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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):319-323



Seguimento e reflexoes finais sobre o caso e seu tratamento

Reflexoes finais sobre o caso e seu tratamento

Final reflexions on the case and its treatment

Olga Garcia Falceto*

 

 

Quando este caso chegou à equipe, ele causou-me, em primeiro lugar, um grande susto. Nunca me deparara diretamente com uma situaçao de agressao tao grave de um filho à sua mae. Creio que toda a equipe reagiu assim. Tínhamos a sensaçao de nao possuirmos os recursos suficientes para a ajuda necessária. Felizmente, uma corajosa jovem psiquiatra assumiu o caso com muita sensibilidade e empenho, respondendo ao apelo da família de que cuidasse o filho. Ao longo da avaliaçao, a equipe dividiu-se: alguns julgaram que nao teriam recursos para contribuir num caso de violência intrafamiliar tao grave e outros pensaram que poderiam ajudar, sentindo-se também desafiados... Foi feita notificaçao à Promotoria de Justiça e solicitada sua colaboraçao no encaminhamento do caso. Todas as açoes sugeridas foram acatadas até que a mae decidiu retirar a caso, o que foi aceito pelo Juiz.

Eu, pessoalmente, supus que, para desencadear-se tal violência, deviam haver simultaneamente uma fragilidade biológica pessoal importante e uma situaçao familiar e ambiental facilitadora. Na época, nao sabíamos que Raul usara álcool e crack. Estas ideias motivaram-me a explorar os recursos positivos que essa família deveria ter, já que se mostravam muito empenhados e competentes na busca de ajuda para o filho. Apesar de, como já disse, estar assustada.

Assumi como supervisora do caso num segundo momento, quando já se identificara a grave lesao neurológica frontal que, associada ao uso de álcool e crack, explicava a agressividade e a perda de controle. Ainda nao se compreendia a dinâmica familiar facilitadora. No meu primeiro contato com a família, novamente me assustei ao ver a aparente dureza do olhar de Raul. Mas isso me desafiou a perseverar na busca de entender e ajudar.

Fui orientada por minha crença básica de que as pessoas nao nascem nem boas nem ruins, mas que se constroem na convivência (mesmo quando têm fragilidades genéticas), e que as famílias sao muito poderosas, influenciando para o bem e para o mal. Acredito também que uma boa rede social facilita muito a saúde.

Já sabia da necessidade de trabalhar multissistemicamente em casos de violência e abuso e drogas, envolvendo recursos da saúde, educaçao, trabalho e aspectos legais1,2. Este caso permitiu-me testar e validar todas essas convicçoes.

Devagar, fomos descobrindo a dificuldade de duas geraçoes de homens com abuso de álcool em ambos os lados da família, com esposas em relaçoes de submissao que nao puderam ajudar os parceiros em suas doenças. Identificamos uma grave disfunçao conjugal que prejudicava a funçao parental pela falta de parceria e eficiência na resoluçao de problemas e colocaçao de regras e limites. Apareceram problemas transgeracionais graves entre genro e sogra e entre nora e sogra, com uma única intercorrência de quase agressao durante o tratamento. Aliás, se pudesse refazer a sessao de psicoterapia familiar que antecedeu esse evento, enfatizaria mais a frequência com que a equipe de saúde nao consegue evitar recaídas e/ou ajudar na resoluçao do abuso de substâncias, porque aparentemente deixei a mae de Pedro muito irritada ao apontar que seu marido morrera de cirrose alcoólica e que Marta queria evitar que isso acontecesse com Pedro. Pensei que seria uma forma de motivar a sogra a colaborar com a nora, mas desencadeou-se uma torrente de acusaçoes mútuas, (e possivelmente autoacusaçoes) que quase resultaram em agressao no corredor do hospital.

Afora essa situaçao, o trabalho foi muito recompensador porque paulatinamente fomos percebendo mudanças significativas, em especial em Raul e também em seus pais nos cuidados dos filhos. O processo com Raul - na busca de ajudá-lo a assumir a responsabilidade por seus atos e pelos danos causados, culminando com o pedido de perdao à mae - foi emocionante e com evidências de legítimo arrependimento.

