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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):284-296



Comunicaçoes Teórico-clínicas

O adolescente autor de ato infracional: aspectos jurídicos

The teenager author of offense: legal aspects

Maria Regina Fay de Azambuja*

Resumo

Desde séculos passados, a violência praticada por crianças e adolescentes desperta a atençao das sociedades motivando acalorados debates que se refletem na legislaçao. No Brasil, com a Constituiçao Federal de 1988, sao observadas significativas alteraçoes no tratamento legal dispensado à criança e ao adolescente, envolvendo, inclusive, o procedimento a ser aplicado àqueles que praticam ato infracional. A partir da revisao de aspectos históricos da legislaçao brasileira, a autora apresenta as previsoes contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente voltadas ao adolescente que pratica ato infracional. Por fim, tece comentários ao caso clínico à luz das previsoes legais.

Descritores: sistema de justiça; violência; legislaçao.

Abstract

Violence carried out by children and adolescents has always called the attention of societies, leading to heated debates that are reflected in the legislation. In Brazil, since the 1988 Federal Constitution, significant changes concerning the legal treatment of children and adolescents have been observed. These changes even entail the procedures to be applied for those who practise the infraction. From the revision of historical aspects of the Brazilian legislation, the author presents the existing predictions in the the Statute of the Child and Adolescent aimed at adolescents who commit offense. Finally, the author comments on the clinical case in the light of legal previsions.

Keywords: justice administration system; violence; legislation.

 

 

"Aquellos que no pueden recordar su pasado
están condenados a repetirlo".

George Santayana


INTRODUÇAO

A violência praticada por crianças e adolescentes, desde muito, desperta a atençao de segmentos da sociedade de vários países. Notícia publicada no Jornal Correio do Povo, ediçao de 1910, intitulada Criminalidade Infantil, referia o aumento no número de atos infracionais praticados por menores na Itália, França e Alemanha, enquanto que, na Inglaterra e nos Estados Unidos, as notícias apontavam que "o mal estava sendo muito atenuado". Com relaçao à Itália, informava que, em 1890, os registros chegaram a 30.108 ocorrências; em 1900, 42.684 e, em 1905, 67.944. Na França, em 1880, foram registrados 23.000 casos, e, em 1905, o número foi elevado para 31.000. Na Alemanha, em 1882, foram condenados 30.000, ao passo que, em 1906, 55.000 menores. Por outro lado, os ingleses atribuíam a diminuiçao de seus índices à lei sobre a infância, promulgada pelo governo liberal. Já os americanos, segundo a mesma matéria jornalística, "orgulham-se de ter dado ao Velho Mundo o exemplo de uma instituiçao que é e será modelo de todas as reformas a realizar: os Tribunais para Menores".

Nos dias atuais, o exame de um caso clínico envolvendo ato infracional praticado por adolescente recomenda um breve resgate da legislaçao brasileira que antecedeu o Estatuto da Criança e do Adolescente, o que permite acompanhar a evoluçao e conhecer fragmentos de nossa história legislativa.

O tratamento legislativo dispensado à criança e ao adolescente sofreu profundas alteraçoes a partir da Constituiçao Federal de 1988. A mudança tem origem em tratados internacionais que iniciaram, em 1924, com a Declaraçao de Genebra, culminando com a Convençao das Naçoes Unidas sobre os Direitos da Criança, da qual nosso país é firmatário, e que conferiu aos menores de dezoito anos a condiçao de sujeito de direitos e nao mais sujeito de necessidades como vinham sendo considerados pela legislaçao. A relevância da mencionada Convençao, firmada pelos países integrantes da ONU, com exceçao dos Estados Unidos e Somália, vem expressa nas palavras de Bruñol1,

A Convençao representa uma oportunidade, certamente privilegiada, para desenvolver um novo esquema de compreensao da relaçao da criança com o Estado e com as políticas sociais, e um desafio permanente para se conseguir uma verdadeira inserçao das crianças e seus interesses nas estruturas e procedimentos dos assuntos públicos.


O presente artigo examina, ainda que de forma breve, aspectos da legislaçao brasileira referentes ao ato infracional praticado pela criança e pelo adolescente, do Código de Menores de 1927 até os dias atuais, com o objetivo de embasar as consideraçoes que serao traçadas sobre o caso ora em estudo.

