ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):270-283



Comunicaçoes Teórico-clínicas

Aspectos psiquiátrico-forenses de um caso de um matricida juvenil

Forensic-psychiatric aspects in a juvenile matricide case

Vivian Peres Day*

Resumo

Este estudo de caso descreve uma troca de experiências entre duas áreas da psiquiatria. A autora é psiquiatra forense e participou como consultora no atendimento de um jovem adolescente que esteve em tratamento junto com sua família de novembro de 2007 a abril de 2010 (numa unidade psiquiátrica para crianças e adolescentes) por tentativa de matricídio e, após, de suicídio. Havia também plano ampliado de execuçao de toda família, incriminando o pai. Esse trabalho descreve alguns aspectos da delicada tarefa em ajudar o paciente, sua família e a equipe. Discute os fatores de risco, enfatiza a falta de adequada atençao e prevençao para um grande número de jovens com sofrimento mental, suas experiências dolorosas e o possível trágico futuro para suas vidas, suas famílias e a sociedade.

Descritores: homicídio; psiquiatria forense; psicologia do adolescente.

Abstract

This case study describes the exchange experience between two psychiatric fields. The author is a forensic psychiatrist who participates as a consultant on the attendance of an adolescent boy who went through treatment with his family from November 2007 to April 2010 in a special psychiatric unit for infants and adolescents due to a matricide attempt and further suicide attempt. There were future plans to kill the whole family and to incriminate his father. This work describes some aspects of this challenging task of helping the patient, his family and the staff. It discusses the multiple risk factors and emphasizes the lack of adequate attention and prevention of a great number of youngsters with mental suffering and their painful experiences, along with their possible tragic future, as well as their families' and the society's.

Keywords: homicide; forensic psychiatry; adolescent psychology.

 

 

INTRODUÇAO

O homicídio é um crime definido no código penal brasileiro, no art. 121 "Matar alguém"1. É um fenômeno atemporal, universal, presente em todas as culturas e épocas. É a 22ª causa de morte no mundo; nas Américas está em quinto lugar. As diferenças de índices entre países sao muito chamativas; 8 países dos 10 mais violentos sao latino-americanos, e 8 dos 10 menos prevalentes sao da Europa2. Em 2001, das pessoas que perpetraram homicídio, 43% tinham entre 14 e 26 anos. Os índices nao tendem a diminuir. Homens jovens, entre 16 e 24 tendem a morrer cada vez mais de causas trágicas3. Os índices de violência doméstica, ainda subestimados, apontam para uma maioria de homens que perpetram agressoes contra mulheres com quem têm laços afetivos ou sanguíneos, preferencialmente4. Matricídio é um tipo menos comum, cerca de 1 a 4% de todos os tipos de homicídio, que é o assassinato da mae cometido por um filho ou filha5. Embora mais raro, os custos pessoais, familiares e sociais costumam ter uma repercussao transgeracional.

Folino questiona se nao seria razoável considerar os homicídios como partes inerentes da natureza humana e se nao teríamos que nos habituar com sua perene e dolorosa presença6. Os comportamentos auto e heterodestrutivos têm levado várias áreas do pensamento a elaborar teorias e a buscar novos instrumentos eficazes. A clássica troca de correspondência entre Freud e Einstein, em que dois dos maiores pensadores do século XX tentam entender o porquê da tendência genocida humana, nao traz conclusoes muito otimistas, mas sugere que as mudanças exigiriam um esforço contínuo integrador para que as pulsoes de vida nao sucumbam às fortes demandas para a destruiçao7. A tolerância às diferenças, a possibilidade de mecanismos de interlocuçao têm que ser valorizados e desenvolvidos. Como nos relembra Donald Schüller, onde há lei, há palavra, quanto menos espaço para o diálogo, mais espaço para resoluçao de conflitos pela força8.

Reportando novamente à lei brasileira, todo crime prevê sançoes, mas também que o autor seja culpável, ou seja, que seja imputável tenha capacidade ao tempo da açao de entender e de autodeterminar-se de acordo como este entendimento. A inimputablidade é uma das causas de exclusao de culpabilidade. Os menores de 18 anos nao sao culpáveis, sendo a menoridade considerada um dos excludentes de imputabilidade, assim como portadores de doença mental, segundo artigo 27 do Código Penal Brasileiro1.

