Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):259-269
Melnik CS, Goldim JR. Bioética e psiquiatria: uma interface complexa, possível e necessária. Rev. bras. psicoter. 2010;12(2-3):259-269
Comunicaçoes Teórico-clínicas
Bioética e psiquiatria: uma interface complexa, possível e necessária*
Bioethics and psychiatry: a complex, possible and necessary interface
Cristina Soares Melnik**; José Roberto Goldim***
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A Psiquiatria e a Bioética possuem inúmeras interfaces. No atendimento psiquiátrico, frequentemente surgem situaçoes de questionamentos éticos que provocam reflexoes associadas à Bioética.
A Bioética é uma reflexao complexa, interdisciplinar e compartilhada sobre a adequaçao das açoes envolvendo a vida e o viver1 porque inclui os múltiplos aspectos envolvidos no seu objeto de atençao; é interdisciplinar devido à possibilidade de contar com conhecimentos oriundos de diferentes áreas do saber e é compartilhada por utilizar as diferentes interfaces para realizar diálogos mutualmente enriquecedores2. O termo vida está associado ao conceito de zoe, existente na língua grega, descrito por Giorgio Aganben3 como se referindo à vida natural, vida nua, enquanto viver está associado ao bios, ou seja, a vida política, o bem viver, o estar no mundo.
Em diversas circunstâncias existem duas ou mais abordagens possíveis e defensáveis tecnicamente, sendo importante a identificaçao do problema, a análise e a formulaçao de possíveis resoluçoes, visando a uma tomada de decisao, a fim de diminuir o problema e dar continuidade adequada ao processo. O objetivo, segundo Ephraim Morrein4, é achar a melhor soluçao possível nas circunstâncias reais. Algumas vezes as circunstâncias podem ser alteradas, outras nao.
Para a tomada de decisao, é importante considerar os vínculos, os desejos, os interesses, as tradiçoes e as crenças, visando às alternativas e às respectivas consequências. A Bioética Complexa utiliza vários referenciais éticos para buscar justificativas à adequaçao das açoes, sendo eles os princípios (beneficência, respeito às pessoas, justiça), os direitos humanos (individuais, coletivos e transpessoais), as virtudes e a alteridade2.
No presente artigo, será apresentado um sumário do relato de caso, seguido de uma abordagem bioética que inclui duas alternativas para o caso e suas respectivas consequências.
SUMARIO DO CASO
Raul, o paciente do caso a ser abordado, é um adolescente que chegou à internaçao psiquiátrica após tentativa de matricídio, agressao física ao irmao e suposta tentativa de suicídio. Seu plano inicial era matar sua mae e o irmao com uma faca, depois matar o pai, com a arma de fogo deste, simulando um suicídio. Após iria fugir para a praia com o dinheiro de sua família e com a namorada que supostamente estaria grávida.
Raul é filho de Marta, profissional da área da saúde, e de Pedro, profissional da área de segurança. Raul nasceu de uma gravidez acidental quando seus pais tinham 16 e 20 anos, respectivamente. Quando Raul estava com quatro anos, nasceu Cássio, seu irmao.
A história de episódios de transtornos de conduta na infância e adolescência é controversa. A escola e os pais desconheciam (ou negavam) fatos que Raul relatava como sendo realidade. Um único episódio foi confirmado: Raul agrediu um menino fisicamente menor, e foi reprimido por um agente de segurança. A família fez uma ocorrência policial contra este agente.
Aos 13 anos, Raul sofreu um atropelamento que ocasionou traumatismo crânio-encefálico, com lesoes importantes no lobo frontal bilateralmente. Nesse momento, Raul parece ter perdido o vínculo familiar real, nao reconhecendo mais seus familiares durante semanas, vindo a incorporar essas figuras cuidadoras como pai e mae apenas posteriormente. Raul relatou que, após o acidente, passou a ter dificuldade de ter sentimentos usuais, como compaixao, amor, tristeza. Sentia-se um "morto-vivo" e percebia-se como se nao gostasse de ninguém. A medicaçao recomendada pela equipe nao estava sendo utilizada adequadamente, e, nas semanas que antecederam a tentativa de matricídio, Raul resolvera nao fazer mais o uso do fármaco.
