para que este objetivo seja acalcando, espera-se do analista uma atitude analítica. Esta atitude está inserida na sessão analítica que se estrutura com o setting, com o material expresso através do diálogo e com a fantasia inconsciente por meio do interjogo bipessoal de identificações projetivas e introjetivas1,6. Em complemento a atitude analítica, Ruggero Levy coloca que deve ser mantido o objetivo de compreender derivados do inconsciente da dupla analítica, que permitam o insight e a posterior elaboração9.
O analista deve ser capaz de construir uma história e uma linguagem com a qual possa conversar e que seu paciente possa entender5. A caricatura da psicanálise na busca de causas para os problemas psíquicos talvez tenha surgido na confusa busca pela compreensão de sentidos inconscientes.
2. A atitude analítica para a compreensão do campo
Atitude analítica é a conduta necessária do analista que propicia um clima de regressão, no qual as experiências emocionais primitivas possam ser expressas com segurança e traduzidas em palavras. Essa atitude proporciona a vivência da fantasia vigente no campo, a qual pode desenvolver um clima emocional, imagens alucinatórias, e até sensações corporais.
A atitude do analista é responsável por organizar o enquadre que inclui os aspectos práticos do setting: o espaço físico, o horário, a duração, a frequência das sessões, as combinações de férias e feriados que delimitam o espaço-tempo. "É importante que haja um ambiente estável e regular, em que os encontros e as separações ocorram num ritmo conhecido e previsível"9.
Além disso, o aspecto abstrato a ser elaborado é o estado mental do analista. Este elemento pode estruturar e desestruturar o setting, assim, o analista e suas funções mentais são determinantes dos acontecimentos do campo bipessoal9. Para que essas funções sejam exercidas de maneira satisfatória, Bion destaca a função alfa e da rêverie do analista, descrevendo a importância e a centralidade da receptividade do analista às identificações projetivas do paciente, sua continência e transformação em elementos possíveis de serem pensados3.
Outro elemento essencial na criação da atitude analítica é a capacidade negativa descrita por Bion como a capacidade de suportar o não saber, eliminando a memória e o desejo para a mente estar aberta a um novo conhecimento. Implica em tolerar a frustração e a incerteza existentes no estado de desconhecimento3. Meltzer nomeou esta atitude como a tolerância ao mistério. Para ele, a atitude analítica implica um compromisso com o paciente em levar adiante o método até o limite da tolerância do próprio sofrimento mental13.
Na sequência do estudo da atitude analítica, depara-se com o importante conceito de escuta analítica. Partindo de um cenário, no qual o paciente comunica seu mundo interno ao analista, este capta e transmite uma ampliação da compreensão simbólica ao mesmo. Neste processo, a escuta analítica é a base sólida para a construção de um campo fértil11. Freud fez a primeira recomendação sobre a escuta analítica. Para Freud, ela deve ocorrer em atenção flutuante, que significa uma escuta aberta, disponível, sem preconceitos, sem a busca sistemática de confirmações para algum projeto de interesse teórico ou de expectativas próprias, desfocada da linguagem semântica7 .
A escuta analítica vai além do relato verbal do paciente. Deve-se escutar o tom de sua voz, o ritmo de sua elocução, observar suas atitudes, seus movimentos, suas posturas e expressões de seu rosto. A escuta do analista consiste em descentralizar o relato do paciente, desmantelar esse relato para encontrar um novo centro ou um novo foco que, neste momento, é o inconsciente. Pode-se elencar três elementos neste jogo: o relato explícito do paciente; a fantasia inconsciente do campo que inclui a interação da transferência e da contratransferência; e o que corresponde ao inconsciente do analisando e deve ser interpretado2.
Há também que se falar da regra de abstinência. A regra de abstinência seria o coração da atitude analítica, quando o analista não satisfaz as demandas do paciente, mas sim reponde a partir do enquadre analítico. Esta atitude ocorre não apenas para evitar a satisfação imediata, mas porque não pode satisfazer o que é pedido pelo inconsciente.
Destacando os conceitos de continência e de holding, descritos por Bion e Winnicott respectivamente, Ruggero Levy sugere que o analista deve oferecer um espaço continente em que as emoções possam ser intensificadas e circulem em associação livre. Contrário a isso, angústias primitivas, como a de "um cair sem fim", dificultam o paciente a expressar suas emoções e então, ele agarra-se à lógica, à racionalidade, ao processo secundário e assim, perdemos o acesso ao inconsciente9.
