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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):252-258



Comunicaçoes Teórico-clínicas

Uso de substâncias psicoativas e violência

Psychoactive substance use and violence

Márcia Pettenon*; Lisia Von Diemen**

Resumo

As implicaçoes causadas pelo uso de drogas sao variadas. A literatura tem demonstrado que usuários de substâncias psicoativas apresentam prejuízos significativos em seus relacionamentos familiares e sociais. O objetivo desse trabalho foi analisar os possíveis fatores de risco que pudessem estar associados ao uso de substâncias psicoativas e a tentativa de matricídio do "estudo de caso Raul". De acordo com o histórico clínico do paciente e com a revisao bibliográfica realizada, podem-se identificar potenciais fatores de vulnerabilidade individual, familiar e social associados ao uso de substâncias psicoativas e ao desencadeamento do comportamento agressivo/criminal no paciente. Desse modo, é consenso entre pesquisadores que, devido à complexidade etiológica envolta ao uso de drogas, é fundamental uma abordagem multiprofissional que abarque todas as áreas afetadas pelo uso de drogas, bem como as suas consequências

Descritores: violência; alcoolismo; família; cocaína; crack.

Abstract

The implications caused by drug use are varied. The literature shows that drug users have significant losses in their family and social relationships. The aim of this study was to examine possible risk factors that could be associated with the use of psychoactive substances and attempted matricide in "Raul's case study". According to the patient's medical history and the literature review, we can identify potential individual, familiar and social vulnerability factors associated with the use of psychoactive substances and the onset of aggressive/criminal behavior in the patient. Thus, there is a consensus among researchers that due to the etiological complexity wrapped with drug use, a multidisciplinary approach that encompasses all areas affected by drug use and its consequences turns out to be imperative.

Keywords: violence; alcoholism; family; cocaine; crack.

 

 

INTRODUÇAO

Uma questao fundamental para a compreensao da origem do comportamento adicto e agressivo se refere à contextualizaçao desse fenômeno multifacetado. Diversos estudos demonstram que o uso de SPA é uma problemática multicausal e que devem ser consideradas as variáveis individuais, genéticas, familiares, assim como a presença de comorbidades psiquiátricas e o meio social1,2.

No caso de Raul, há vários componentes a serem explorados, como a história de alcoolismo na família materna e o alcoolismo do pai, o ambiente familiar, o traumatismo crânio-encefálico que lhe afetou a regiao frontal, o uso pessoal de substâncias psicoativas, a interrupçao do uso de carbamazepina e o envolvimento com a namorada com conduta desviante. Todos esses fatores podem estar relacionados com a violência do paciente, expressa através da tentativa de matricídio. O objetivo desse artigo será analisar de forma mais aprofundada os fatores acima citados e a sua relaçao com impulsividade, agressividade e as suas possíveis conexoes com a tentativa de matricídio.


TIPOS DE AGRESSAO

A agressao é usualmente classificada em dois tipos, a agressao premeditada e a agressao impulsiva. A agressao premeditada representa um comportamento planejado que nao é associado com frustraçao ou resposta a um perigo iminente. É o tipo de agressao presente na personalidade antissocial, mas, em alguns momentos, esse tipo de agressao é endossado pela sociedade, como em períodos de guerra. Já a agressao impulsiva é caracterizada por altos níveis de excitaçao autonômica e precipitada por emoçoes negativas, como medo ou raiva, sendo uma resposta a um perigo percebido3. Este tipo de agressao se torna patológica quando a reaçao é desproporcional ao estressor, pois, até certo ponto, faz parte do comportamento humano de defesa frente a um perigo.

No caso de Raul, temos um histórico de possível agressao impulsiva "ele teria se envolvido em inúmeros episódios de agressoes entre pares, cerca de dez por ano". Por outro lado, na tentativa de matricídio, há claramente a premeditaçao, a qual aparece em vários relatos da mae e da própria confissao de Raul: "Raul assumiu para os pais que seu desejo era de matar toda a família, atribuindo o crime ao pai. Para tanto, pretendia primeiro matar a mae e o irmao com a faca, para que, quando o pai chegasse, matá-lo com sua própria arma já que Pedro, por sua profissao, porta arma de fogo". Essa premeditaçao está associada a outras características de Raul após o acidente, como nao ter afeto por ninguém, nao ter sentimentos de amor, compaixao e tristeza. Essas alteraçoes nao sao infrequentes após traumatismos crânioencefálicos como o de Raul, conforme veremos em detalhes adiante.