Aspectos históricos da legislaçao brasileira

O Direito do Menor, como foi denominado, somente no final do século XIX é que passa a ser reconhecido no âmbito internacional, com a instalaçao, no Estado Americano de Illinois, do Primeiro Tribunal de Menores do mundo, iniciativa que veio a influenciar a adoçao de medidas semelhantes na Inglaterra (1905), Alemanha (1908), Portugal e Hungria (1911), França (1912), Argentina (1921), Japao (1922), Brasil (1923), Espanha (1924), México (1927) e Chile (1928)2.

Em nosso país, a legislaçao especial voltada para a criança e o adolescente, antes chamados pela lei de menores, vem embasada em três concepçoes diferentes que se sucederam no tempo.

Em que pese o Brasil possuir na atualidade um sistema legal condizente com a dignidade da pessoa humana, calcado no princípio da proteçao integral à criança, reconhecendo-a como pessoa em fase especial de desenvolvimento, no campo da responsabilizaçao penal, foi preciso percorrer um longo caminho iniciado ainda no século XVII, quando vigoravam as Ordenaçoes Filipinas (1603-1830). Neste tempo, a responsabilidade penal iniciava aos sete anos. Entre dezessete e vinte e um anos de idade, aplicava-se o sistema denominado de jovem adulto, com previsao, inclusive, de serem condenados à morte ou, em outros casos, de terem a pena reduzida. Aos maiores de vinte e um anos, vigorava a imputabilidade plena, com previsao de pena de morte caso praticassem determinados delitos.

Em 1830, o Código Penal do Império elevou para 14 anos a idade da imputabilidade penal, com a ressalva de que, entre os sete e quatorze anos, a responsabilidade penal estava vinculada ao discernimento. Em 1890, o Código Penal do Império é substituído pelo Código Penal de 1890, fixando em nove anos a idade da responsabilidade penal; o maior de nove e menor de quatorze estava sujeito à avaliaçao do seu grau de discernimento, como no sistema anterior, a ser feita pelo magistrado. Este primeiro momento legislativo foi denominado de Doutrina Penal do Menor, uma vez que nao havia uma legislaçao especial voltada a esta populaçao.

Paulatinamente, avanços vao ocorrendo e, em 1924, na cidade do Rio de Janeiro, é instalado o 1º Juizado de Menores, iniciativa considerada de vanguarda em termos de América Latina; em 1941, é instituído o SAM - Serviço de Assistência a Menores, através do Decreto nº 3.779, cuja diretriz era a internaçao para fins de correçao, educaçao e assistência psicopeda gógica segundo os critérios da época. Neste momento, constrói-se a categoria do menor, que simboliza a infância pobre e potencialmente perigosa, diferente do resto da infância. Data deste período, o Código Mello Mattos, Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, primeiro Código de Menores do país e da América Latina, alicerçado nos conceitos de menor abandonado e menor delinquente.

A Doutrina da Situaçao Irregular é inaugurada com a ediçao do segundo Código de Menores, em 1979 (Lei nº 6.697, 10/10/79), marcada pelo assistencialismo, abrangendo:

... os casos de abandono, a prática de infraçao penal, o desvio de conduta, a falta de assistência ou representaçao legal, enfim, a lei de menores era instrumento de controle social da criança e do adolescente, vítimas da omissao da família, da sociedade e do estado em seus direitos básicos3.


Embora a lei disciplinasse a situaçao de menores abandonados e delinquentes, nao se ocupou o Código de Menores com o reconhecimento dos seus direitos. Nos ensinamentos de Rizzini,

... o que impulsionava era resolver o problema dos menores, prevendo todos os possíveis detalhes e exercendo firme controle, por mecanismos de tutela, guarda, vigilância, reeducaçao, reabilitaçao, preservaçao, reforma e educaçao4.


O aumento da delinquência juvenil, o fracasso das políticas até entao adotadas para atender os menores desvalidos e infratores, bem como o clamor público voltado para os problemas da infância, levaram à criaçao, pelo Governo Militar, da FUNABEM - Fundaçao Nacional de Bem-Estar do Menor, através da Lei nº 4.513, de 1º de dezembro de 1964, que tinha como meta divulgar a política nacional do bem-estar do menor e a missao teórica de substituir a repressao e a internaçao pela educaçao5. É nesse período que sao construídos os grandes prédios da FEBEM, alguns servindo ainda na atualidade de abrigo ou de estabelecimento destinado à execuçao de medida socioeducativa privativa de liberdade. Caracterizou-se, ainda, este período, por considerar a família incapaz de atender os filhos, valorizando a retirada das crianças e seu encaminhamento a grandes instituiçoes, por acreditar que lá estariam mais protegidas e cuidadas. Teixeira Ferreira, ao abordar a institucionalizaçao de crianças e adolescentes, assinala:

O reflexo dessa política de institucionalizaçao era a privaçao do direito à convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes oriundos das classes populares, pois como as instituiçoes eram geralmente distantes do local de moradia da família do menor, muitas famílias nao visitavam seus familiares por falta de dinheiro para o transporte e, por outro lado, a instituiçao nao promovia a reintegraçao familiar do menor. Além disso, a institucionalizaçao incentivava a visao paternalista e assistencialista do Estado, pois as famílias carentes procuravam o Juizado de Menores buscando uma soluçao para a criaçao dos seus filhos através de sua internaçao em instituiçoes estatais, o que nao estimulava a criaçao de programas oficiais e comunitários de orientaçao e apoio a essas famílias6.


A FUNABEM, que tinha as FEBENs - Fundaçoes de Bem-Estar do Menor, como ramificaçoes nos Estados e Municípios, pecou ao desvencilhar- se, na prática, das proposiçoes que cercaram a sua criaçao. A ideologia repressiva e autoritária do Governo Revolucionário passou a adotar um regime carcerário de atendimento aos jovens que ali aportavam, sem buscar a efetiva soluçao dos seus problemas. Neste tempo, abandonados e autores de ato infracional ocupavam os mesmos espaços institucionais, sem receber tratamento diferenciado. Crianças e adolescentes, na vigência da Doutrina da Situaçao Irregular, eram considerados incapazes, objetos da tutela do Estado e nao sujeitos de direitos.

A situaçao irregular, como já se afirmou, nao enunciava direitos, mas apenas pré definia situaçoes e determinava uma atuaçao de resultados. Agia-se apenas na consequência e nao na causa do problema,

... daí a grande dificuldade de, por exemplo, exigir do poder público construçao de escolas, atendimento pré-natal, transporte escolar, direitos fundamentais que, por nao encontrarem previsao no código menorista, nao eram passíveis de execuçao7.


Com o advento da Constituiçao Federal de 1988, a Doutrina da Situaçao Irregular é substituída pela Doutrina da Proteçao Integral, alicerçada em três pilares: a) a criança conquista a condiçao de sujeito de direitos; b) a infância é reconhecida como fase especial do processo de desenvolvimento; c) a prioridade absoluta a esta parcela da populaçao passa a ser princípio constitucional (art. 227). Segundo Munir Cury:

Deve-se entender a proteçao integral como o conjunto de direitos que sao próprios apenas aos cidadaos imaturos; estes direitos, diferentemente daqueles fundamentais reconhecidos a todos os cidadaos, concretizam-se em pretensoes nem tanto em relaçao a um comportamento negativo (abster- se da violaçao daqueles direitos) quanto a um comportamento positivo por parte da autoridade pública e dos outros cidadaos, de regra adultos encarregados de assegurar esta proteçao especial. Por força da proteçao integral, crianças e adolescentes têm o direito de que os adultos façam coisas em favor deles8.


Nao há como deixar de ressaltar a postura de vanguarda do Brasil, ao assumir, em 1988, o compromisso com a Doutrina da Proteçao Integral, antes mesmo da aprovaçao da Convençao das Naçoes Unidas sobre os Direitos da Criança, representando "um norteador importante para a modificaçao das legislaçoes internas no que concerne à proteçao da infância em nosso continente"3. Entre os direitos fundamentais assegurados à criança, encontramos, ao lado do direito à vida, à saúde, à educaçao, à liberdade, ao respeito, à dignidade, o direito à convivência familiar, por vezes seriamente comprometido quando a família natural ou ampliada nao consegue exercer as responsabilidades impostas pelo poder familiar (artigo 1.634 Código Civil), valendo lembrar que "as relaçoes estáveis, protetoras, respeitosas e amorosas dentro da família representam um importante fator protetor para o desenvolvimento saudável da criança"9.

No que tange à prática de ato infracional, a matéria vem disciplinada, a partir de 1990, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem contribuído, de forma significativa, para que a atençao do sistema de justiça se volte para a conduta do adolescente a quem se atribui a prática do ato infracional e nao mais contra a pessoa, como ocorria no passado recente.