Aos 16 anos, Raul começou um relacionamento com Tamara, uma colega da escola que havia dito ter 16 anos, que era órfa, que morava com os tios em uma casa próxima. Posteriormente descobriu-se que tinha 21 anos, nao era órfa nem morava na referida residência. Tamara afirmou estar grávida de Raul. Segundo ele, era este vínculo amoroso-sexual que o mantinha vivo. Ambos divulgaram a todos que teriam um filho, embora a gravidez nao fosse real. Segundo Tamara, os pais de Raul, que já eram contra o namoro, queriam que ela abortasse. O casal passou a se encontrar apenas durante os dias da semana. Nos finais de semana Raul ficava isolado da família, escrevendo longas cartas à namorada. Em seu isolamento, cultivava a crença de que seus pais mentiam, visando o fim do namoro, e acreditava nas palavras de Tamara sobre a gravidez, apesar de esta versao já ter sido desmentida por um teste laboratorial.
O isolamento de Raul desencadeou uma mudança de comportamento nas duas últimas semanas antes da tentativa de matricídio. O paciente ficou mais agressivo verbalmente, seus pais perceberam risco de agressao física, mas talvez o tenham subestimado, e a mae entao dormia com o irmao enquanto o pai trabalhava. Em um destes momentos, Raul entrou no quarto e realizou a tentativa de matricídio. De acordo com o relato, Raul havia feito uso de álcool associado, pela primeira vez, ao crack.
Após o episódio, Raul e sua mae foram atendidos no pronto-atendimento de um hospital, onde foi feita uma ocorrência policial automaticamente. Os pais declararam apenas tentativa de suicídio, ocultando matricídio. Os tios e avós foram para casa da família limpar o sangue do quarto.
Do pronto-atendimento, Raul foi encaminhado a uma clínica psiquiátrica privada, onde permaneceu durante quarenta dias. A clínica solicitou consultoria à equipe de psiquiatria da infância e adolescência de um hospital universitário, mas nao conseguiu seguir as orientaçoes, mantendo o paciente sedado na maior parte do tempo. Raul entao foi transferido para este hospital, mas sua internaçao causou divergências na equipe de psiquiatria. Alguns acharam adequado interná-lo na instituiçao, outros nao. Optou-se pela internaçao, e a equipe mudou sua conduta habitual, internando um adolescente sem os pais. Raul dizia que foi preso na internaçao por seus pais, e apresentava distância emocional, sem arrependimento pela tentativa de matricídio. Paralelamente, a família começou a fazer terapia no ambulatório. Dois meses depois, Raul foi encaminhado para outra clínica privada, onde ficou um mês, retornando para casa sem nenhum atendimento. Ao voltar para a residência, os móveis estavam em locais diferentes, e um novo quarto foi organizado para o paciente, em uma construçao anexa à casa.
Sem atendimento, a família buscou ajuda no ambulatório do hospital universitário, e, após alguns dias, Raul pediu para ser internado, o que causou novas divergências na equipe em relaçao a interná-lo ou nao, já que ele talvez nao fosse aproveitar o tratamento e que muitos recursos poderiam ser úteis a outros pacientes. Esta internaçao durou mais de um mês, e o paciente recebeu alta. O atendimento em ambulatório continuou, mas o tratamento passou a sofrer intercorrências associadas à dinâmica da equipe: férias e mudanças de residentes.
Perto de seu aniversário de 18 anos, a equipe considerou necessária outra internaçao, mas nao havia vaga. O paciente foi encaminhado para uma clínica privada, onde ficou mais um mês e recebeu alta, pois o plano de saúde utilizado nao mais cobria os custos decorrentes de sua internaçao.
O paciente e a família voltaram ao atendimento ambulatorial no hospital universitário, e os atendimentos passaram a focar o uso de álcool do pai, já que se considerou o alcoolismo como problema central das dificuldades conjugais e familiares, diretamente associadas ao tratamento de Raul. A mae permaneceu em psicoterapia individual, assim como Cássio. O paciente e o pai abandonaram a terapia pouco tempo após Raul completar 18 anos.