TRAUMATISMO CRANIO-ENCEFALICO (TCE)

De acordo com os relatos dos familiares e do próprio Raul, houve uma mudança importante em sua personalidade após o acidente. Houve aumento da agressividade, especialmente com o irmao, indiferença afetiva, falta de empatia, "nunca voltou ao normal". A ressonância magnética de encéfalo demonstrou "alteraçoes cerebrais difusas e lesoes importantes em lobo frontal bilateralmente". Em um estudo que avaliou a agressividade de pacientes seis meses após TCE, foi relatado que 33,7% apresentaram comportamento agressivo significativo nesse período. Nesses pacientes, 41,4% apresentavam lesao no lobo frontal versus 14% no grupo nao agressivo. Outro achado foi a história de abuso de álcool (36,7% x 12,3%) e drogas (26,7% x 5,3%) no grupo agressivo e nao agressivo respectivamente. Há vários relatos de casos de "personalidade antissocial adquirida" após TCE, afetando o lobo frontal4. Uma das principais características da personalidade antissocial é a ausência de remorso, indiferença afetiva em relaçao aos outros. Tais características podem ser evidenciadas quando Raul declara que após o acidente sentia como se nao gostasse de ninguém e que era como se fosse um "morto-vivo". Somente conseguia sentir-se "vivo" quando se envolvia em um relacionamento amoroso-sexual, tal como foi com Tamara. Quando o TCE ocorre na infância, um dos maiores preditores de agressividade é agressividade prévia5, o que também aparece na história de Raul. Nesse estudo, foi realizada uma coorte com 97 sujeitos com idade de 4 a 19 anos para investigar a prevalência de sintomas agressivos durante um ano após o TCE. Os dados demonstraram aumento significativo do comportamento agressivo, problemas de atençao e de ansiedade após o trauma5.


HISTORIA FAMILIAR DE ALCOOLISMO, IMPULSIVIDADE E AGRESSIVIDADE

Cabe salientar também a predisposiçao genética ao álcool que aparece como fator de risco importante no desencadeamento da adiçao do paciente. Além do pai, os avós materno e paterno também eram usuários de álcool. Filhos de pais alcoolistas têm ao menos três vezes mais risco de desenvolver abuso ou dependência de álcool6. Um aspecto importante é que o risco aumentado de desenvolver problema com substâncias nao é direto, acontece através de características intermediárias chamadas de "endofenótipos". Uma característica é considerada endofenótipa se a característica é associada com o transtorno, podendo ser identificada antes do transtorno se desenvolver e prediz um alto risco de para a condiçao no futuro6. Pelo menos quatro endofenótipos foram identificados para o álcool, vermelhidao após uso de álcool (como protetor), alta tolerância ao álcool, comportamentos externalizantes (impulsividade, busca de novidades, desinibiçao comportamental) e comorbidades psiquiátricas (esquizofrenia, transtornos de ansiedade, transtorno bipolar, transtorno de déficit de atençao e hiperatividade) 6. Raul apresentava, mesmo antes do acidente, evidências de características externalizantes, representadas pelos relatos: ... junto com amigos, disparou com arma de pressao em lâmpadas da escola que frequentava ... ele teria se envolvido em inúmeros episódios de agressoes entre pares, cerca de "dez por ano", sendo considerado uma "liderança" em sua escola. Em relaçao aos aspectos familiares, observou-se que o pai do paciente apresentava, aliado ao comportamento adicto, dificuldades no estabelecimento de limites em relaçao ao filho. O pai declarava perda do controle sobre seu filho e que acabava interrompendo as discussoes porque nao via outro fim que nao a agressao física. Além disso, ficou claro um ambiente familiar disfuncional, com brigas frequentes entre os pais associadas ao alcoolismo de Pedro, culminando na separaçao temporária do casal quando Raul tinha 10 anos. Assim, essas características externalizantes, que já tinham uma predisposiçao genética, foram potencializadas pela dificuldade dos pais em colocar limites, pelo ambiente familiar disfuncional, pelo traumatismo crânio-encefálico e finalmente pela associaçao com a namorada com conduta desviante.