Como vem definido pela lei o ato infracional? Segundo o artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ato infracional é toda conduta descrita como crime ou contravençao penal praticada por criança (até doze anos incompletos) ou adolescente (dos doze anos completos aos dezoito incompletos). Pode-se afirmar, assim, que tudo que é vedado ao adulto praticar, também o é para a criança e o adolescente.

A lei, no entanto, estabelece procedimentos diferentes a serem aplicados à criança, ao adolescente e ao adulto. Nesse sentido, Alexandre Morais da Rosa, Juiz de Direito de Santa Catarina, ressalta que nao se deve dialogar com o sistema das medidas socioeducativas com a mesma lógica da resposta penal prevista para os que já adquiriram a maioridade penal. Para o autor,

... o ato infracional pode ser o sintoma de que alguma outra coisa nao está bem, especialmente nesta fase de acertamento subjetivo - encontro com o real do sexo, conflito de geraçoes, desligamento do Outro, angústia quanto ao futuro"10.


Determina a lei que a criança autora de ato infracional deve ser encaminhada ao Conselho Tutelar; o adolescente, à Delegacia de Polícia, preferencialmente a especializada no atendimento do adolescente autor de ato infracional. Em Porto Alegre, é disponibilizado o atendimento na 1ª e 2ª Delegacias de Polícia do Adolescente Infrator11.

A criança autora de ato infracional, o Conselho Tutelar tem atribuiçoes para aplicar as Medidas de Proteçao previstas no artigo 101, incisos I a VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente12; ao adolescente autor de ato infracional recáem as medidas socioeducativas, previstas no artigo 112 da mes ma lei, a saber: advertência, obrigaçao de reparar o dano, prestaçao de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade, internaçao e qualquer das medidas de proteçao previstas no artigo 101, incisos I a VI, do ECA.

A apuraçao do ato infracional praticado por adolescente tramita no Juizado da Infância e Juventude do local em que ocorreu o fato, estando previsto nos artigos 171 a 190 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O procedimento divide-se em dois momentos. O primeiro, no âmbito extrajudicial, envolve a apresentaçao do adolescente à autoridade policial (arts. 171 a 178 ECA) e, posteriormente, ao representante do Ministério Público (arts. 179 a 180 ECA). Vencida esta etapa, dá-se início à fase judicial (arts. 181 a 190 ECA).

Ao adolescente autor de ato infracional sao asseguradas inúmeras garantias: pleno e formal conhecimento da atribuiçao de ato infracional, mediante citaçao ou meio equivalente; igualdade na relaçao processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas, podendo produzir todas as provas necessárias à sua defesa; defesa técnica por advogado; assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados; direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; direito de solicitar a presença dos pais ou responsável em qualquer fase do procedimento (art. 111 ECA), ressaltando a lei que nenhum adolescente será privado de liberdade sem o devido processo legal (art. 110 ECA).

Na vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, a privaçao de liberdade somente poderá ocorrer em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 106, caput, ECA). A internaçao, antes da sentença, chamada de internaçao provisória, nao poderá exceder o prazo de 45 dias (art. 108 ECA). A privaçao de liberdade decorrente da aplicaçao da medida socioeducativa de internaçao está sujeita, por expressa determinaçao legal (art. 121 ECA), aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condiçao peculiar de pessoa em desenvolvimento que é atribuída ao adolescente (art. 121, "caput", ECA). No Rio Grande do Sul, em 10/01/2011, contávamos com 875 adolescentes privados de liberdade sendo que, somente em Porto Alegre, 483 cumpriam medida privativa de liberdade na Fundaçao de Atendimento Socioeducativo - FASE, antes denominada FEBEM-RS13.

É comum que o adolescente que pratica um ato infracional, em especial, nos casos em que há grave ameaça ou violência à pessoa, apresente, ao longo do seu desenvolvimento, um desatendimento dos direitos que lhe sao conferidos pela Constituiçao Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A título exemplificativo, chama a atençao que da populaçao de adolescentes que se encontrava privada de liberdade no Rio Grande do Sul, em 4 de novembro de 2010, 93,70% nao havia concluído o ensino fundamental e 6,30% cursava o ensino médio, mostrando a dificuldade de garantir o direito à educaçao.14.