Raul parece ter sido uma criança superprotegida que nao recebia limites claros: nascera de uma gravidez adolescente, e os pais foram morar com a família paterna; era o primeiro neto de uma família que superprotegia os homens. Seus comportamentos agressivos sempre foram minimizados. Pedro parece ainda estar mais "casado" com a própria mae do que com a mulher. As duas têm um conflito de toda a vida, assim como o Pedro com sua sogra, que parece nao ter vida longe dos filhos. Pedro é o herói e o escravo de suas relaçoes nesta história, assim como Raul. A mesma superproteçao que impediu os pais de relatar a real história à Justiça, salvou Raul de ir para a FASE e o colocou dentro de um serviço de saúde que cuidou dele e de sua família, desafiando-os e ajudando-os a ir além de seus padroes de funcionamento habituais. Porém, se nao houvesse essa atençao do serviço de saúde, Raul provavelmente entraria num círculo vicioso de piora comportamental e acabaria sendo mais um problema, entre outros tantos que o sistema de Justiça tenta inutilmente resolver.

Desde o início de nosso trabalho com a família, adotamos uma abordagem de tratamento multissistêmica: oferecemos psicoterapia individual para Raul e psicoterapia familiar, com os respectivos terapeutas trabalhando juntos e separados, dependendo da necessidade. A supervisao acontecia em conjunto e sempre contava com sessoes ao vivo com a família, se necessário. As discussoes de caso, no início, eram tao frequentes que os outros alunos se queixavam, com alguma razao, de nao receberem a mesma atençao.

Outros psiquiatras estiveram envolvidos no tratamento mais adiante, com terapia individual para Cássio e substituindo os colegas quando estes mudaram de funçao dentro da instituiçao em janeiro de 2009. Na época, a terapeuta familiar tinha disponibilidade para continuar tratando Marta individualmente, já que esta se vinculara muito a ela. Nas demais posiçoes, houve substituiçao. Aquele verao foi muito complicado para a família que teve que contar com o lado materno para acolher pai e filho no litoral, sendo o ambiente regado a álcool. Foi também complicado para a equipe que estava em fluxo e para a supervisora que adoeceu. Apesar de tudo, o tratamento nao se interrompeu e nao houve recaída. O ano de 2009 continuou complicado, houve mais doenças na equipe, aconteceu o surto de gripe A que quase parou o hospital. Nesse período, houve a recaída de Raul com risco de suicídio, e decidimos aproveitar para buscar vinculá-lo ao serviço de saúde da organizaçao na qual o pai trabalha, inclusive fazendo visita ao hospital e criando uma rede de colaboraçao entre as duas equipes.

Nesse ínterim, conseguimos (colocando isso como condiçao indispensável para manter o tratamento) que o pai aceitasse tratar seu problema com o álcool. Este evoluiu bem por curto período. No final do ano, pai e filho desistiram dos respectivos tratamentos psicoterápicos. Porém, Raul e seus pais sabiam que todos precisavam e que Raul nao poderia ficar sem medicaçao; sabiam que, devido a Raul ter atingido a maioridade, o tratamento nao poderia mais ser realizado em nosso serviço. Raul continuou o cuidado com a medicaçao no serviço de saúde da corporaçao do pai. Tentamos encaminhar o casal para terapia, mas eles nao a procuraram. Marta manteve seu trabalho pessoal.

Creio que o trabalho continuado com Marta propiciou grande estabilidade para ela e, em consequência, para a família. A frequência das consultas diminuiu muito, mas Marta ainda conta com sua terapeuta para qualquer eventualidade.

Na entrevista de seguimento, Raul declarou que a psicoterapia do período inicial ajudou-o a mudar suas ideias. Esta é uma declaraçao importante. Antes Raul nao admitira que a psicoterapia ajudara. Também disse que a maior ajuda foi separá-lo do grupo com quem convivia, o que vem ao encontro do que se sabe sobre a efetividade do tratamento com transtorno de conduta e abuso de substâncias.

Creio que a dificuldade maior que enfrentamos foi em relaçao a ajudar Pedro a interromper seu uso abusivo de álcool. O uso diminuiu, mas de forma ainda insatisfatória para a esposa e filhos. Nao conseguimos mantê-lo em tratamento e nao conseguimos encaminhar o casal para terapia conjunta. É possível que, se Marta se sentisse suficientemente forte para acreditar que poderia se separar, o risco da perda seria estímulo para Pedro tratar-se. Mas tudo isso sao hipóteses. Também nao conseguimos que a mae de Pedro retornasse às consultas.

O certo é que mais de três anos após o início do tratamento esta família voltou ao seu funcionamento pré-evento (conforme o seguimento incluído no início deste artigo), e Raul está estudando, trabalhando e namorando. É um caso bem sucedido, apesar do pessimismo inicial que alguns tinham.

Este nao é um caso modelar de tratamento. Tivemos muitas dificuldades, mas esta é a prova de que, se pudéssemos atender com tanto afeto, cuidado e competência todos os casos de violência, poderíamos ter resultados bem melhores. e possivelmente esta seria reduzida na sociedade.

Esta era minha agenda secreta: se conseguíssemos ajudar neste caso extremo, demonstraríamos que a violência é um ato humano que se explica com referenciais humanos e que deve ser tratada com humanidade. Isso, na adolescência, inclui principalmente a colocaçao de limites claros. Demonstraríamos também que há esperança no fim do túnel para a sociedade.

Uma última palavra sobre a relaçao da equipe: mesmo com todas as divergências, nunca deixamos de ser apoiados pelo Serviço de Psiquiatria do hospital universitário e conseguimos manter um alto grau de confiança e parceria entre os que estavam diretamente envolvidos e outros colegas colaborando em vários momentos. Só com alta coesao e amizade na equipe é possível este tipo de trabalho.

Esta ediçao da Revista Brasileira de Psicoterapia, que fui convidada a coeditar, é uma grande oportunidade de discutir o tema da violência sob várias perspectivas, e foi feita com todos os cuidados éticos: todos os membros da família sabem e permitiram a publicaçao do caso desde que resguardadas suas identidades.

Estudar esse tema é uma iniciativa necessária já que o abuso de álcool e drogas, assim como a violência, tem características endêmicas e prevalência altíssima. Pior, nós das equipes de saúde nao nos sentimos preparados para enfrentar seus desafios. No nosso caso, quando nos demos conta de que o desafio era passar de uma posiçao de impotência para outra, de utilizarmos os recursos que já tínhamos, a ênfase passou a ser nao mudar a família, mas colocar à disposiçao dela os recursos da equipe. Assim, pudemos colher os resultados que foram plantados ao longo de dois anos.

Esta ediçao da revista, que inclui uma discussao verdadeiramente transdisciplinar do caso, torna-se uma referência para os que vao lidar com situaçoes semelhantes. Estao incluídos desde os aspectos biológicos, relacionais, psicológicos, éticos, legais e sociológicos, abordando o paciente, a família, a equipe e a rede social.

Cabe aqui uma nota em resposta ao artigo de Douglas Bernstein que afirma estarmos assumindo um risco indevido ao expormos mae e irmao a um possível ataque no futuro, tendo em vista a potencial periculosidade de Raul. É importante salientar que a bibliografia consultada sobre matricídio indica que é rara a reincidência de tais tentativas. Além disso, todos os cuidados legais foram tomados, e foi a família quem decidiu terminar o processo legal. Durante a fase aguda do tratamento, quando nao se sabia ainda o grau de periculosidade de Raul, este estava sempre sob supervisao e dormia em quarto trancado e separado da casa. E, por ultimo, tanto Raul quanto sua família e seu atual psiquiatra foram bem instruídos sobre os riscos em caso de interrupçao da medicaçao. Além disso, a mae, em particular, está muito alerta e tem acesso imediato à sua psiquiatra e à equipe do hospital universitário.

Sentimos falta, no artigo do colega, de uma reflexao sobre o fracasso, nos Estados Unidos, da abordagem predominantemente punitiva da violência. Este país apresenta o maior número relativo de adolescentes encarcerados (em sua maioria, negros) e grande dificuldade de promover sua reinserçao social quando a pena é concluída. Por outro lado, foi também nos Estados Unidos que Henggeler e colaboradores1,2 desenvolveram e testaram as intervençoes multissistêmicas na violência juvenil, com resultados promissores.

Cremos estar cumprindo um dever social publicando e compartilhando este caso com os leitores, colaborando para o conhecimento na área da violência intrafamiliar.


REFERENCIAS

1. Brown TL, Swenson CC, Cunningham PB, Henggeler SW, Schoenwald SK, Rowland MD. Multisystemic treatment of violent and chronic juvenile offenders: bridging the gap between research and practice. Adm Policy Ment Health. 1997 Nov;25(2):221-38.

2. Henggeler SW, Melton GB, Brondino MJ, Scherer DG, Hanley JH. Multisystemic therapy with violent and chronic juvenile offenders and their families: the role of treatment fidelity in successful dissemination. J Consult Clin Psychol. 1997 Oct;65(5):821-33.










* Doutora em Medicina, Psiquiatra da Infância e Adolescência e Terapeuta de famílias e casais; Professora e Chefe do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade do Rio Grande do Sul. Professora e coordenadora de pesquisa do Instituto da Família de Porto Alegre.

 

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