O foco de estudo deste trabalho é o caso de um jovem de 16 anos, provindo de uma família de classe média, sem antecedentes criminais, com histórico de traumatismo crânio-encefálico, usuário de drogas psicoativas, seus pais em crise conjugal e fragilizados emocionalmente e com um envolvimento recente com uma jovem que apresentava traços antissociais. Num domingo à noite, o adolescente iniciou a execuçao de um plano de eliminar toda sua família, golpeando a mae com uma faca. Esta, muito ferida, conseguiu fugir, levando consigo o filho mais novo, alvo também da intenta agressao. Logo após, o adolescente fez mençao de tentar suicídio. O rapaz foi, entao, internado numa clínica, cometendo nova tentativa de suicídio. Dessa primeira baixa hospitalar, acabou sendo transferido para a unidade de atendimento psiquiátrico infanto-juvenil num hospital-universitário de Porto Alegre. A evoluçao, ao longo de dois anos, com muitos esforços da equipe que enfrentou suas internaçoes, tentativas de suicídio e muitas resistências no manejo do caso, tornou-se foco de estudos.

O caso deste jovem é um caso muito peculiar pelas características do agressor, do crime e do acesso a um serviço de excelência que permitiu um trabalho minucioso e acesso à rede multiprofissional de um hospital de referência.

A Psiquiatria Forense, representada pela autora do presente trabalho, foi chamada por ter uma familiaridade com os limites entre a ciência psiquiátrica e a justiça, podendo prover um olhar privilegiado sobre tao instigantes questoes. Nao se trata de uma descriçao pericial ou de um atendimento, mas de uma consultoria solicitada pela equipe como forma de discutir diagnóstico, risco de reincidência e prognóstico do caso. Procurar-se-ao desenvolver os diferentes vértices do caso com maior ênfase nas questoes psiquiátrico-forenses.


RESUMO DO CASO

O jovem estava com 16 anos quando foi internado pela primeira vez em setembro de 2007, por iniciativa da família, numa clínica psiquiátrica, após os atos de agressividade. Durante essa baixa, tentou suicídio. A provável omissao do crime na ocasiao, relatado como uma "briga na família" e tentativa de suicídio, favoreceu que nao fosse internado em instituiçao tipo Fundaçao de Atendimento Sócio-Educativo (FASE). Em novembro do mesmo ano, foi transferido para a unidade psiquiátrica infanto-juvenil do hospital geral para investigaçao e tratamento.

É o primogênito de dois filhos. A família é de classe média, pais com nível médio de instruçao, ambos empregados: o pai, entao com 36 anos, na área da segurança e a mae, com 32 anos, na área da saúde. O jovem estava cursando o primeiro ano do nível médio. O irmao, entao com 12 anos, estava na sétima série do ensino fundamental. A família vinha passando por um momento de crise, o casal estava em processo de separaçao. O abuso de álcool do pai era considerado problema, assim como foi nas geraçoes anteriores, tanto na linhagem paterna quanto materna. A mae apresentava um temperamento autoritário. A família vivia num bairro pobre e violento.

O menino nasceu de parto cesáreo por pré-eclâmpsia. Nao teria apresentado dificuldades no desenvolvimento psicossocial. Havia histórico de sintomas na conduta, de "liderança" em atos de vandalismo na adolescência (relatados pelo próprio) que ficaram pouco esclarecidos ou negados pela família que descreve o menino como "obediente e respeitador".

Aos 13 anos, sofreu um TCE grave, vítima de atropelamento. Como o causador do acidente fugiu, o menino demorou a ser atendido, esteve em coma, internado em Unidade de Tratamento Intensivo. Recuperou-se, mas persistiu usando anticonvulsivante de forma irregular. Segundo a descriçao simbólica da mae, "o filho nunca retornou para casa". Apresentou mudanças de comportamento, agressividade especialmente com o irmao e um embotamento afetivo persistente percebido pelo próprio paciente.

As mudanças maiores de comportamento ocorreram desde o início de 2007, com um namoro com uma colega do colégio bem mais velha. O relacionamento apresentava evidências de muitas mentiras, a jovem dizia-se órfa, que morava com tios numa casa muito bonita, que estava com 16 anos e que estava grávida de Raul.

Os pais se opuseram ao namoro, pois descobriram a farsa: a moça tinha 21 anos, morava com os pais e nao estava grávida, mas, mesmo assim, o jovem insistia com o relacionamento, cada vez mais opositor em relaçao aos pais. Mais agressivo verbalmente, passou a questionar sobre senhas bancárias e herança. Na semana anterior ao delito, os pais começaram a temer por suas vidas, vislumbrando um desenlace violento no conflito com o filho após uma briga séria com o pai.