COMENTARIOS SOBRE O CASO CLINICO

Considerando que Raul, ao tempo da prática do ato infracional (tentativa de homicídio praticado contra a mae), contava com 17 anos, está sujeito ao procedimento para apuraçao de ato infracional praticado por adolescente, previsto nos artigos 171 a 190 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Embora a normativa internacional considere criança a pessoa de zero a dezoito anos, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que criança é a pessoa de zero a doze anos incompletos e adolescente, de doze completos a dezoito incompletos (art. 2º).

No relato do caso clínico é informado que "Marta foi levada a um hospital de pronto atendimento, tendo um registro de ocorrência policial sido feito automaticamente", mencionando ter havido uma briga familiar, sendo que os cortes por ela apresentados decorriam "de agressoes nao intencionais", praticados pelo filho mais velho da vítima. O Boletim de Ocorrência nao referia o nome do autor dos fatos e tao pouco a sua idade. Chama a atençao que Raul, diferente de Marta, foi encaminhado a outro hospital onde foi informado por ele ou seus familiares que as lesoes apresentadas decorriam de "tentativa de suicídio". Considerando que no Boletim de Ocorrência em que Marta figurou como vítima foi omitido o nome de Raul, poucas eram as chances de a autoridade policial estabelecer uma conexao entre os dois registros policiais, realizados em cidades diferentes, descrevendo fatos de natureza diversa.

Desde logo, é possível inferir que embora os fatos tenham sido revelados à equipe médica, eles chegaram ao conhecimento da autoridade policial de forma distorcida, nao condizendo com a verdade, numa clara demonstraçao de encobrir o ocorrido por parte dos pais de Raul, certamente com o intuito de nao verem aplicadas ao filho as medidas previstas em lei.

Cabe observar que, em matéria de ato infracional, assim como em outras formas de violência praticadas no ambiente doméstico, poucos sao os casos que chegam ao sistema de justiça. Tratando-se de fato que envolveu violência intrafamiliar, em que autor e vítima pertenciam à mesma família, nao foi difícil para a família de Raul manter o segredo, pelo menos frente aos órgaos encarregados de adotar as medidas judiciais. Caso autor e vítima pertencessem a famílias diferentes, ou, mesmo que pertencendo à mesma família, se verificasse um clima de animosidade, as chances seriam mínimas de adulteraçao dos fatos, como ocorreu no caso em estudo.

A postura dos pais de Raul nao é rara de ser constatada em nossa prática. Observa-se que os pais, em diversos casos atendidos, demonstram nao ter "inscrita a Lei, por se saber que nao se torna pai pelo simples ato biológico, justamente porque a filiaçao pressupoe deixar-se a condiçao de filho"10, acarretando danos maiores ao adolescente que se vê envolvido com a lei.

A conivência, a intençao de encobrir o ato violento praticado por Raul, mostrou-se presente também na atitude de outros familiares, como se lê do relato:

A avó, tio e tia paternos, ao saberem do ocorrido, prontamente foram à casa de Pedro para limparem os vestígios da agressao, com a intençao de que nao se visse a grande quantidade de sangue que havia no quarto do casal e sala, assim como objetos e móveis fora do lugar.


Pode-se afirmar que o procedimento adotado pelos pais e familiares de Raul prejudicou, de forma sensível, a atuaçao do sistema de justiça, quer pelo tempo transcorrido desde a prática dos fatos até sua intimaçao para comparecer à Promotoria de Justiça, quer pelos arranjos familiares que foram acontecendo neste ínterim. A necessidade de que a intervençao ocorra imediatamente após os fatos, como prevê a lei, "proporciona a significaçao, sempre existente das implicaçoes de um processo infracional e da eventual medida socioeducativa"; uma vez que, "longos períodos entre o ato e a resposta, de regra, implicam que a intervençao se dê em outro adolescente, já modificado pelo tempo"10.

Importante ressaltar que os fatos envolvendo o caso clínico somente chegou ao sistema de justiça após dois meses de internaçao hospitalar de Raul, em face da iniciativa da equipe médica que o acompanhava de acionar a Ouvidoria do Ministério Público e, posteriormente, a Corregedoria-Geral da Instituiçao, solicitando informaçoes e pedindo a adoçao das providências legais cabíveis, uma vez que, até aquele momento, Raul, mesmo envolvido em fato tao grave, nao havia sido chamado pela autoridade policial ou pelo Ministério Público. Caso a equipe médica nao tivesse realizado contato com os órgaos responsáveis, é fácil inferir que os fatos permaneceriam restritos aos integrantes da família que, indiscutivelmente, apresentavam dificuldades para compreender o ocorrido, mostrando-se confusos nao só com o manejo do filho como também com as medidas que poderiam adotar para sua segurança pessoal. O papel e a funçao do sistema de justiça foram desprezados pela família de Raul, com prejuízos evidentes ao desenrolar do caso. A situaçao apresentada no caso clínico estaria a exigir que a saúde e a justiça estabelecessem uma aliança, caso os fatos tivessem sido noticiados de forma adequada, com resultados que beneficiariam nao só o adolescente como o grupo familiar.