Por fim, a atitude analítica compreende o campo analítico tendo uma ambiguidade essencial, no qual todo acontecimento é, ao mesmo tempo, outra coisa. Seria como um fenômeno de espaço transicional e remete os acontecimentos do campo às qualidades do objeto transicional: ele é e não é, ao mesmo tempo, o objeto. Neste ambiente, a estrutura espaço/tempo adquire múltiplas dimensões: o espaço da sala é o mundo externo e interno da dupla, o tempo é o presente, o passado e o futuro, simultaneamente9.
Ou mesmo, como explica Ungar em 2014: "O que é essencial da atitude analítica é a disponibilidade, a receptividade, a disposição à observação, a tolerância tanto ao mistério quanto ao desconhecimento e a inclinação a tratar de refletir antes de agir"18.
Ao longo da sessão, já com uma atitude analítica consolidada, o ponto de urgência é o momento em que algo emerge do inconsciente do analisando. É percebido com uma mudança de atitude, seja quando surge um sentimento de angústia, silêncio, verborragia, tensão corporal ou a repetição de um material. Seria o momento em que o diálogo do analisando e a fantasia do campo, podem confluir gerando um insight emocional e de compreensão no analista, podendo este formular uma interpretação2.
Meltzer alerta para que a busca do ponto de urgência não seja apenas teórica e onisciente e recomenda que seja mais intuitiva. Para isso, propõe uma escuta que inclua três níveis de comunicação: o musical, sendo a emoção da voz; o léxico através da linguagem; e o poético que utiliza metáforas para descrever o mundo interno14. Esta sugestão nem sempre encaixa em pacientes com déficit na capacidade simbólica. Neles, a intolerância a frustração apresenta-se constantemente no campo analítico e se amplia para a intolerância à realidade, na sessão, o aparelho mental do analista. Como consequência, a capacidade de pensar é intensamente atacada.
Nesses casos, o analista precisa ter uma atitude de amor pela verdade do paciente, toda a verdade que o analista puder fornecer na relação analítica. Para isso, é necessário que o analista se torne a verdade emocional acerca da realidade inaceitável do paciente. O analista precisa sentir a dor do paciente, tolerá-la em sua mente, em seu corpo e em sua vida. Se a atitude analítica proporcionar uma relação do aqui agora com a qualidade de uma experiência emocional verdadeira, então o paciente sentirá que pode enfrentar o sofrimento de sua dor emocional. O analista terá sucesso, tornando-se uma experiência viva, não apenas exercendo uma compreensão teórica12.
Parâmetros para formular a interpretação
a. Eleger o conteúdo a ser transmitido
John Klauber, em 1979, descreve o processo de formulação da interpretação bem-sucedida quando o terapeuta seleciona um tema unificador a partir da combinação de experiências do paciente com as suas. As primeiras são captadas pela empatia do analista que é calibrada por seus estudos e análise pessoal. Assim, o primeiro ato da interpretação, seria o ato criativo que une a concepção do analista como reação a algo que o paciente disse ou fez8.
Freud descreveu um aspecto da intersubjetividade quando falava de comunicação de inconsciente a inconsciente. O terapeuta direcionava seu inconsciente como órgão receptor, para o inconsciente emissor do paciente, seria como o receptor do telefone em relação ao microfone. O inconsciente do analista estaria capacitado a reconstruir o inconsciente do paciente, partindo dos derivados inconscientes que lhe foram comunicados7.
Madeleine Baranger em 1992, enunciou que entre o momento de escuta do paciente e a devolução em formato de interpretação, ocorre a busca do ponto de urgência. Tal ponto foi entendido como o sentimento de angústia do analisando ou o momento da sessão em que algo está por emergir do inconsciente. Este conceito evoluiu com Madeleine Baranger que considera o ponto de urgência o momento do campo em que o diálogo e a fantasia inconsciente confluem, provocando um insight. Neste momento, o analista sente e pensa que pode e deve formular uma interpretação2.
A interpretação tende a colocar em palavras a fantasia inconsciente que subtende e estrutura a situação atual do campo analítico. Neste processo, pode ocorrer um ponto de inflexão que assinala a abertura do acesso a novos aspectos da história. O ponto de inflexão é quando o analista observa uma mudança de rumo naquilo que vinha se desenvolvendo de forma previsível e ocorre uma mudança súbita com uma reestruturação da fantasia básica subjacente no campo2.
Anteriormente, antes de surgir a teoria do campo analítico, o foco na investigação era o ambiente intrapsíquico, a revelação de conteúdos reprimidos. Hoje, desloca-se para o relacional, os impulsos, ansiedades e defesas vividas por cada membro da dupla serão compreendidos como elementos da experiência emocional compartilhada6.
A escuta é emoldurada e orientada pela teoria analítica, previamente estudada. O esquema referencial é a quintessência condensada e elaborada pessoalmente por cada analista de suas adesões teóricas, de sua experiência clínica, de sua análise pessoal, de suas identificações com seu analista e seus supervisores e até mesmo com as modas teóricas que agitam o movimento psicanalítico2.