USO DE SPA E AGRESSIVIDADE

De acordo com essa premissa, ao fazer o uso de álcool e crack, Raul apresentou uma conduta violenta transformando sua mae em alvo de sua agressividade. É importante destacar que o uso de SPA causa alteraçoes significativas nas funçoes normais do Sistema Nervoso Central (SNC). O uso de crack age no SNC como um facilitador para a manifestaçao de impulsos violentos e agressivos uma vez que atua na regiao pré-frontal que é responsável pela capacidade de discernimento e avaliaçao do comportamento socialmente instituído com prejuízo na capacidade de atençao, memória, raciocínio e tomada de decisoes7.

Em relaçao ao uso de álcool, estudos têm sido consistentes em afirmar que o mecanismo de açao do álcool atua como um potente depressor do SNC, comprometendo a capacidade de analisar e ponderar situaçoes reais8. Um estudo interessante foi realizado para investigar a relaçao entre uso de drogas e a violência, em uma populaçao rural de Kentucky, com presidiários em liberdade condicional. Foram investigados 800 sujeitos de ambos os sexos. Os resultados demonstraram que a maioria relatou participaçao como agressor em crime violento (67,7%). Houve uma diferença significativa quanto ao uso de substâncias: 48% relataram ter utilizado cocaína/ crack antes de cometer uma agressao e 57% além da cocaína/crack, utilizaram outro estimulante9. Em uma amostra de adolescentes espanhóis de 15 a 20 anos (nº 1.282), também foi demonstrado associaçao do uso de álcool e outras drogas com maior risco de manifestaçao de comportamento violento2.

Raul, sob efeito de tais substâncias, apresentou confusao mental, distanciamento afetivo da figura parental e dificuldade de julgamento da realidade, o que dificultou seu contato com a realidade. Os dados clínicos do paciente apontaram para um único uso de crack na vida, mas estudos demonstram que o consumo, mesmo que em pequenas doses, altera o sistema dopaminérgico, e o usuário pode manifestar uma conduta agressiva,10,11,12. A relaçao entre o uso de SPA e a violência nao é direta, porém é inegável que os índices de violência entre a populaçao de usuários/dependentes sejam superiores, comparados à populaçao sem uso 13.


ASSOCIAÇAO COM PARES COM CONDUTA DESVIANTE

Outro significativo fator de risco que pode ter contribuído com o desfecho clínico foi a relaçao disfuncional que se estabeleceu entre Raul e sua namorada, que também apresentava características de um funcionamento antissocial. Ela criou uma personagem fictícia "menor de idade", "grávida" e "ameaçada" pelos pais de Raul, insinuando a ele o quanto seria bom se seus pais "sumissem". Tal comportamento acionou atitudes agressivas no paciente que já apresentava aspectos latentes de agressividade. A dupla comportou- se de forma paranoide, alimentada com ideias de perseguiçao. Dentro desse contexto de convivência amorosa, o paciente e sua namorada criaram um plano de assassinar toda sua família que estaria colocando em risco a integridade do "suposto filho" e a felicidade do casal.


CONCLUSAO

Pôde-se inferir, com parcimônia, que os agentes responsáveis pela manifestaçao do comportamento violento no paciente foram estreitamente vinculados ao TCE na infância, às condiçoes genéticas e ambientais, aliados às características individuais que criaram condiçoes facilitadoras para o uso de SPA. A pluralizaçao desses fatores acionou mecanismos disfuncionais que culminaram na tentativa de matricídio.


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* Psicóloga, Mestranda do Programa de Pós-graduaçao de Psiquiatria da UFRGS. Pesquisadora do CPAD/UFRGS.
** Psiquiatra, Doutoranda do Programa de Pós-graduaçao de Psiquiatria da UFRGS. Pesquisadora do CPAD/UFRGS Centro de Pesquisa em Alcool e Drogas - CPAD ( UFRGS).

Endereço para correspondência:
Márcia Pettenon
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Recebido em: 01/04/2011
Aceito: 10/04/2011

 

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