Na noite da agressao, o pai nao estava em casa. Raul havia usado álcool e teria experimentado crack. A mae tentou pedir ajuda ao pai por telefone, pois percebeu o que aconteceria, o rapaz havia vestido luvas hospitalares e atacou-a com uma faca na garganta. A mae protegeu o filho menor e, após luta corporal, conseguiu desvencilhar-se muito ferida. Em seguida, o adolescente faz mençao de praticar autoferimento.

Durante o atendimento no serviço de emergência, o fato foi distorcido, sendo revelado que houve briga familiar, agressoes nao intencionais e tentativa de suicídio. Os familiares paternos estiveram na casa, limpando "os vestígios" do crime. Foram encontradas evidências de um plano de matar toda a família. Havia bilhetes forjados de sua mae, revelando a senha do cartao de crédito do pai, havia a ideia de atribuir ao pai a culpa pelos crimes; o jovem mataria o pai com a arma deste, forjando um suicídio, fugiria para a praia com a namorada com o novo carro da família, viveria com o dinheiro da conta corrente dos pais.

A situaçao do paciente, do ponto de vista psiquiátrico, preocupava os familiares de forma ambivalente: justificaram seu comportamento disruptivo às sequelas do TCE e à falta da medicaçao, mas omitiram das autoridades o crime, a gravidade e a responsabilidade por seus atos. O rapaz foi internado numa clínica privada que nao conseguiu dar-lhe o atendimento adequado, solicitando a transferência para o hospital de referência. A equipe que atende à área de psiquiatria infanto-juvenil aceitou o caso e as dificuldades inerentes, passando à investigaçao e ao manejo e indicando internaçao em unidade fechada, sem a presença dos pais, mas com acompanhamento destes.

O exame psiquiátrico inicial apresentava poucos sintomas: distanciamento afetivo, irritaçao quanto à necessidade de estar internado, culpabilidade aos pais. A conduta era sedutora em relaçao às funcionárias; dizia-se um "garanhao", pretendia sair da internaçao e voltar ao namoro, dizendo já ter se "desculpado e resolvido". As hipóteses diagnósticas apontavam para uma fragilidade neurológica, uma possível evidência de psicose e um embotamento afetivo, podendo ser patologia de humor. Já vinha medicado com Carbamazepina, 1000mg/dia, e progressivamente foram adicionados Fluoxetina, 20mg/dia e Haloperidol, 10 mg/dia, baseados nessas impressoes.

A investigaçao neurológica, com eletroencefalograma e ressonância de encéfalo, concluiu por considerar os achados presentes nos exames (alteraçoes nos lobos frontais) suficientes para expor o paciente a um maior descontrole de impulsos e alteraçao de personalidade. O psicodiagnóstico apontou um quociente de inteligência médio superior, nao havendo déficits cognitivos. Nos testes projetivos, ficou evidenciado o funcionamento com mecanismos grandiosos, onipotentes, maníacos e paranoides. Também foram descritos descontrole de impulsos, deslocamento do afeto, distanciamento afetivo e conduta sedutora.

O paciente vinha sendo investigado, medicado, em psicoterapia, em terapia de família, mas grandes dúvidas restavam. A presença de uma agressao grave como sintoma mais significativo para o psiquiatra leva a reflexoes. O pedido de socorro por trás do sintoma a ser investigado, em especial nos jovens, a necessidade em precisar enviar esse sinal é um caminho a ser trilhado. Como descreveu Meneghini9, no clássico trabalho "Atuaçao homicida como defesa contra ansiedades paranóides", a perda de um objeto de amor pode levar a tensoes insustentáveis na homeostase psíquica do paciente, sendo a agressao um alívio que permitiria a preservaçao da integridade do ego.

Neste ponto do tratamento é que a avaliaçao do psiquiatra forense foi solicitada, uma vez que o paciente nao apresentava um quadro "produtivo" a unidade destina-se a casos agudos e havia uma grande preocupaçao de parte da equipe e da família em relaçao ao prognóstico. A experiência da autora no atendimento de adultos em cumprimento de medida de segurança em hospital de custódia e tratamento permitiria uma visao transversal e também longitudinal do fenômeno.

O medo, a necessidade de observaçao a longo prazo, a reconstruçao da capacidade psíquica e das condiçoes ambientais, exige paciência e compaixao, exige lidar com aspectos contratransferenciais evitados pela maioria dos profissionais e exige gosto pela atividade. Uma boa rede que preserve a homeostase psíquica da equipe é fundamental.