BIOÉTICA COMPLEXA - ABORDAGEM DO CASO
Este caso, objeto de reflexao, envolve diretamente cinco pessoas que recebem nomes fictícios, evitando-se ao máximo a possibilidade de identificaçao das mesmas. O paciente identificado é denominado de Raul e a sua namorada de Tamara. A sua família de origem é composta por três pessoas: Marta, sua mae, Pedro, seu pai, e Cássio, seu irmao mais moço.
Os vínculos e os desejos têm forte influência no processo de tomada de decisao. Raul desvinculou-se de sua família após o acidente de que foi vítima, sentindo-se como se nao pertencesse mais a ela. O vínculo com Tamara, porém, tornou-se mais forte do que a realidade e fortaleceu o sentimento de nao pertencimento de Raul à família, ao mesmo tempo em que possibilitou, através da perspectiva de ser pai, uma alternativa de reconstituir uma família. Outros fatos possibilitaram a Raul o fortalecimento da crença de ser diferente dos demais e de nao pertencer à família. Entre eles, a decisao da equipe de internar o paciente sem os pais, o fato de os avós e tios limparem o sangue no quarto após tentativa de matricídio, as tradiçoes e crenças de acobertamento de informaçoes por parte da família, o irmao dormindo com a mae, o pai alcoolista e os móveis em locais diferentes após a alta. Paralelamente a isso, a mae de Raul queria se separar do pai. Os vínculos familiares se esvaíam.
Em relaçao às crenças e tradiçoes, a família acobertava as informaçoes e os fatos, o que pode ser exemplificado pelos pais no momento em que deram queixa contra a intervençao de um segurança quando Raul agrediu um menino, quando os avós e tios limparam o sangue no quarto, quando os pais nao revelaram a tentativa de matricídio à polícia e ao hospital, quando a família trocou os móveis de lugar ao receber Raul de volta. Todos esses fatos sao exemplos de comportamentos que apagam vestígios.
Outra tradiçao familiar é o alcoolismo, identificado no pai de Raul, nos dois avôs e no tio paterno. O paciente começa a dar continuidade a essa tradiçao, também fazendo uso de álcool. O trabalho na área de segurança é outra tradiçao que se repete. O avô, o pai, o tio e agora o próprio Raul trabalham nesta área. Raul, após internaçao, começou a trabalhar na empresa de segurança que o pai trabalha, em funçoes administrativas. Além disso, Tamara teria ficado grávida de Raul acidentalmente quando tinham 21 e 16 anos, assim como os pais do paciente, que tinham 16 e 20 anos quando ocorreu a gravidez acidental.
REFERENCIAL DOS PRINCIPIOS
Princípios sao deveres prima facie, ou seja, que devem ser cumpridos a menos que entrem em conflito com outros deveres de igual ou maior porte, em uma situaçao particular5. Habitualmente, sao utilizados os princípios da beneficência, no sentido de evitar o mal e de fazer o bem, do respeito às pessoas, incluindo a veracidade, a voluntariedade, a confidencialidade, a autodeterminaçao e a justiça por meio do controle social, da vulnerabilidade e da nao-discriminaçao6.
No contexto da área da saúde, beneficência é o dever de agir no melhor interesse do paciente7, ou de sua família, quando o paciente se encontra com determinados prejuízos, como, por exemplo, apresentando risco para si próprio ou aos demais. No caso, embora o serviço trabalhe com atendimento de casos agudos e em curto prazo, a equipe, mesmo com divergências em relaçao a interná-lo ou nao, considerou o risco ao paciente e aos outros e agiu visando ao cuidado de Raul e de sua família. Contudo, ainda utilizando este mesmo referencial, o paciente apresentava a necessidade de ter um atendimento a longo-prazo, diferente do tipo de serviço oferecido pela instituiçao. Embora a dinâmica de atendimento do serviço tenha sido modificada para atender às necessidades deste caso, seria importante identificar outros locais que atendam casos que demandem maior tempo de internaçao.
No caso de Raul, os princípios oscilam entre beneficência e respeito à pessoa. Segundo Clotet8, consentimento informado é um elemento característico do atual exercício da medicina, nao é apenas uma doutrina legal, mas um direito moral dos pacientes que gera obrigaçoes morais para os médicos. Nenhum tratamento deveria ser administrado ao paciente psiquiátrico sem o seu consentimento informado, quando possível. Quando ocorre algum impedimento para o consentimento ser obtido voluntariamente, sem coerçao, como nos casos em que o paciente apresenta risco a si mesmo e aos outros, o consentimento para a internaçao deve ser obtido através dos responsáveis legais. É importante lembrar que o consentimento deve ser visto como um processo e nao como um evento9, portanto é essencial que, no decorrer da internaçao, a equipe explique os procedimentos, as recomendaçoes das propostas mais adequadas, e verifique a capacidade do paciente para compreender e tomar decisoes de forma autônoma durante o tratamento.
