Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):238-251
Tavares-dos-santos JV, Machado EM. Violência, juventude e reconstruçao dos laços sociais. Rev. bras. psicoter. 2010;12(2-3):238-251
Comunicaçoes Teórico-clínicas
Violência, juventude e reconstruçao dos laços sociais
Violence, youth and the reconstruction of social bonds
José Vicente Tavares-dos-Santos*; Elisabeth Mazeron Machado**
Resumo
Abstract
MICROFISICA DA VIOLENCIA
O tema deste texto sao os fenômenos de violência na juventude, analisando o espaço escolar e as experiências de construçao de políticas de segurança pública na sociedade contemporânea. Nao basta remeter a violência às determinaçoes econômicas ou políticas, embora elas permaneçam atuando como causas eficientes. Abandonamos, entao, a concepçao soberana do poder e, por conseguinte, da violência, na medida em que esta concepçao privilegia a violência do Estado ou contra o Estado. Inversamente, se aceitarmos a ideia de uma microfísica do poder de Foucault1, ou seja, uma rede de poderes que permeia todas as relaçoes sociais, marcando as interaçoes entre os grupos e as classes, podemos estendê-la aos fenômenos da violência. O escopo é construir o conceito de microfísica da violência.
Entre os conflitos sociais atuais, crescem os fenômenos da violência difusa e as dificuldades das sociedades e, dos Estados contemporâneos, em enfrentá-los. Na vida cotidiana, realizam-se uma inter-relaçao entre malestar, violência simbólica e sentimento de insegurança2. Por um lado, estamos vivendo em um horizonte de representaçoes sociais da violência para cuja disseminaçao em muito contribuem os meios de comunicaçao de massa, produzindo a dramatizaçao da violência e difundindo sua espetacularizaçao, enquanto um efeito da violência exercida pelo "campo jornalístico" 3,4. As raízes sociais destes atos de violência difusa parecem localizar- se nos processos de fragmentaçao social: estamos diante de processos de massificaçao paralelos a processos de individualismo, uma "multidao solitária" que vive em uma pluralidade de códigos de conduta. Desenvolvese a vivência da incerteza2,5.
Trata-se de uma ruptura do contrato social e dos laços sociais, provocando fenômenos de "desfiliaçao" e de ruptura nas relaçoes de alteridade, dilacerando o vínculo entre o eu e o outro. Tais rupturas verificam-se nas instituiçoes socializadoras - como nas famílias, nas escolas, nas fábricas, nas religioes - e no sistema de justiça penal (polícias, academias de polícia, tribunais, manicômios judiciários, instituiçoes da justiça penal e prisoes),pois ambos estao em um processo de ineficácia do controle social e passam para uma fase de desinstitucionalizaçao ou de recorrente crise. Em outras palavras, a era da mundializaçao das conflitualidades é caracterizada pelas novas complexidades, pela incerteza, pelas descontinuidades e pela fragmentaçao. Este é um momento de ruptura do contrato social e dos laços sociais, levando a fenômenos de "desfiliaçao" da relaçao entre o eu e o outro6.
Podemos considerar a microfísica da violência como um dispositivo de poder-saber, no qual se exerce uma relaçao específica com o outro, mediante o uso da força e da coerçao. Isto significa estarmos diante de uma modalidade de prática disciplinar, um dispositivo que produz um dano social, ou seja, uma relaçao que atinge o outro com algum tipo de dano. Esta prática composta por linhas de força consiste em um ato de excesso presente nas relaçoes de poder. As relaçoes de violência efetivam-se em um espaço-tempo múltiplo, recluso e aberto, instaurando-se uma raciona-lidade específica.
A JUVENTUDE E A CRISE DAS INSTITUIÇOES
Roudinesco7 discute a nova ordem da família contemporânea, o lugar ocupado pelo filho que se tornou pai por receber "como herança a grande figura destruída de um patriarca mutilado" (p. 86). Freud8 concebe uma família calcada nas leis de filiaçao e nas alianças de afeto que estao frente ao declínio da autoridade paterna e da emergência de uma nova subjetividade, esta última baseada num "nao ser", no desconhecido, no recalcado, colocando o homem diante de outro, que é ele mesmo, familiar e desconhecido. Ao mesmo em tempo em que reprime, a família legitima o conflito, pois enquanto se critica e se questiona, a família está se redimensionando e se reproduzindo. O conflito é a condiçao para a manutençao da ordem coletiva. Pode-se afirmar que a condiçao da existência da sociedade, hoje, é o conflito enquanto movimento, enquanto processo de construçao e reconstruçao das relaçoes sociais.
Dentro dessa nova ordem, podemos citar as funçoes simbólicas de famílias que resultam em um processo ambivalente de socializaçao e de repetiçao de materiais e formas simbólicas de exclusao social. Esta ambivalência leva, no lugar dos jovens "excluídos", dos jovens das classes populares ou "jovens delinquentes", a uma ruptura dos laços sociais que favorece a quebra dos laços familiares. A "crise" da família cria uma liminar da palavra entre as geraçoes. A ausência do pai reduz a formaçao de uma autoridade legítima na personalidade juvenil9, introduzindo o conflito como ordem.
Juventude e adolescência podem ser caracterizadas como o processo de transiçao para a idade adulta, em que a agressao é necessária para alcançar a independência e construir um lugar no espaço social. Crianças e adolescentes vivem um período de transformaçao da natureza entre a tradiçao e a inovaçao10.
Talvez uma característica atual do jovem adolescente seja a incerteza da vida, assim como o exercício e a experiência da violência representam uma ruptura do contrato social e dos laços sociais, levando a fenômenos de "desfiliaçao", quebrando as relaçoes de alteridade e rasgando a ligaçao entre o eu e o outro.
Atendemos a uma pluralidade de normas sociais, levando-nos a ver a orientaçao simultânea de comportamento, muitas vezes divergentes e incompatíveis. Por exemplo, a violência legitimada como uma linguagem e norma de determinados grupos sociais, em contraponto às normas ditas civilizadas, marcadas pela autocontençao e institucionalizadas de controle social11, 12.
JUVENTUDE E CONSTRUÇAO DE VINCULOS
Na teoria do conflito psíquico e do dualismo pulsional, formulada por Freud13 (1920), a realidade psíquica é motivada por demandas conflitantes com uma carga energética que visa ao equilíbrio, buscando reduzir a tensao, de modo a poder realizar o trabalho psíquico14. A agressividade, assim, comportaria duas possibilidades: por um lado, pode ser transformada em agressao e violência; por outro, a agressao é uma forma de conservaçao e afirmaçao do eu.
Se, por um lado, a agressividade é luta de autopreservaçao e de afirmaçao de um processo construtivo e necessário para o pleno desenvolvimento da personalidade dos jovens, por outro, a agressao pode ser um mergulhar desordenado na psique sem referenciais de autoridade. A primeira pode ser expressa pela criaçao cultural, científica ou artística, já a segunda em destruiçao de si e do outro - agressao e violência. Violência, a partir dessa leitura da teoria de Freud15,16,13, seria parte da pulsao de morte em que a agressao ocorre em funçao de falhas surperegoicas (em vários níveis de graduaçao), impossibilitando a construçao de um sentimento de culpa genuíno. Desse modo, a violência constitui-se como uma açao de força ou de coerçao, de modo a causar danos físicos ou simbólicos17.
Outro modo de compreender a agressividade está presente na obra de Donald Winnicott18. Para esse autor, a agressividade ou os impulsos destrutivos, quando fundidos aos impulsos eróticos, sao indicadores de integridade do ego. Winnicott18 refuta a hipótese freudiana de pulsao de morte. Podemos dizer que o sujeito se constitui na tensao dialética entre unidade e separaçao, em um espaço potencial entre o Eu e o Outro, entre o interno e o externo; aqui reside o início da simbolizaçao e das fantasias criativas. A agressividade é vivida como uma experimentaçao do ambiente que, para o infante, é a mae e o pai e, para o adolescente, é a sociedade. Quando há falhas ambientais severas, ou seja, quando o ambiente nao é capaz de acolher a agressividade e devolvê-la transformada, estabelece-se um "círculo" no qual o ambiente precisa ser constantemente testado e destruído.
Este princípio aparece, também, na obra de Wilfred Bion19. Segundo esse autor, o infante projeta sobre a mae "elementos beta" que precisam ser processados e devolvidos como "elementos alfa", fenômeno que denomina de rêverie. Os movimentos de projeçao, acolhimento, processamento e devoluçao dos elementos agressivos do sujeito continuam ao longo de toda a sua existência. No entanto, na adolescência, esses elementos afloram com grande intensidade, a fim de testar a realidade, a integridade e a capacidade de sobrevivência do ambiente social. Desse modo, trafega-se em uma zona de ambivalência, em que agressao e experiências eróticas aparecem entrelaçadas, conferindo significaçao ao Eu e ao Tu (Eu - Outro). De modo sintético, podemos dizer que Eu como sujeito se constrói a partir do reconhecimento do Outro.
Os textos sobre a cultura de Freud20,21 falam "de um mal-estar da civilizaçao", que reaparece na sociedade contemporânea, uma preocupaçao obsessiva pelo individualismo e segurança pessoal2. Os jovens sao particularmente afetados pelo extremo individualismo e narcisismo do "culto da liberdade individual", com incentivos para uma cultura de "ganhadores" e "perdedores", que rompe os laços de sociabilidade: a preocupaçao obsessiva, o individualismo e a segurança pessoal produzem "descontentamento da civilizaçao"5,22,23,2. O jovem se relaciona com a violência de modo ambivalente, por vezes como vítima ou como o agressor: sua vida tem sido uma luta para viver ou para superar a violência2,24,25.
As características da "modernidade tardia" seriam a reproduçao estrutural da exclusao social, acompanhadas de valores da sociedade de consumo, da disseminaçao da violência, da desagregaçao dos laços sociais. Pais26 analisa:
Nas décadas imediatas ao pós-guerra, as transiçoes da juventude assemelhavam- se a viagens de comboio nas quais os jovens, dependendo da sua classe social, gênero e qualificaçoes acadêmicas, embarcaram em diferentes comboios com destinos pré-determinados. (...) (Hoje em dia) o terreno onde as transiçoes têm lugar é de natureza cada vez mais labiríntica. No labirinto da vida (...) surgem frequentemente sentidos obrigatórios e proibidos, alteraçoes de trânsito, caminhos que parecem já ter sido cruzados, várias vezes passados (p. 9-10)26.
En el vínculo entre sujetos, ambos deseos no remiten a uno solo. El deseo del otro es enigmático y, como tal, no espera una respuesta sino una significación. La imposición desde el otro es irrecusable y ha de realizar con ella un conjunto de acciones. O lugar del otro también se significa desde la relación de objeto proyectada y se reúne con la determinación proveniente del vínculo. (.) El sujeto se sostiene en la pertenencia inherente al vínculo y en la identidad inherente al yo, ambos concurren en la construcción de la subjetividad32.
A violência simbólica institui-se por meio da adesao que o dominado tem que conceder ao dominante (portanto, à dominaçao) visto que ele somente dispoe, para pensá-lo e para se pensar ou para pensar sua relaçao com o dominante, de instrumentos de conhecimento que ele possui em comum com ele, sendo a forma incorporada da relaçao de dominaçao, tais instrumentos fazem com que esta relaçao apareça como natural36.
1. A violência social se espalhando para o ambiente escolar, a violência criminal, por exemplo, a violência relacionada às drogas ou à violência criminal.
2. A violência institucional: a incapacidade de a escola repensar os modos de açao. A escola nao consegue fornecer uma visao do futuro, talvez pela indeterminaçao: "a demissao da escola como o princípio norteador da biografia do sujeito como um existencialsenso dar" 35.
3. A violência física nas relaçoes interpessoais, incluindo as famílias, pois a puniçao corporal, assim como o abuso, refletem-se no ambiente escolar. No México, o castigo corporal ainda é possível; na Inglaterra, na França e também na Escócia foi até a década de 90; no Canadá foi banido em 2004 e, em metade dos estados dos Estados Unidos, ainda ele é possível.
4. Os conflitos de códigos de civilidade, social e culturalmente definidos: o caso do patriarcado, o racismo, a discriminaçao baseada na orientaçao sexual ou em hábitos culturais.
5. As imagens de violência presentes na mídia, nas novelas, nos romances e na Internet.
(.) el establecimiento de normas tendientes a mantener el orden y la disciplina, la concentración del poder y la autoridad descansan en la figura del maestro. Los castigos, el maltrato, las humillaciones, la exposición al ridículo son prácticas que forman parte de la vida escolar y familiar"39.
(...) el concepto de maltrato infantil, amplia el espectro y hace complejas las investigaciones sobre violencia escolar en la medida en que posibilita ver más allá de los actos que ocasionan la muerte o lesionan la integridad física y moral de los diversos actores escolares. Además permite avanzar en: 1) la identificación de su presencia, expresiones y comportamiento, 2) el análisis de la relación entre Io particular, lo micro, lo cotidiano y lo general, lo macro, lo estructural de la violencia escolar y, 3) la comprensión de los factores y situaciones a los que aparece asociada la violencia escolar"39.
(...) o adolescente rebelde, mas esta posiçao está na fronteira de agressao contra sua própria família e da lei, podem ser confundidos por educadores como um psicopata, um "caso perdido" quando, na verdade, podem representar um movimento saudável para a libertaçao e definir o seu sentido de identidade10.
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