O jovem, ao ser entrevistado, apresentava um embotamento afetivo que tendia à frieza e a uma crítica muito inadequada de sua conduta. A concretude de seus argumentos e a onipotência de seu pensamento nao eram compatíveis com um rapaz que estava cursando o ensino médio; numa primeira impressao, a puerilidade e a certeza da impunidade beiravam o retardo mental. O funcionamento antissocial era o achado mais significativo, e o prognóstico, reservado. Por um lado, a possibilidade de reparaçao e o alcance de uma integraçao depressiva poderiam levar a tentativas de suicídio ou à evoluçao de um transtorno de humor; por outro, se o funcionamento antissocial predominasse, poderia haver a possibilidade de reincidência e de uma "carreira" criminosa pela frente.

A gravidade do caso suscitou discussao por numerosos vértices; alguns serao abordados a seguir.


DISCUSSAO

1. O adolescente infrator ou em conflito com a lei:


A lei nº 8069 de13/7/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), prevê que os menores de 18 anos que cometem ato infracional ficam enquadrados no artigo 112. Contempla plena defesa, proteçao e medidas que incluem desde advertência até internaçao em estabelecimento educacional, visando nao à puniçao, mas a ressocializaçao. No parágrafo 3º, a lei prevê tratamento individual e especializado, em local adequado, para os portadores de doença ou deficiência mental10. Na prática, os jovens acabam recolhidos à FASE, que atende à boa parte destas situaçoes dentro da precariedade que dispoem as instituiçoes públicas superlotadas, com equipes dedicadas fazendo esforços que a comunidade em geral desconhece. Casos agudos sao atendidos através de "compra de vagas" em clínicas privadas que nao dispoem habitualmente de infraestrutura e fiscalizaçao adequadas.

O adolescente é definido pela lei como pessoa entre doze e dezoito anos10. A conquista para o status de pessoa é recente, data da promulgaçao do ECA. Ainda se conquista no mundo a delimitaçao de espaços específicos para esta populaçao ainda desassistida. Estatísticas da Organizaçao Mundial da Saúde projetam que uma para cada dez crianças ou adolescentes do mundo apresenta sofrimento mental que justifique tratamento adequado, mas apenas a metade tem acesso3.

Chess e Hassibi definem adolescência como "designaçao biossocial que descreve o período evolutivo durante a segunda década da vida. Começa com as mudanças biológicas da puberdade e finda quando o status social da maturidade é atingido" 11. Do ponto de vista psiquiátrico, observa-se que o critério cronológico deve estar acompanhado pelo psíquico e pelo social.

A periculosidade do adolescente tende a ser superestimada. Segundo o Censo de 2000, existiam no Brasil 21.249.557 habitantes na faixa etária de 12 a 18 anos. Ou seja, um em cada oito brasileiros era adolescente e, de acordo com as informaçoes da Subsecretaria de Promoçao dos Direitos da Criança e do Adolescente 2005, o Brasil contava em 2004 com 39.578 jovens infratores, menos de 0,20% do total de jovens brasileiros, cumprindo medidas socioeducativas, 50% em Sao Paulo, segundo dados revelados pelos estados, 13.489 dos quais em regime fechado, com um predomínio de jovens sem antecedentes, sendo os delitos mais comuns, roubo e furto em 60%, 18% homicídio, 8% tráfico, 85% usuários de drogas, 70% estavam fora da escola12.

O jovem do caso em questao nao preenche a maioria dos critérios da populaçao dos jovens infratores brasileiros, o que atenta mais para a gravidade e para a periculosidade.

2. O homicida juvenil

Recente pesquisa realizada em Bogotá, publicada por Escobar-Córdoba, estudou uma amostra de 11 jovens de homicidas juvenis, comparados com um grupo-controle de igual faixa etária e social. Na Colômbia, o homicídio vinha sendo a principal causa de morte, quadro que vem exigindo muitos esforços e que o país vem conseguindo reverter. Esse autor preocupou-se em estudar a populaçao de jovens, geralmente pouco estudada no mundo. No trabalho colombiano, foram encontradas várias diferenças significativas. Os homicidas apresentavam baixa escolaridade, repetência, vivência sem a família e/ou na rua, ausência parental, muitos irmaos, pobre qualidade nas relaçoes familiares, violência intrafamiliar, pouca satisfaçao com a vida, irritabilidade moderada e severa, pares problemáticos, transtorno de conduta moderado ou severo, pertencimento à quadrilha, dependência ao álcool, risco para violência severa, risco para abuso de drogas psicoativas, uso de armas, pais na prisao, tentativa de suicídio prévia, marcas corporais como cicatrizes e/ou tatuagens, frequência cardíaca baixa, antecedentes de medida sócioeducativa13.