Na primeira internaçao de Raul, a beneficência foi priorizada. A internaçao ocorreu contra a vontade do paciente, porém com a autorizaçao dos seus responsáveis legais, com base na tentativa de matricídio e suicídio. Raul estava irritado com os pais que, segundo ele, o teriam prendido dentro da internaçao. A segunda internaçao, diferentemente da primeira, foi solicitada pelo próprio paciente, o que demonstrou uma evoluçao no sentido da voluntariedade para a busca de atendimento, ou seja, o princípio do respeito à pessoa foi preponderante.
A veracidade é essencial para a evoluçao adequada dos atendimentos, mas as informaçoes oriundas do paciente e das outras pessoas envolvidas (familiares e escola) foram controversas. A família, na primeira internaçao do paciente, alegou apenas a tentativa de suicídio, sem revelar a tentativa de matricídio. Os parentes, ao saberem do ocorrido, prontamente foram à casa da família limpar os vestígios das agressoes. No registro da ocorrência policial, constava que as agressoes à mae nao eram intencionais. Outros aspectos controversos dizem respeito aos antecedentes antissociais do paciente, pois a escola e a família desconheciam ou talvez negassem fatos que o paciente revelou terem ocorrido. Na família de Raul, pôde-se constatar uma lógica de acobertamento de informaçoes.
A veracidade também foi problemática com relaçao à Tamara. Inúmeras informaçoes pessoais, familiares e relativas à alegada gestaçao nao foram confirmadas. É outra abordagem para a mesma questao de veracidade. Tamara, conforme relatos, faltava com a verdade, enquanto a família de Raul omitia informaçoes, ambas de forma intencional. É relevante considerar, porém, que, durante os atendimentos em psiquiatria, podem estar presentes múltiplas verdades, e nem sempre o que nao é verdade é uma mentira.
O princípio da justiça nao é evidente neste relato de caso. Mesmo após todas as tentativas de tratamento, Raul, sua namorada e sua família, bem como a sociedade, em última instância, continuam vulneráveis. Desde o ponto de vista mais amplo de Justiça, Raul continua necessitando de um tratamento continuado e prolongado, que nao é oferecido por qualquer instituiçao que a equipe de saúde tenha conhecimento. Talvez o princípio da Justiça tenha sido utilizado quando da controvérsia de internar ou nao Raul na unidade do hospital universitário. A nao discriminaçao, devido à peculiaridade de seu caso, foi que permitiu a sua internaçao, mesmo contrariando as diretrizes habitualmente utilizadas.
DIREITOS HUMANOS
O referencial teórico dos Direitos Humanos pode ser abordado na perspectiva individual, coletiva e transpessoal. Este referencial nao deve ser confundido com o uso destes mesmos Direitos como forma de militância. No início da Bioética, o referencial dos Direitos Humanos teve pequeno destaque que foi progressivamente sendo ampliado com o passar do tempo.
Os Direitos Individuais, que incluem a vida, a privacidade e a nao discriminaçao2, sao tratados prioritariamente neste caso. O direito à vida, tanto do paciente quanto dos familiares e da sociedade, justifica manter um paciente que realizou tentativa de matricídio e suicídio em uma internaçao psiquiátrica, embora contra sua vontade.
A privacidade do paciente deve ser mantida, sempre que possível. As exceçoes ocorrem em situaçoes nas quais existe risco de agressao para pessoas identificadas ou para o próprio paciente. Baseada no dever de confidencialidade, associado ao direito de privacidade, a equipe manteve informados apenas os familiares em risco de agressao por parte do paciente.
O direito à nao-discriminaçao está associado à decisao da equipe de internar o paciente, apesar das divergências no grupo. No decorrer dos atendimentos, a psiquiatria, atuando de forma imparcial, realizou o trabalho com cuidado para que a contratransferência fosse um fator a contribuir para a terapia e nao um impedimento.