O intérprete deve ter fácil acesso às origens a serem interpretadas, portanto deve estar familiarizado com as fontes das fantasias do paciente: o sonho, a infância, o pré-consciente e os estados psíquicos de sofrimento transmitidos pelo humor. Trata-se da metapsicologia, da teoria das pulsões, da teoria psicossexual, da teoria da repressão, do simbolismo, do afeto e da representação5.
As primeiras intervenções do analista, quase sempre são não-interpretativas, têm o objetivo de avaliar as direções possíveis para onde orientar a busca do ponto de urgência. Portanto, nem tudo que o analista diz é interpretação. Às vezes, são intervenções verbais destinadas a facilitar a comunicação do paciente e a manifestar a presença da escuta do analista. Além disso, nem toda a compreensão é comunicada ao paciente, somente quando o analista pensa haver entendido o ponto de urgência e elaborou o modo de transmiti-lo a ser compreendido pelo paciente2.
Por outro lado, o conceito de fato clínico psicanalítico é a construção realizada pela dupla analistaanalisando no campo, a partir do relacionamento que se estabelece pela comunicação de fatos (sonhos, estado afetivo, de conduta, experiência emocional, pela técnica e teoria) e que permitem novos significados a eles, refletindo a fantasia inconsciente do analisando naquele momento da análise19.
Dentro de múltiplos conteúdos e interpretações possíveis e verossímeis em um sonho, por exemplo, opta-se por aquele que corresponda ao contexto vivido do paciente, de um lado, e ao momento atual do processo, de outro2.
b. Eleger o modo a ser transmitida a interpretação
O analista deve ser opaco para o analisando e refletir o que o paciente comunicou, tal como um espelho, mostrar apenas o que lhe é mostrado. Caso o analista apresente o inconsciente a descoberto, ou seja, dê uma sugestão oriunda apenas de sua própria experiência, sem levar em conta o que o paciente está transmitindo no aqui e agora, haverá uma falha técnica, que possivelmente tornará o paciente incapaz de superar suas resistências mais profundas. Porém, Freud sempre ressaltou o trabalho do analista em codificar, portanto, como participante do processo dinâmico7.
O espelho sendo um objeto inanimado, pode ter passado a ideia de uma atitude passiva, apenas de observador tentando não influenciar no processo. Assim, surgiu talvez o conceito de neutralidade analítica, nunca mencionado por Freud. Sabe-se que a presença do observador não só produz efeitos no campo, como este também afeta o sujeito da observação17,18.
Hoje, a participação do analista compreende a experiência emocional vivida no campo. A interpretação deve incluir a preocupação de a comunicação ser reconhecida. Uma grande parte da comunicação que se dá do paciente para o analista não é verbalizada. A interpretação é dada a pessoa total, enquanto o material para a interpretação derivou de uma parte da pessoa total20.
O discurso verbal continua sendo o principal meio de comunicação entre analista e paciente, mas as ocorrências no campo ultrapassam a expressão pela palavra. A observação está no gesto sutil, na entonação da voz, na intuição sentida, nas reações primitivas, em que o analista é guiado pela lógica das emoções. O analista precisa ser capaz de verbalizar uma afirmação de seus sentidos, suas intuições e suas reações primitivas ao que o paciente diz. Há uma tensão oscilatória entre as individualidades de cada um. As reações primitivas do analista, após o que o paciente disse, serão um indicador decisivo para a apreensão da experiência emocional compartilhada6.
O analista deve preocupar-se com a figurabilidade da interpretação, ou seja, com o fato de que suas palavras possam evocar representações de coisas e afetos reais que estão conectados com a vivência do paciente2. Deve também realizar a codificação em fantasmas das expressões pulsionais e, em seguida, traduzilas em representações verbais. O analista deve ter facilidade de entrar nos personagens diferentes, sem perder o próprio equilíbrio de identidade6.
O conceito de ação interpretativa é a comunicação que o analista faz ao paciente de um aspecto da transferência-contratransferência, por intermédio de uma ação que não a simbolização verbal pela palavra. Ela ocorre através de uma expressão facial, um gesto, uma atitude, uma risada e até uma imagem15.
Em pacientes com falhas na simbolização, a interpretação só é pensável com a desconstrução dos elementos manifestos entre falsos enlaces que estabilizam os sintomas. Para esses casos, o método da interpretação consiste no estabelecimento da relação termo a termo com caráter hipotético. A partir de indícios, sinais, rastros temos um registro e assim é possível uma classificação de dados, uma montagem de hipótese e uma interpretação. O conglomerado de signos de percepção remanescentes das vivências constitui o embrião de toda a simbolização possível. É no movimento destes restos simbolizáveis buscando uma nova dimensão que dá lugar a novos modos de funcionamento psíquico4.
Na formulação da interpretação, o modelo estético está ancorado na possibilidade de observar e descrever. De acordo com Ungar, o enfoque descritivo em lugar do explicativo comunica uma atitude de observação e de reflexão. Além disso, metacomunica a impossibilidade essencial de saber tudo, no abismo entre a beleza visível e a profundidade desconhecida e misteriosa18.
c. Eleger quando a interpretação será transmitida
Uma rápida observação sobre o momento da interpretação, nomeado timing, é guiado pelas convergências no campo e pela empatia do analista que adquire a sensibilidade para decidir se o paciente está com a capacidade emocional de receber aquele conteúdo, naquele momento específico, para que seja efetivamente recebido e aproveitado2,18.
A interpretação conseguirá alcançar o paciente quando o analista tiver verdadeiramente sentido a turbulência emocional em sua mente, antes de transmitir a interpretação. É preciso aceitar a invasão e a ruptura que o paciente precisa provocar no setting e na mente do analista. Assim ocorrendo, a neutralidade, a abstinência e a comunicação verbal devem esperar até que um aparelho mental básico para o processo de pensar tenha se desenvolvido na mente do paciente12.
O momento da interpretação também é guiado pela atitude e experiência emocional construída durante o processo analítico. No início ocorrem experimentações e com a resposta emocional do paciente e observações em sua mudança psíquica, a intuição do analista vai sendo alimentada e guia, junto ao ponto de urgência o momento da nova interpretação.
DISCUSSÃO
A partir desta revisão compreende-se que a atitude analítica é fundamental para que o processo de formulação da interpretação esteja coerente e alcance os objetivos clínicos da psicanálise. A renúncia ao uso de interpretações que destaquem a causa dos fenômenos, utilizada anteriormente na teoria do campo analítico, permite intervenções que visam expandir a capacidade de pensar e proporcionam uma nova experiência emocional.
A atitude do analista é fundamental na construção do setting. Para que ela permaneça viva e produtiva destacam-se as capacidades de função alfa e de rêverie, a capacidade negativa de suportar o não saber e tolerar o mistério e a escuta analítica de ambiguidade essencial.
A escuta é orientada pela teoria analítica, pela análise pessoal, pela experiência clínica e pelas identificações com os supervisores e o próprio analista. Além disso, o entendimento da linguagem específica de cada paciente, através dos sonhos, da infância, do pré-consciente e dos estados psíquicos de sofrimento fornecem a individualidade e a especificidade de cada dupla analítica.
Considerando a atitude analítica na criação do espaço e na escuta analítica como o primeiro momento do processo, o segundo momento ocorre pela eficácia transformativa da interpretação, a qual cria uma oportunidade de vivenciar fantasias num espaço-tempo livre de censura e de constrangimentos, liberando tensões e interrupções na psique.
Observa-se ainda, o valor da interpretação na reparação de objetos internos, na introjeção de boas funções parentais, na preservação da criatividade e do vínculo e na vivência de novas experiências transformadoras.
CONCLUSÃO
Seguindo os parâmetros destacados no texto sobre o processo de eleger a formulação da interpretação, sintetiza-se que este processo inicia com a atitude analítica, na qual a postura organizadora do setting, incluindo a continência e a capacidade negativa são fundamentais. A sequência dele prossegue com a escuta analítica que ao mesmo tempo flutua a atenção com os significados ambíguos e atenta intuitivamente para o ponto de urgência.
O ponto de urgência que surge de uma vivência emocional incompreensível, é desenvolvido pelo trabalho analítico de pensar e sentir, ancorado na teoria psicanalítica. Com isso, cria-se um novo significado condizente com a fantasia inconsciente vivenciada pela dupla. Este novo significado é transmitido por intervenções verbais e não verbais e vai tecendo, progressivamente a nova rede simbólica do paciente.
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aHospital de Clinicas de Porto Alegre, Serviço de Psiquiatria - Porto Alegre/RS - Brasil
bSociedade Psicanalíticade Porto Alegre, Instituto da SPPA - Porto Alegre/RS - Brasil
cUniversidade Federal do Rio Grande do Sul,Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento - Porto Alegre/RS - Brasil
Autor correspondente
Stefania Pigatto Teche
steche@hcpa.edu.br / E-mail alternativo: stepigatto@gmail.com
Submetido em: 16/06/2022
Aceito em: 12/12/2022
Contribuições: Stefania Pigatto Teche - Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição
Agradecimentos: Agradecimento especial ao Instituto da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, ao Centro de Estudos Luís Guedes e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituições que oportunizam a formação de recursos humanos e conhecimento.
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