Alguns fatores de risco previamente estudados seriam, de parte do indivíduo, impulsividade, déficit de atençao, QI baixo, baixo rendimento escolar, amigos infratores, ambiente familiar abusivo, pais delinquentes, pobreza, pouca supervisao dos pais, família separada, pais autoritários ou cruéis, disponibilidade para uso de drogas12.

Um trabalho americano anterior, estudando 25 jovens homicidas, ressaltou que 96% apresentavam algum diagnóstico psiquiátrico, 71% evidenciavam sintomas psicóticos, 64% ideaçao paranoide, metade referiu ideaçao suicida em algum momento da vida, mas apenas 17% haviam recebido tratamento. Disfunçao familiar e escolar estava presente em praticamente todos, assim como história prévia de abuso, de violência, de detençoes e de comportamento sexual promíscuo; 60% conheciam a vítima, em 24% a vítima era familiar, 68% era um adulto. O crime foi premeditado em 44% dos casos, cometido sozinho em 68%; o uso de drogas no dia do crime ocorreu em 24% dos casos, 43% tinham passado por TCE. Também foi citado que o assassinato de algum dos pais nao é tao raro em jovens, embora na amostra desses autores esse dado nao foi pesquisado. Foi citado um outro trabalho, referindo que é uma forma de homicídio relativamente comum nesta faixa etária, cerca de 10%. O trabalho sugere que esse grupo é negligenciado e entregue à sociedade sem a devida reabilitaçao, tornando-se um grande risco social14.

Um estudo brasileiro estudou jovens infratores graves. Há fortes evidências de que apresentem sintomas de psicopatia, alto risco de reincidência, mas nao apresentaram diferenças significativas em relaçao ao grupo-controle, de terem sofrido maus-tratos na infância, questao cada vez mais discutida.15

Em relaçao ao assassino-serial, numa vasta revisao realizada por consultores da polícia de New York, os autores mostraram a dificuldade com a própria definiçao e a tipificaçao do delito e do perfil dos perpetradores. Foram definidos dois tipos básicos, o organizado, inteligente, que conhece os métodos policiais, tem inteligência acima da média, premedita, sabe seduzir e manipular a vítima. O outro grupo, mais desorganizado, é inadequado, excluído, solitário, estranho, tem algum sintoma, vive com alguma figura feminina, e o ataque é "oportunista." Em comum a todos, há grandiosidade, uma grande satisfaçao em ter o controle total sobre a vida e a morte da vítima. Preenchem critérios para caracteropatia, em especial antissocial, mas traços narcisistas de personalidade também sao achados frequentes16.

3. O matricídio

O matricídio, embora razoavelmente raro, possui peculiaridades que merecem atençao especial. Em princípio, a violência intrafamiliar ou a chamada violência de gênero, alcança índices alarmantes no mundo todo. Numa ampla revisao sobre os padroes preditores de violência doméstica nos USA, os autores afirmam que é o maior problema de saúde pública naquele país. Um terço de todas as mulheres atendidas em emergências sao vítimas de violência doméstica, metade das mulheres e um terço dos homens sao assassinados por parceiros17. No que se refere ao crime contra a vida dos pais, o fenômeno toma outros contornos. Havia, ainda, uma tendência já superada de se considerar o matricídio um crime "esquizofrênico" ou como, em um recente relato de caso brasileiro, de transtorno bipolar, em que há uma relaçao positiva entre transtornos mentais graves e comportamento violento reforçada por evidências, especialmente em pacientes com histórico de doença, episódios de violência na fase aguda, ameaças a familiares e amigos e falta de tratamento, embora se ressalte que ainda é uma pequena proporçao, dentre inúmeras variáveis, face aos altíssimos índices de violência na comunidade5.

Na experiência do Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso de Porto Alegre que abriga doentes mentais adultos que cometeram delitos, há um predomínio de pacientes do sexo masculino que cometeram delitos contra a pessoa; na pesquisa realizada em 1999, 33% de homicídios praticados por psicóticos, em especial esquizofrênicos, após anos de doença mental, com algum tratamento prévio e com comorbidade com abuso de álcool, a vítima preferencial era a mae. O perfil encontrado no IPF reforça os achados que a doença mental expoe a alguns tipos de delito dentro do núcleo familiar, mas nao responde pela subnotificaçao alarmante da violência doméstica em suas diferentes manifestaçoes. No presídio, predominam os crimes contra o patrimônio, os infratores sao mais jovens, e a taxa de homicídio no mesmo ano era de 15,5%18.