Os Direitos Coletivos, que incluem saúde, educaçao, assistência social, como bens comuns a todos os seres humanos, bem como os Direitos Transpessoais, basicamente caracterizados pelos direitos ambientais e pela solidariedade, nao foram enfatizados no presente relato de caso.
Uma consideraçao pode ser feita com relaçao ao Direito à Saúde. É inegável que todo cidadao tem direito de acesso aos serviços de saúde, desde a perspectiva coletiva. O atendimento pontual de demandas individuais pode gerar, como neste caso, situaçoes de grande desconforto nas equipes assistenciais devido à falta de estrutura no sistema de saúde que possa acolher pacientes com demandas muito peculiares que extrapolam as características oferecidas pelos serviços aos quais estes profissionais estao vinculados. Esse desconforto se amplia na medida em que há uma dificuldade na identificaçao de serviços que possam atender a essas demandas. Neste caso específico, a dificuldade identificada foi a necessidade de atendimento a longo-prazo, capaz de possibilitar o tratamento do paciente, a segurança de todos os envolvidos e o seu retorno, de forma adequada, aos estudos, ao trabalho e à sociedade.
VIRTUDES
O referencial das Virtudes é o mais antigo de todos. Virtudes podem ser entendidas como a busca da excelência das açoes humanas, a busca do autoaprimoramento2 ou ainda um traço adequado do caráter de uma pessoa10. O amor, a maior de todas as Virtudes, engloba as demais, servindo de base e justificativa para a adequaçao das condutas do indivíduo2.
De acordo com as informaçoes relatadas no caso, as Virtudes estao quase que ausentes na perspectiva do paciente. Um tênue arrependimento foi relatado e depois desconstruído. Na perspectiva da mae do paciente, este arrependimento nao foi reconhecido como tal. Talvez o que mobilizou a equipe a buscar todos os meios para propiciar o atendimento de Raul e dos familiares foi a virtude da compaixao, entendida como o reconhecimento de alguém que sofre e que gera uma relaçao de ajuda para com ela.
Uma questao pendente de esclarecimento, capaz de ser entendida à luz das virtudes, é a ausência de maiores informaçoes sobre Cássio e Tamara. A mesma compaixao exercida com Raul e seus familiares, especialmente com a sua mae, nao se manifestou com relaçao aos outros, de acordo com os dados que foram disponibilizados.
As virtudes sao um referencial importante na formaçao dos profissionais de saúde, mas de difícil operacionalizaçao na abordagem de casos. Essa dificuldade pode ser associada às questoes de contratransferência, sempre presentes, que podem influenciar na imparcialidade.
ALTERIDADE
A Alteridade é o referencial teórico mais atual e desafiador da Bioética contemporânea. Ao perceber que o olhar do outro é que nos torna nao indiferentes, a Alteridade reconhece a existência da co-presença ética e da corresponsabilidade nessa interaçao2. A percepçao do olhar do outro possibilita a sensaçao de ser, de tornar-se pessoa. Fritz Jahr, em 192711, já havia proposto, de forma antecipatória, o imperativo bioético: respeitar, em princícada ser vivo como uma finalidade em si e tratá-lo como tal, na medida do possível.
O reconhecimento do outro possivelmente está ausente para Raul em relaçao a seus familiares, que sao, para ele, apenas um meio para atingir seu objetivo de conseguir dinheiro e fugir com a namorada, constituindo ou reconstituindo uma nova família. Nesse sentido, é possível perceber uma destituiçao do caráter de pessoa, para a visao do ser humano enquanto coisa, objeto que serve apenas como meio para atingir um determinado fim.
Tamara talvez seja a única pessoa com a qual Raul tenha tido a possibilidade de reconhecer a sua própria existência. Isto pode ser evidenciado pelo vínculo estabelecido entre os dois, mesmo sendo este vínculo baseado em situaçoes fantasiosas. Ambos sao pessoas que nao sao quem aparentam ser, pois Tamara nao é quem diz ser, e Raul nao mais se reconhece a mesma pessoa de antes do acidente. O relacionamento amorososexual com Tamara parece ter sido o fator desencadeador da tentativa de Raul matar seus familiares. A co-responsabilidade de Tamara pela violência do paciente para com os pais e o irmao pode ser identificada, mesmo baseando-se em uma relaçao entre pessoas que se reconhecem como tal, apesar de nao serem quem elas mesmas aparentam ser. Através desse relacionamento, Raul buscava sentir-se vivo, o que parecia nao ocorrer desde o acidente. O paciente relatou à equipe que, desde entao, passou a ter dificuldade de sentimentos usuais, como o amor, a compaixao e a tristeza. Referiu que muitas vezes sentia-se como se nao gostasse de ninguém, percebendo-se um "morto-vivo".
A destituiçao do reconhecimento do outro, possibilitou que, para conquistar o seu objetivo, Raul planejasse matar seus familiares, que, na sua percepçao, nao o eram. A violência se constitui na medida em que exerce, de forma consciente ou em contextos que sugerem inconsciência, atos que negam a condiçao de "outro" do outro, ou seja, daquele que nao pertence ao pólo da decisao12, como a mae do paciente que sofreu tentativa de matricídio, o irmao que o paciente tentou atacar com uma faca e o pai que seria morto com a própria arma de fogo. A isso, chama-se negaçao da alteridade.
Alguns comportamentos da família podem influenciar a agressividade de Raul. Existe um egoísmo compartilhado por todos que é percebido quando a história se esvai através de comportamentos, como tentar apagar as evidências dos fatos, negar os próprios fatos ou ausentar-se da terapia como forma de nao se confrontar com a realidade. Estas sao estratégias de nao envolvimento.
O referencial da Alteridade está presente quando a equipe reconhece a importância de sua responsabilidade pelo outro, no sentido de auxiliar a família no reconhecimento da importância de lidar com os fatos de maneira clara e honesta. O resultado destas açoes é o estabelecimento de uma copresença ética entre todos os envolvidos.
O desafio da equipe assistencial é descobrir o que pode possibilitar o próprio autorreconhecimento do paciente, a sensaçao de estar vivo, no sentido de bios, ou seja, de bem-viver, sentir-se presente no mundo. Esta reconstruçao, baseada no genuíno interesse pelo outro, só pode ser realizada pelo próprio paciente, com o auxílio da equipe, da família e da sociedade.
CONSIDERAÇOES FINAIS
A reflexao ética é um desafio para todas as pessoas envolvidas com o atendimento em saúde mental. É relevante ressaltar que o presente caso foi analisado a partir de um relato escrito pela equipe que atendeu o paciente, sem qualquer outra fonte de informaçoes.
Refletir acerca do relato de caso à luz de uma perspectiva da Bioética Complexa, com base na análise dos fatos e das circunstâncias, utilizando o referencial teórico dos princípios, virtudes, direitos humanos, alteridade, somado ao sistema de crenças, tradiçoes, interesses, vínculos e desejos, possibilitou a visualizaçao de duas alternativas para o problema. A primeira foi a alta do paciente, cujas consequências nao sao previsíveis. A segunda é o encaminhamento para uma instituiçao que o atenda a longo-prazo, cujas consequências estariam associadas à proteçao do paciente, da equipe, da família e da sociedade. As informaçoes oriundas da equipe assistencial, porém, indicam o desconhecimento de outros serviços que possam acolher esta demanda.
A Bioética Complexa nao formula respostas, mas pode auxiliar no processo de tomada de decisao na área da saúde mental, no sentido de identificar argumentos que justifiquem a adequaçao das açoes a serem propostas.
REFERENCIAS
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12. Souza RTd. Três teses sobre a violência: violência e alteridade no contexto contemporâneo - algumas consideraçoes filosóficas. Civitas - Revista de Ciências Sociais. 2001 dezembro;1(2):7-10.
** Psicóloga, Aluna do nível de mestrado do Programa de Pós-Graduaçao em Medicina: Ciências Médicas/UFRGS, Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
*** Biólogo, Professor do Programa de Pós-Graduaçao em Medicina: Ciências Médicas/UFRGS, Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência e Serviço de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Endereço para correspondência:
José Roberto Goldim
E-mail: jrgoldim@gmail.com
Recebido em: 01/04/2011
Aceito em: 05/04/2011
* Atividade de pesquisa realizada com apoio do FIPE/HCPA.
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