A distorçao dos fatos por ocasiao dos registros policiais, realizados em municípios diferentes, envolvendo tanto a mae do adolescente como Raul, motivou, nao só uma grande demora na tomada de providências pelo sistema de justiça, o que nao costuma acontecer quando a matéria envolve a prática de ato infracional, como também uma nao valorizaçao da gravidade do ato, quer pela autoridade policial, quer pelo Ministério Público, uma vez que, mesmo envolvendo grave ameaça e violência contra a pessoa, ao adolescente foi concedida remissao com aplicaçao de medida de proteçao consistente em realizar tratamento médico especializado (art. 101, inciso V, ECA), o que, aliás, já vinha acontecendo.

Mas, o que vem a ser a remissao? Quando é possível aplicá-la?

A remissao, que tem o sentido de perdao, está reservada para os adolescentes que praticaram ato infracional de menor gravidade. Embora a lei nao estabeleça requisitos objetivos a serem preenchidos para sua aplicaçao, caberá ao agente do Ministério Público ou à autoridade judiciária, ao examinar a viabilidade de concedê-la, atentar para as circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participaçao no ato infracional (art. 126 ECA).

A remissao nao implica necessariamente no reconhecimento ou comprovaçao da responsabilidade, nem prevalece para fins de antecedentes judiciais, podendo incluir eventualmente a aplicaçao de qualquer das medidas previstas em lei (art. 112 ECA), exceto as medidas socioeducativas que envolvem privaçao de liberdade: semiliberdade e internaçao. Na prática, a remissao só é concedida quando há a concordância do adolescente e de seus pais ou responsável, uma vez que há adolescentes que preferem levar o procedimento adiante a fim de provar a improcedência do fato que lhe é atribuído, o que nao se concretizou no caso de Raul, que aceitou a remissao, assim como sua mae, a vítima.

Seria possível ao Ministério Público, ao invés de conceder a remissao, oferecer representaçao à autoridade judiciária, acompanhada de pedido de aplicaçao de internaçao provisória? O que prevê a lei?

O agente do Ministério Público, após realizar a audiência prevista no art. 179 do Estatuto da Criança e do Adolescente, oportunidade em que conversa, de forma informal com o adolescente e seus pais ou responsável, deve adotar, segundo sua íntima convicçao, bem como as condiçoes em que os fatos acorreram e as disposiçoes legais, uma das seguintes medidas: promover o arquivamento dos autos; conceder a remissao ou representar à autoridade judiciária para aplicaçao de medida socioeducativa (art. 180 ECA). Na hipótese em que o representante do Ministério Público optar por oferecer a representaçao poderá, na mesma peça, requerer à autoridade judiciária a internaçao provisória do adolescente, sempre que os requisitos legais estiverem presentes (art. 108 ECA).

A medida de internaçao provisória, que nao pode exceder o prazo de 45 dias, deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, sempre que demonstrada a necessidade imperiosa da medida (art. 108 ECA). Por outro lado, entre as hipóteses que autorizam a aplicaçao da medida de internaçao (art. 122, inciso I, ECA), está a prática de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa, como veio a ocorrer nos fatos praticados por Raul.

Respondendo à indagaçao, é possível afirmar que as circunstâncias em que o ato infracional praticado por Raul ocorreu autorizariam a aplicaçao da internaçao provisória. Como o próprio nome sugere, sua duraçao é limitada ao prazo de quarenta e cinco dias, período em que o procedimento deve estar encerrado, com sentença de procedência ou improcedência da representaçao. Quando isto nao ocorrer, o adolescente deverá ser posto em liberdade enquanto aguarda a conclusao do procedimento.

Por último, importante registrar que nao se dispoe, no Brasil, de instituiçao diferenciada para internaçao de adolescente portador de doença ou deficiência mental, como era o desejo manifestado pela equipe médica que atendeu Raul. No Rio Grande do Sul, as medidas privativas de liberdade sao executadas unicamente pela FASE, Fundaçao de Atendimento Socioeducativo, com unidades localizadas em diversos municípios gaúchos. Em que pese dispor a lei, de forma expressa, que os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental deverao receber tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condiçoes (art. 112,  3º, ECA), na prática, o dispositivo permanece letra morta, restrita ao papel, como tantas outras leis que sao produzidas em nosso país.


CONSIDERAÇOES FINAIS

O caso clínico possibilita valiosa reflexao que nao se restringe a uma área específica do conhecimento. Entre tantos aspectos importantes, foi possível observar que as previsoes legais nem sempre se concretizam, quer quando afirmam direitos que devem ser garantidos à criança e ao adolescente, quer quando o poder público descumpre suas atribuiçoes, como fica explícito pelo desatendimento do que prevê o  3º do artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por outro lado, confirma que todos os segmentos (educaçao, saúde e justiça) sao responsáveis pela garantia de direitos a esta populaçao, nao podendo a omissao de determinados setores contaminar os demais, sob pena de comprometer a proteçao do adolescente que se vê envolvido em ato infracional grave, praticado com violência contra a pessoa. Neste sentido, as providencias adotadas pela equipe médica permitiram que o caso chegasse aos órgaos competentes. Caso a equipe médica tivesse se omitido, os fatos passariam ao largo do sistema de justiça, ao total arrepio da lei, reforçando a onipotência de Raul e o fracasso do sistema socioeducativo.

O caso em exame permite, ainda, mensurar os elevados investimentos que precisam ser feitos para o atendimento de apenas um adolescente que se vê envolvido em um ato infracional grave. Embora a tendência natural dos profissionais se volte para a resoluçao imediata das demandas que diariamente aportam nas instituiçoes, melhor seria que os investimentos, manifestados através de políticas sociais públicas, pudessem, de forma precoce, detectar situaçoes de risco antes que fatos tao graves viessem a se consumar, provocando sequelas que nem sempre podem ser sanadas.

No caso clínico apresentado, foi possível observar que somente a partir do grave ato infracional praticado por Raul é que o silêncio familiar foi rompido, permitindo que medidas, que há muito se faziam necessárias para o enfrentamento das dificuldades apresentadas pelos integrantes da família, pudessem ser acionadas.

Muito antes da prática da tentativa de homicídio, diversas evidências já apontavam para as dificuldades que se faziam presentes no grupo familiar, em especial, na vida de Raul. No entanto, os sinais foram desprezados pelos pais, pela família e pela escola e nenhum tipo de ajuda foi buscado, culminando com a prática de um ato de extrema gravidade e violência, praticado pelo filho mais velho contra a mae, no interior da casa em que moravam, sem a presença de testemunhas.

As possíveis soluçoes, que no passado se mostravam obscuras, em especial pelo desconhecimento das causas da violência, no presente já estao disponíveis, permitindo que investimentos se voltem para a prevençao, como sinaliza de forma clara o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao afirmar o dever da família, da sociedade e do poder público em garantir, com absoluta prioridade, direitos à criança, o que deve iniciar antes mesmo de seu nascimento.


REFERENCIAS

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12. Em Porto Alegre, existem 10 Conselhos Tutelares. Disponível em: . Acesso em: 10. Jan. 2011.

13. Rio Grande do Sul. Juizado da Infância e da Juventude. Disponível em: . Acesso em 10. Jan. 2011.

14. Rio Grande do Sul. Fundaçao de Atendimento Socioeducativo. Dados quantitativos 04. Nov. 2010. Fonte: Assessoria de Informaçao e Gestao.










* Procuradora de Justiça, Especialista em Violência Doméstica pela USP, Mestre em Direito pela UNISINOS, Doutora em Serviço Social pela PUCRS, Professora de Direito da Criança e do Adolescente e Direito de Família na PUCRS, Professora convidada da Fundaçao Escola Superior do Ministério Público do RS, Fundaçao Escola da Magistratura do Trabalho do RS e Universidade do Amazonas, UNAMA, Voluntária no Programa de Proteçao à Criança do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Diretora Cultural do IBDFAM/RS, IARGS, SORBI e ABMCJ.

Endereço para correspondência:
Maria Regina Fay de Azambuja
E-mail: mra.ez@terra.com.br

Recebido em: 16/01/2011 Aceito em: 25/01/2011

 

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