Hilda Marchiori, da Unversidade de Córdoba, Argentina, descreve o fenômeno transgeracional do homicídio no grupo familiar, apresentando as "fraturas" que ocorrem em decorrência do delito. "Nenhum membro escapa do impacto e das consequências emocionais e sociais delitivas". Ela afirma que, no mínimo, três geraçoes estarao expostas a transtornos emocionais por violência familiar. O grupo se dissocia de forma definitiva. A ocorrência das fraturas se deve pelo delito, assim como as consequências, o processo, a situaçao pós-delito e a reestruturaçao familiar. Estas fraturas também estao diretamente relacionadas a comportamentos autodestrutivos, tentativas de suicídio, doença mental, especialmente quadros depressivos e doenças psicossomáticas. É fundamental o apoio à família para que esta sobreviva ao trauma e elabore o luto19.

A vulnerabilidade pré e pós-delito envolve a possibilidade de lidar com a negaçao, como relata Zavaschi e colaboradores. As famílias, como as crianças e adolescentes envolvidos, sao vítimas desse processo e, como bem ressalta a autora, têm exigido medidas "drásticas" recomendadas pela OMS e, dentro do possível, buscadas pelas equipes técnicas20.

4. A fragilidade neurológica

Há várias referências na literatura de que alteraçoes neurológicas estao intimamente relacionadas ao comportamento violento. A correlaçao com retardo mental é um dos fatores de risco ressaltados pela OMS3. Em praticamente todas as populaçoes fragilizadas, o QI baixo ou abaixo da média é um achado frequente no IPF, tanto na populaçao dos internos quanto na populaçao de periciados; na FASE, tanto diagnóstico principal ou como comorbidade3 12 18.

Há também evidências de transtornos de comportamento decorrentes de TCE. No nosso meio foram amplamente estudados por Crespo de Souza que comprovou a subestimaçao do diagnóstico na populaçao do IPF, onde foram estudados 2.820 indivíduos adultos, levantando-se as ocorrências de TCE nos prontuários independentemente de outras variáveis. Foram encontrados 133 casos, representando 4,71% do total que é muito superior ao da média na comunidade. Destes, 94 foram considerados graves e 39 leves. Cerca de 110 casos foram considerados normais no exame neurológico, mas, de acordo com os atuais conhecimentos da neuropsiquiatria moderna, exigiriam atençao mais minuciosa, inclusive os de TCE leves. Afirma que o tema é controverso e que nao existem critérios bem definidos. Relata que, na língua inglesa, recovery e outcome sao usados indistintamente, mas que denotam diferenças nem tao sutis. O primeiro referir-se-ia à total recuperaçao e o outro aos resultados obtidos, podendo significar deficiências persistentes ao longo da vida. As áreas frontais do córtex e pré-frontais sao especialmente sensíveis a sequelas de traumatismos cranianos. Há correlaçao com déficits cognitivos, transtornos de humor, de ansiedade, psicose, apatia, descontrole de impulsos, síndrome pós-concussional21. Os traumas encefálicos exigem atençao e cuidados específicos.

5. O uso de substâncias psicoativas

Há já consenso entre todos os vértices observados que o uso de álcool e outras drogas psicoativas apresentam associaçao com condutas violentas. "El alcohol es el lubrificante más efectivo de la violência contra otros e contra si mismos, así, la mayoria de los alcoholicos sufren uma muerte violenta, incluyendo suicidio y accidentes."2 Estudo ressalta que os pais usuários expoem a prole de duas formas, a primeira é que os filhos tendem a apresentar patologias mentais e uso de drogas no futuro, a segunda é que pais abusadores de drogas costumam ser negligentes com o cuidado de seus filhos que tendem a sofrer mais riscos22. Menezes & Zoratto (1999) encontraram entre os 613 internos do IPF, 143 com abuso de álcool e/ou outras drogas, sendo que em 41 era o diagnóstico principal18. Num levantamento mais recente, Osório, Cataldo, Gauer et al., em 2006, na popu laçao de 617 pacientes, 27% apresentavam diagnóstico relacionado a uso de substâncias psicoativas e, como variáveis correlacionadas, 60,8% dos internos que cometeram crimes contra a pessoa eram usuários de álcool, 30% abusadores de cocaína e 26,5% de cannabis. Quando o delito era contra o patrimônio, 52% eram usuários de cocaína, 47,1% de cannabis e 26% de álcool23.

Em relaçao à populaçao periciada durante o ano de 2000 no IPF, Lisieux Telles encontrou um dado alarmante: o diagnóstico mais comum firmado no total de periciandos, independente de serem considerados imputáveis, inimputáveis ou semi-imputáveis, foi distúrbio relacionado com o consumo de substâncias psicoativas, clareando a já bem relatada relaçao entre conduta delitiva e drogas lícitas ou ilícitas22.

A respeito do uso de drogas nos internos da FASE, a droga mais prevalente é nicotina. Pesquisas apontam que, com o avançar da idade, as drogas vao ficando mais pesadas, da maconha e inalantes vao migrando para a cocaína e o crack, cuja "epidemia" já está exaustivamente sendo denunciada. Também os delitos vao ficando mais graves: do porte para o tráfico, do furto para o roubo e assim por diante, numa crescente escalada de violência12. Na última década, os homicídios cresceram 30,5%, seis vezes mais de a populaçao gaúcha24.


CONSIDERAÇOES FINAIS

O caso de Raul transita entre várias áreas, como nao poderia deixar de ser, visto tratar-se de um adolescente, fase da vida em que há uma transiçao, uma construçao de um indivíduo. O luto da infância, dos pais idealizados, que os jovens normais têm que enfrentar, e a recrudescência de uma poderosa conflitiva edípica nao teve, no caso desse jovem, outra alternativa do que a expressao na conduta. Este delito toma características míticas e dignas de tragédia grega, o desejo pela morte da mae e do irmao, a intencionalidade de culpabilizar o pai e o delírio de um destino triunfante. O clima de tensao vai levando ao clímax do desfecho trágico. Nesse momento, o paciente e sua família encontraram uma equipe disponível, real, que chegou a tempo de evitar as profundas e incuráveis fraturas de um matricídio consumado, podendo haver ainda o suicídio do jovem. A família sobreviveu com sequelas a mais de uma tentativa de suicídio, a mais de uma internaçao, teve uma tentativa de reparaçao, ainda a provável separaçao do casal e o alcoolismo do pai sem tratamento adequado. O rapaz conseguiu fazer uma tentativa de reparaçao, o pai pode assumir uma posiçao um pouco mais valorizada, o irmao mais moço pode usufruir de tratamento, a mae pode também olhar-se e tentar encontrar seu próprio caminho, ou seja, um tratamento bem sucedido. Surge a oportunidade de se refletir sobre esta estatística cruel que se tornou a questao das mortes trágicas em especial no Brasil, e os vários fatores de risco levantados aqui que muitas famílias brasileiras enfrentam sozinhas, assim como as várias equipes de saúde mental públicas.

Os vários vértices aqui apontados tentam descrever o que Jorge Folino, profundo estudioso de homicídios na Argentina, chama de um modelo "operativo" para explicar a conduta homicida, o que nao deixa de ser uma outra versao de uma equaçao etiológica, formulaçao complexa que mostra a subjetividade, o ambiente e a amplitude social25.

As ideias descritas neste artigo sao fruto de muitas inquietaçoes que permeiam a atividade dos que labutam no amparo dos mais vulneráveis e do mais grave nas situaçoes-limite. As angústias de morte, o "sinistro" de Freud assusta, mas, ao mesmo tempo, motiva. Continência, tolerância, formaçao sólida e afeto tornam-se o "feijao com arroz" do trabalho diário. A situaçao desta família, tocada definitivamente pelo desespero, mas com fios de esperança e com a possibilidade de reverter uma perspectiva sombria, torna-se uma experiência gratificante que embasa a capacidade terapêutica da equipe e lança luzes sobre o futuro de um rapaz e de uma família que, reforçada, pode pensar, criar alternativas, soluçoes e sonhar de novo.


REFERENCIAS

1. Brasil. Código penal - organizaçao do texto, notas remissivas e índices por Juarez Oliveira. 26ª ed. Sao Paulo: Saraiva, 1988.

2. Arboleda-Flores J. Prólogo. In: Folino J, Escobar-Cordoba F. Estudios sobre homicídios. Perspectivas forense,clinica y epidemiológica. La Plata: Platense, 2009.

3. Organizaçao Pan-Americana de Saúde. Relatório sobre saúde no mundo, 2001, Saúde Mental: Nova concepçao, Nova esperança. Genéve, Organizaçao Mundial de Saúde, 2001.

4. Day V, Telles L. et al. Violência doméstica e suas diferentes manifestaçoes. R. Psiquiatr RS, 25(suplemento 1): 9-21, abril 2003.

5. Valença AM, et al. Matricídio e transtorno bipolar. Rev Psiq Clin, 2009;36(4):170-4.

6. Folino J. Introducción. In: Folino J, Escobar-Cordoba F. Estudios sobre homicídios. Perspectivas forense,clinica y epidemiológica. La Plata, Platense, 2009.

7. Freud S. Respuesta a Einstein. In: Eisntein A et al. El psicoanalisis frente a la guerra. Buenos Aires: Rodolfo Alonso, 1970.

8. Schuller D. A História da violência:genocídios. In: SBPdePa, Pensando a violência com Freud, Porto Alegre, SBPdePa, 2005.

9. Meneghini LC. Atuaçao homicida como defesa contra ansiedades psicóticas. Trabalho apresentado como tema livre no IV Congresso Psicanalítico Latino-Americano, publicado nos anais. Rio de Janeiro, 1962.

10. Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, Estatuto da Criança e do Adolescente, Porto Alegre, CEDICA, 2010

11. Chess S; Hassibi M. Princípios e prática da Psiquiatria infantil. Porto Alegre, Artes Médicas, 1982.

12. Brasil. Subsecretaria de Promoçao dos Direitos da Criança e do Adolescente. Brasilia: Ministério da Saúde, 2005.

13. Escobar-Córdoba F. Aspectos psiquiátricos- forenses del homicídio juvenil. In: Folino J; Escobar-Cordoba. F. Estudios sobre homicídios. Perspectivas forense, clinica y epidemiológica. La Plata: Platense, 2009.

14. Myers W et al. Psychopathology, biophychosocial factors, crime characteristics, and classification of 25 homicidal youths. J Am Acad Child Adoelsc Psychiatry, 34:11, November, 1995, p. 1483-1489.

15. Schmitt A et al. Personalidade psicopática em uma amostra de adolescentes infratores brasileiros. Rev Psiq Clin, 33(6),297-303,2006.

16. Gerberth V; Turco R. Antisocial Personality Disorder, Sexual Sadism, Malignant Narcissism, and Serial Murder. J Forensic Sci, 42(1):49-60, Jan 1997.

17. Kessler R et al. Patterns and mental health predictors of domestic violence in the United States: results from the National Comorbidity Survey. Int J LawPsychiatr, 24,487-508,2001.

18. Menezes R. Esquizofrenia e liberdade. Manicômios Judiciais, Reforma Psiquiátrica e a Era da Saúde Mental. Porto Alegre: Armazém Digital, 2004.

19. Marchori H. Victimologia. Homicidios en el grupo familiar. Rev Mex Prev Readapt Social, vol 7: 49-68. Mexico: Nueva Epoca, Ene-Abr 2000.

20. Zavaschi ML et al. Crianças e Adolescentes Vulneráveis. Porto Alegre: Artmed, 2009.

21. Crespo de Souza C. A Neuropsiquiatria dos Traumatismos Crâniencefálicos. Porto Alegre: Revinter, 2003.

22. Telles L; Day V. Alcohol and Drugs in a Brazilian Psychiatric Facility. Trabalho apresentado no XXX Congress Law and Mental Health, publicado nos anais, Pádua, 2008.

23. Gauer G et al. Inimputablidade: Estudo dos Internos do Instituto Psiquiátrico Forense. Rev Psiquiatr RS 29(3):286-293,2007.

24. Costa J. Chagas da década. Os crimes que assolaram os anos 2000. Porto Alegre, Zero Hora, 9/1/11

25. Folino J. Estudios argentinos sobre homicidas. In: Folino J, Escobar- Cordoba. F. Estudios sobre homicídios. Perspectivas forense,clinica y epidemiológica. La Plata, Platense, 2009.










* Médica Psiquiatra pela UFRGS. Membro aspirante graduado pela SPPA. Diretora de Perícia do Instituto Psiquiátrico Forense "Maurício Cardoso" de Porto Alegre. Professora colaboradora do programa de pós-graduaçao em Psiquiatria da PUCRS e do HPSP. Membro fundador da Red Iberolatinoamericana de Investigación y Docencia en Salud Mental Aplicada a lo Forense.

Endereço para correspondência:
Vivian Peres Day
Av.Itaqui, 72, sala 504
90460-140 Porto Alegre
Fones: 51 33309005 51 33309005
E-mail: vivianday@brturbo.com.br

Recebido em: 12/01/2011
Aceito em: 20/01/2011

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo