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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):225-237



Comunicaçoes Teórico-clínicas

A violência transgeracional no caso Raul: exemplo de competente trabalho terapêutico em rede

The transgenerational violence in the Raul case: competent example of therapeutic work in network

Maria Rita D'Angelo Seixas*

Resumo

A incidência de mortes de jovens no Brasil por "causas externas" é crescente e assustadora. É obrigaçao constitucional do Estado proteger crianças e adolescentes, mas nao existe uma política pública sobre violência implantada no país, e os profissionais que desejam trabalhar com famílias em risco, nao têm apoio. Trabalhar com violência doméstica significa necessidade de rede social, que permita a transformaçao de uma cultura de violência em uma cultura de paz. Este trabalho visa explicitar que a violência doméstica é multiplicadora (a família transmite padroes relacionais de violência para seus membros) e demonstrar que, quando existe um trabalho em rede como o do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital Geral e uma disposiçao dos seus profissionais de atuar, dentro dos princípios da terapia familiar sistêmica e de uma ética relacional, é possível um atendimento com sucesso, próximo ao ideal, em situaçoes de violência.

Descritores: política social; violência doméstica; adolescente.

Abstract

The rate of deaths of young people in Brazil by "external causes" is increasing and frightening. It is a constitutional duty of the State to protect children and adolescents, but there is no public policy on violence in the country and the professionals who wish to work with families at risk do not have any support. Working with domestic violence means a need for social networking, allowing the transformation of a culture of violence into a culture of peace. This work aims to elucidate that domestic violence is a force multiplier, because the family transmits relational patterns of violence to their members. It also aims to demonstrate that when there is a networking such as the Psychiatric services for children and adolescents at General Hospital, together with the good will of its professionals to act, within the principles of systemic family therapy and relational ethics, it is possible to provide a successful service, close to the ideal in situations of violence.

Keywords: public policy; domestic violence; adolescent.

 

 

Quem trabalha com violência procura incessantemente parâmetros orientadores que ofereçam algum ponto de apoio e que confiram maior segurança para o trabalho nesta área. A incidência dos casos de violência, principalmente envolvendo jovens, vem aumentando progressivamente. As epidemias e as doenças infecciosas, principais causas de morte entre adolescentes há cinco ou seis décadas, foram sendo substituídas paulatinamente pelas chamadas "causas externas" de mortalidade, que compreendem principalmente acidentes de trânsito e homicídios. No conjunto da populaçao, apenas 12,2 % das mortes no país sao atribuídos a causas externas. Já entre os jovens, tais causas externas sao responsáveis por 70% dos óbitos.

Na populaçao total, o homicídio é a causa de 4,7% dos óbitos enquanto, entre os jovens, é de 39,3%. No Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco estes óbitos chegam a 50%1. Estes dados e outros comentários que faremos neste artigo, sobre a atuaçao do governo em políticas públicas, estarao baseados no manual de prevençao ao uso indevido de drogas: Capacitaçao para Conselheiros e Lideranças Comunitárias2,3.

Apesar de todos estes dados e dos avanços do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), em 1988, na explicitaçao e regulamentaçao dos direitos e garantias das crianças e adolescentes, nao temos ainda uma política nacional de combate à violência.

Para garantir os direitos das crianças e dos adolescentes, o ECA estabelece medidas de proteçao e medidas socioeducativas.

As medidas de proteçao têm por objetivo prevenir o desrespeito aos direitos, por meio de açoes que vao desde a orientaçao e acompanhamento às crianças e adolescentes e a seus pais, com o envolvimento de programas comunitários de apoio à família, até o abrigo em entidades ou a colocaçao em famílias substitutas. No caso de comprovado envolvimento com drogas, o ECA prevê o encaminhamento do adolescente a programas de orientaçao e tratamento1.


Como nao existe uma política pública contra a violência no país, estas admoestaçoes nem sempre têm condiçoes de serem realizadas, ficando-se a maior parte das vezes à mercê da boa vontade dos profissionais envolvidos. Acresce-se a isto o fato de que ninguém se preocupa com a capacitaçao ou proteçao do profissional que trabalha com violência, o que provoca um fenômeno interessante. Os profissionais, como os terapeutas de família, pediatras, psiquiatras, assistentes sociais, psicólogos, que nao têm formaçao para atuar nesta área, chegam a negar que a violência seja parte inerente ao seu trabalho e dizem mesmo que nao querem se envolver com problemas deste tipo, coisa que deve caber à polícia e ao judiciário.

Para superar esta lacuna na formaçao dos terapeutas de família de Sao Paulo, montamos na APTF (Associaçao Paulista de Terapia Familiar) o GEV PRO-PAZ da APTF - Grupo de Estudos e Prevençao sobre Violência Doméstica que realizou entre outras coisas, um curso de capacitaçao para quem trabalha com violência doméstica.

Na minha gestao como presidente da APTF, de 2006 a 2008, realizamos a Jornada Paulista - APTF pela Paz, que versou sobre violência doméstica, e, no ano seguinte, organizamos o Encontro de Formadores em Sao Paulo sobre o mesmo tema.

Por outro lado, os poucos terapeutas que querem se dedicar a este trabalho sao impedidos por uma nova política assistencial, que julga que só se deve passar de uma prevençao secundária nos programas que envolvem saúde mental, apenas em casos muito específicos. Provavelmente por considerarem retrogradamente que tratamento psicoterápico é luxo. Luxo por quê? Os CAPS nao foram pensados para terem terapeutas que façam terapia de graça? As terapias de grupo e familiar que permitem atendimento conjunto, nao favorecem a populaçao? Nao estaremos através de racionalizaçoes sem fundamento, ocultando uma violência ao usuário e ao profissional?

Digo violência, porque é uma atitude discriminatória e nao inclusiva para com o usuário que quer se tratar e se esforça para sair do problema, impedindo-o de ter acesso ao tratamento mais adequado, porque ele nao merece ter este luxo; para com o profissional que tem competência para fazer terapia e é impedido por uma política de prevençao inadequada. Quanto às famílias violentas, que precisariam de uma psicoterapia familiar adequada e profunda, devem se conformar com atendimento familiar. Por quê? Falta de profissional com capacidade e interesse para trabalhar na rede pública nao é. Por que estes profissionais nao conseguem entrar nela e quando entram sao impedidos de atuar como terapeutas? Nao seria esta uma postura preconceituosa e violenta? Deixo estas indagaçoes para serem pensadas, principalmente porque as políticas públicas implantadas se pretendem multiprofissionais. Além disto, este posicionamento viola um dos princípios da terapia familiar, que é de que o profissional, para trabalhar com violência, deve trabalhar em uma rede multiprofissional que o apoie e proteja, já que o judiciário nao tem nenhuma condiçao de lhe oferecer proteçao.

As famílias violentas estao adoecidas na sua estrutura e organizaçao, nos seus objetivos e nas suas funçoes. Por isto precisam ser tratadas para nao serem multiplicadoras de violência, pois, explícita ou subliminarmente, transmitem padroes de violência. As pessoas formadas nestes padroes só conhecem estes padroes e por isso tendem a repeti-los quando entram em conflito, por desconhecimento de outros modelos de açao.

É verdade que alguns conseguem ser resilientes e descobrir modelos mais adequados de comportamento, mas sao exceçoes felizes à regra. Esta terapia nao é fácil, exige prática, conhecimento, preparo pessoal e nao pode ser improvisada nem mesmo substituída por conversaçoes motivacionais. Por isto os profissionais que as praticam deveriam estar inseridos em uma rede pública multiprofissional e contar com todo apoio de governo, até por meio de cursos de capacitaçao, o que infelizmente nao acontece.

Vários sao os profissionais da rede pública que desejam fazer nossos cursos de especializaçao em terapia familiar, mas, nao conseguem financiamento dos órgaos em que trabalham e, como sao mal remunerados, nao podem se auto financiar, e sua capacitaçao deixa a desejar para exercerem seu papel de terapeutas, fechando-se um círculo vicioso.

Além deste princípio, de que o profissional que trabalha com violência, deva estar inserido em uma rede que lhe dê apoio e proteçao e que as famílias violentas transmitem modelos de violência, é preciso dizer que esta transmissao é transgeracional, conceito sobre o qual, discorreremos a seguir.

Diferentes autores concordam que as famílias tendem a repetir padroes de funcionamento que aparecem em uma geraçao e podem passar à geraçao seguinte, da mesma maneira ou sob outra forma, e a este processo chamamos transgeracionalidade4,5,6.


As famílias têm a funçao de transmitir conhecimentos, histórias, valores e padroes de socializaçao para seus membros, sem que isto venha a ser um problema, simplesmente constituirao a herança cultural e espiritual para seus integrantes.

Aprendemos, como diz Moreno7, por um processo de coexistência, convivência e coaçao. A transgeracionalidade só se constitui em um problema quando a forma de transmissao ou os padroes transmitidos impedem o crescimento, obrigam à repetiçao e à submissao, tolhem a criatividade, a espontaneidade de cada um, impossibilitando o desenvolvimento da individuaçao e da autonomia dos integrantes do sistema familiar.

Um dos pontos da terapia familiar em que parece haver consenso é justamente neste, na existência da transmissao de padroes de uma geraçao para outra e na importância disto para o desenvolvimento das novas personalidades e no seu sentimento de pertencimento. Da mesma maneira que assim se forma uma rede transgeracional de modelos de valores, forma-se também a de nao valores, como a transmissao da violência através das geraçoes. É ponto pacífico entre os estudiosos de violência doméstica, que 90% dos abusadores foram abusados quando crianças, e uma enorme porcentagem destes, por pessoas de sua própria família. Daí a responsabilidade que a sociedade deve ter com a recuperaçao da integridade psíquica do abusador, pois nao pôde protegê-lo quando criança. Esta obrigaçao é explicitada no Eca e na Constituiçao, ao afirmarem que "crianças e adolescentes sao seres humanos em desenvolvimento e, portanto, dignos de proteçao especial pela família, pela sociedade e pelo Estado em regime de responsabilidade compartilhada.

A violência é definida de várias formas. Vamos adotar a definiçao da organizaçao Mundial de Saúde (OMS):

o uso intencional da força e do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesao, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privaçao8.


Existem vários tipos de violência. Trataremos aqui da violência doméstica, a que ocorre entre as pessoas que vivem sobre o mesmo teto, que podem ser familiares ou nao. Este tipo de violência pode tomar diferentes formas: física, psicológica, sexual, de abandono ou de negligência.

Em uma mesma família, podem acontecer vários tipos de violência, conforme o alvo a quem é dirigida:

- entre parceiros íntimos (casais heterossexuais ou homossexuais, namorados, ex-cônjuges, ex-namorados);
- entre irmaos;
- contra crianças e adolescentes;
- contra pais ou outro adulto da casa (domésticos);
- contra idosos;
- contra animais de estimaçao;
- contra os bens da pessoa.


Ao pensarmos em todos estes aspectos da violência, o que vem imediatamente à cabeça é a pergunta: O que faz com que uma família, cuja finalidade é proteger, amar, criar, desenvolver e socializar seus membros se deturpe desta maneira e se transforme em uma instituiçao destruidora de personalidades?

Como temos uma visao sistêmica da família e do mundo e os entendemos como conjuntos complexos de elementos que se comunicam e trocam entre si, de tal forma que, ao transformarmos um elemento, os outros se alteram também, fica de início claro que este fenômeno nao pode ser explicado por uma única causa, mas por um conjunto de variáveis que se interpenetram9. A multicausalidade dos fenômenos sistêmicos e a intercomunicaçao dos diferentes subsistemas sao características importantes a serem consideradas no trabalho com famílias.

A família atual é um sistema incluído em um sistema maior: a sociedade. A sociedade pós-moderna é marcada por um crescimento e uma transformaçao crescente e vertiginosa e uma enorme complexidade e ambiguidade. Ao mesmo tempo em que nossas famílias têm hoje condiçoes especiais para serem nichos de muito amor, pois se originam da livre escolha de cônjuges que se amam e, consequentemente, amam também seus filhos, que escolhem quando e quantos querem ter, estas famílias estao inseridas sistemicamente em uma sociedade marcada pela competiçao, pela violência e pelo desamor que circularmente influenciam o núcleo familiar e sao influenciados por eles.

A nossa pergunta pode entao ser respondida: O fenômeno da violência é possível nas famílias, devido à interaçao que esta instituiçao mantém com os diferentes aspectos da cultura na qual está inserida. Em uma cultura competitiva, excludente, intolerante e preconceituosa como a nossa, é fácil entender como as sementes da violência sao plantadas na família, como germinam e como seus frutos sao devolvidos para o social, incrementando esta mesma violência.

Apesar disto, algumas famílias sao resilientes ou têm melhores condiçoes sócio afetivas e selecionam aspectos culturais mais positivos, constituindo- se em NUCLEOS possíveis de cultura de paz. Estes núcleos sao solidários, amorosos, têm compaixao com os demais, pois partilham de suas alegrias e tristezas, procurando apoiar e dar a ajuda necessária, com aceitaçao das diferenças e sem discriminaçao. Dessa forma, nossa cultura, marcada pela revoluçao de valores (uma das causas de sua ambivalência) convive com estas duas famílias tao diferentes, criando muita ambiguidade entre nós, em relaçao à instituiçao familiar.

Fazem parte da cultura de paz os cuidadores (profissionais ou nao) que integram a rede construtiva de ajuda mútua e trabalho comunitário, que procuram criar um mundo mais solidário e justo com muito esforço e valorizaçao da pessoa humana em detrimento da preocupaçao de quanto custa cada um para o Estado e de uma valorizaçao de méritos pessoais que julga se tal ou qual pessoa ou família merece ser tratada ou deve ser deixada à sua sorte, pois nao compensa o investimento que se teria que fazer para tratá-la.

Para trabalhar com violência, precisamos de pessoas que tenham conseguido a paz interior, que nao estejam preocupadas com balanças financeiras e que valorizem igualmente todos os seres humanos, entendendo que, inclusive os agressores, devem ser ajudados e tratados, pois nao deixaram de ser seres humanos, apesar da deficiência que apresentam. Isto só nos fala das dificuldades de vida pelas quais passaram. Esta atitude nao é romântica, mas necessária para superar a cultura de violência na qual vivemos e que nao será desfeita com mais agressoes, mas só com muito trabalho e dedicaçao, pois a paz decorre da justiça social, de muito trabalho para construí-la e nao de atitude contemplativa e julgadora e muito menos de revide.

Quando lemos políticas públicas sobre drogas que visam a algo muito prático, vemos que se apoiam em trabalho comunitário e na inserçao dos agentes e profissionais em redes, em conformidade com um dos princípios da terapia familiar:

O conceito de rede social como um conjunto de relaçoes interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos vem se ampliando dia a dia, à medida que se percebe o poder da cooperaçao como atitude que enfatiza pontos comuns em um grupo para gerar solidariedade e parceria10.


Mais adiante:

A construçao da rede só pode ser concretizada à medida que se associam os princípios da responsabilidade pela busca de soluçoes com os princípios da solidariedade. É preciso que cada cidadao busque dentro de si o verdadeiro sentido da gratificaçao pessoal mediante a participaçao10.


Este mesmo livro, que é um manual para capacitaçao de conselheiros e lideranças comunitárias, coloca como competência do Conselheiro Comunitário incentivar a formaçao e fortalecimento de redes como garantia de acesso aos direitos sociais e ao exercício da cidadania. E, para terminar, aponta como características a serem identificadas e desenvolvidas no trabalho em rede:

1) Acolhimento: capacidade de acolher e compreender o outro.

2) Cooperaçao: demonstraçao de real interesse em ajudar e compartilhar na busca de soluçoes.

3) Disponibilidade: demonstraçao e associaçao a um compromisso solidário. Respeito às diferenças e consideraçao pela diversidade.

4) Tolerância: capacidade de suportar a presença do outro ou sua interferência sem se sentir invadido.

5) Generosidade: demonstraçao de um clima emocional positivo.


Como vêem, existe muita semelhança entre o que foi dito antes e o posicionamento deste Manual do Governo para uma política sobre drogas, nao se tratando de posiçao religiosa ou romântica.

O trabalho com Raul, o adolescente em questao, ajuda-nos a demonstrar que é praticamente impossível se ter algum sucesso com a remissao da violência, sem que se esteja inserido em uma rede multiprofissional.

A luz dos princípios que apresentamos e que representam a nossa compreensao sobre alguns pontos básicos para se trabalhar com famílias com violência, procuraremos analisar o caso Raul, que foi trazido como motivador deste artigo. Entendemos que este caso tem peculiaridades que aumentam as dificuldades de se dar uma orientaçao segura para seu desenvolvimento.

O fato de Raul ter sofrido um traumatismo craniano grave, com consequências serias para seu funcionamento psíquico, como dificuldades de sentir, o que o fazia perceber-se como um morto-vivo, que só conseguia sentir-se bem quando se envolvia com um relacionamento amoroso sexual, como o foi com a namorada (sic), fez com que a equipe que o recebeu para tratamento solicitasse avaliaçao neurológica e psicológica.

O diagnóstico da equipe da neurologia sobre as lesoes no lobo frontal bilaterais constatou que elas eram suficientemente intensas para deixar Raul mais suscetível a descontrole de impulsos e alteraçoes de personalidade; o fato de ele estar tomando doses baixas de medicaçao na época do ocorrido; a avaliaçao psicológica detectando principalmente distanciamento afetivo, as dificuldades de julgamento da realidade e a conduta sedutora, o que nos leva a valorizar as causas orgânicas como um dos determinantes importantes de seu comportamento homicida, deixando a transgeracionalidade em segundo plano, mas sem desconsiderá-la para a soluçao de caso. A multicausalidade é um dos princípios fundamentais da visao sistêmica, mas podemos, em casos como estes, priorizar as diversas causalidades.

O que mais me encantou neste processo, foi a atitude ética da Equipe do Hospital Geral, especificamente o Setor de Psiquiatria da Infância e Adolescência, nao abandonando o caso após o diagnóstico do neurologista, nao o qualificando como incurável e tendo sido capaz de acertar as discordâncias internas com a parte da equipe que passou a considerá-lo um caso dispendioso e que estaria ocupando lugar de outros mais rápidos e que talvez tivessem maior proveito. Estes casos, porém, teriam condiçoes de ser atendidos por outras equipes ou pessoas, o que acredito nao ser possível para o caso Raul. De qualquer forma, a parte da equipe que pensava assim também está de parabéns, pois soube acatar a decisao diferente da sua e, acredito, ter tido a possibilidade de acatar um olhar diferente do seu, com o sucesso conseguido com o caso. Esta equipe, funcionando desta forma, cumpriu com as características do trabalho em rede que já citei: acolhimento, disponibilidade, tolerância, generosidade.

O caso Raul, em vários momentos, nos reafirma a importância de atender em rede situaçoes de violência doméstica. O fato de contar com uma rede multiprofissional, tornou possível a ajuda prestada a esta família, além da presteza da equipe no acompanhamento da evoluçao dos acontecimentos. Essa equipe soube usar de maneira muita adequada todos os recursos disponíveis: a história completa, incluindo queixa, narrativa do fato, antecedentes, história do casal, história do desenvolvimento de Raul, pesquisa de antecedentes antissociais, descriçao do atropelamento e das consequências físicas e psíquicas, envolvimento de vários serviços de saúde e trabalho com o judiciário.

Logo que recebeu o caso, a preocupaçao da equipe foi de formar vínculo de confiança com a família, atitude louvável, uma vez que, sem ser aceito pelo sistema e sem poder entrar nele, ninguém consegue auxiliar uma família. Imediatamente foram solicitadas extensas avaliaçoes neurológicas e psicodiagnósticas. Os necessários medicamentos foram ministrados com a preocupaçao nao só de evitar a agressividade e manifestaçoes psicóticas, mas de lhe permitir uma qualidade de vida afetiva melhor, possibilitando maior contato com sentimentos, recorrendo, ainda, à internaçao para cuidar da depressao que surgiu acompanhada da terapia individual. O paciente era tratado como um ser integral, o que nao é comum hoje em dia, pois cada vez mais a preocupaçao com a remissao do sintoma é o mais importante, sendo que, em muitas políticas de Estado, o tratamento psicoterápico é abolido ou reservado a casos gravíssimos, por ser considerado dispendioso (atitude pouco humanitária), coisa que nao foi seguida aqui, pois, paralelamente, a família foi acompanhada por terapia familiar para entender o que acontecia com o rapaz.

A equipe nao descuidou também de encaminhar laudo à Promotoria da Infância e Juventude, enfatizando a gravidade do caso e os riscos de novas agressoes. Este comportamento é profundamente adequado e ético, pois já foi sobejamente provado que ou o terapeuta trabalha aliado ao judiciário nos casos de violência doméstica ou pode muitas vezes nao conseguir manter o agressor em tratamento e acabar sendo conivente com ele, que forçará a família a abandonar o tratamento, continuando as agressoes em casa, agora mais fortalecido e encoberto pela aparente melhora11.


Após as investigaçoes necessárias, o Hospital Geral, apesar de achar que o paciente deveria permanecer em internaçao, precisou liberá-lo por ser uma clínica para atendimentos agudos e por nao acreditar que Raul se beneficiaria com o convívio com pacientes regressivos da unidade psiquiátrica. Mais uma vez procurando trabalhar em conjunto com o judiciário, a equipe buscou o pronunciamento legal, considerando que o paciente tinha indicaçao de permanecer internado por tempo indeterminado, mas nao em sistema prisional para adolescentes, pois, devido a ser muito influenciável, Raul nao se beneficiaria com este convívio, o que denota novamente a preocupaçao com a totalidade da pessoa tratada.

O adolescente foi transferido para outra unidade psiquiátrica que, contrariando as decisoes, deu-lhe alta um mês depois. A família organizou a casa de maneira que, à noite, Raul ficasse isolado e nao oferecesse risco e voltou a procurar o auxílio do Hospital Geral para tratamento ambulatorial, provavelmente pelo vínculo forte construído com estes profissionais e por ter se sentido efetivamente ajudada por eles que a acolheram, apesar de conti-nuar ainda a divergência interna em relaçao ao seu atendimento. Quero ressaltar que, outra vez, a equipe atendeu às orientaçoes adequadas a tratamentos de famílias com violência, através de intervençoes multissistêmicas uma vez que nesses casos a prática já mostrou ser preciso atendimento psicoterápico nao só ao paciente, mas a todo o sistema ao qual pertence e que também está traumatizado. A medicaçao de Raul foi reavaliada e mantida, iniciou-se a terapia individual e outra intensiva com a família (da qual Raul participava quando a equipe julgava necessário), para orientá-la a conviver nessa situaçao e desenvolver padroes de conduta alternativos, de maior acolhimento e mais adequados às condiçoes de relacionamento dos que os repetidos transgeracionalmente, que eram de agressividade e relacionamento desigual do casal.

Também foi orientada a troca de escola para Raul, bem como a busca de um estágio de trabalho, para passar as tardes perto do pai. Novamente chamam a atençao os cuidados englobando todas as áreas da personalidade de Raul, denotando um trabalho extremamente humanizado, dificilmente encontrado em instituiçoes de Saúde pública ou privada. Na Política Nacional de Prevençao às Drogas, este atendimento global está longe de ser preconizado, pois se restringe, como já registrado, a conceitos nao medicalizados de prevençao, que praticamente excluem os tratamentos psicoterápicos ou os indicam apenas em casos muito graves. No manual está escrito que só serao encaminhados para terapia os casos que nao aceitam os grupos motivacionais e que provavelmente também nao aceitarao a terapia, enquanto que aqueles que a pedem e poderiam se beneficiar com este tratamento sao encaminhados para grupos nao terapêuticos.

Os profissionais que trabalham com terapias nao têm entrada no serviço Público, pois a política é de prevençao, e eles sao considerados desnecessários. Se por ventura sao admitidos, sao impedidos pela direçao do serviço de fazerem terapia, numa atitude lamentável de exclusao de toda uma classe profissional. Nao é, portanto, sem motivo que estou tao encantada de verificar que esta equipe funciona de forma tao diferente do usual, observando todos os princípios da Terapia Familiar e mostrando como isto é possível e proveitoso em uma instituiçao pública.

Nao para aí o cuidado. Poucos dias depois, Raul precisou ser internado novamente por depressao com risco de suicídio e, apesar de parte da equipe continuar contrária, aconteceu sua internaçao e, desta vez, por tempo indeterminado, com o único intuito de proteger sua integridade física e proceder a um trabalho familiar intenso, com uma terapia voltada para o trauma. Durante os quatro meses que Raul permaneceu internado, cada pessoa da família foi vista também individualmente e recebeu tratamento medicamentoso, psicoterapia individual e familiar, incluindo as famílias de origem representadas pelas duas avós e tios. Graças a isto, realizou-se um trabalho longo de perdao com a mae, primeiro legal, livrando o filho das acusaçoes judiciárias, e depois pessoal, necessário para esta mae poder cuidar adequadamente do filho.

Organizou-se a ajuda dos familiares, para nao deixar a mae e o irmao a sós com o paciente e construiu-se uma organizaçao familiar de tal ordem que possibilitou a volta de Raul para casa. Houve inclusive uma tentativa de tratar o pai do alcoolismo, sem, todavia, se conseguir a adesao do mesmo.

Próximo de fazer 18 anos, houve necessidade de nova internaçao por depressao, e Raul foi encaminhado para outro hospital psiquiátrico, onde a equipe foi visitá-lo, com colaboraçao da equipe do referido hospital. Novamente, ao ser liberado, já quase com 18 anos, o pai solicitou que ele fosse encaminhado novamente ao Hospital Geral, o que foi aceito mediante a adesao do pai ao tratamento contra o abuso de álcool. Pai, filho e irmao entraram em tratamento individual, e a mae também continuou sua terapia, além de toda a família ser atendida em terapia familiar, o que lhes possibilitou dar mais limites para os filhos. Infelizmente o pai e Raul quiseram sair da terapia individual. Raul, porque estava trabalhando e estudando e nao tinha mais horário para tal, revelando sua nova capacidade de inserçao social adquirida com o tratamento. A família declarou que as relaçoes familiares haviam melhorado muito e que Raul conseguira lidar bem com situaçoes que lhe causavam raiva.

Como a condiçao para a terapia familiar continuar era que Pedro se mantivesse em terapia individual, foi combinada alta com a família. A mae começou a solicitar separaçao, porque nao queria mais continuar com Pedro desde que este recusara se tratar. O irmao resolveu seus problemas de medo e passou a se relacionar bem com Raul.

Repetimos resumidamente o final do caso para ressaltar a adequaçao social, familiar e pessoal que resultou deste tratamento prolongado e cuidadoso e que só foi possível devido ao acompanhamento desta rede de serviço ética, competente e firme que queremos parabenizar.


CONCLUSAO

Este é um caso que, à primeira vista, se consideraria sem soluçao. Este menino, se deixado em outras maos, provavelmente hoje estaria em um hospital psiquiátrico, com sua vida cortada, com a família esfacelada ou continuaria num ambiente de briga constante, e este irmao caminharia para uma fobia que talvez o incapacitasse.

Vemos, contudo, que, quando se seguem princípios sistêmicos de atendimento em rede multiprofissional que ofereça diferentes tipos de tratamento, considerando-se a multicausalidade do caso, que possibilite mudança de modelos familiares inadequados, assim como os sistemas individuais, que se possa, com persistência ética e competência, nao só ultrapassar os empecilhos orgânicos, mas também proceder a uma transformaçao conjunta de valores que informam os antigos padroes familiares e rompem o círculo da transgeracionalidade (apesar de nao ser determinante para o comportamento homicida de Raul), foi indispensável para sua recuperaçao. Estas transformaçoes mudaram a cultura da violência em que esta família vivia e possibilitaram a sua inserçao social. Como já havíamos marcado, foi necessário muito trabalho para que se instalasse uma cultura de paz nesta família e se fizesse a justiça social a que estas pessoas tinham direito.

Casos como este trazem a esperança de que, se chegarem ao conhecimento das autoridades competentes, podem ajudar a demonstrar a importância da criaçao de uma política pública nacional sobre violência nos moldes da atual política existente sobre drogas que (nos seus princípios gerais) é muito adequada, mas, menos preconceituosa e excludente do que esta, particularmente no que diz respeito aos níveis de prevençao secundária e terciária, bem como à forma subliminar como estas limitaçoes sao colocadas.


REFERENCIAS

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11. Furnnis T. Abuso sexual da criança: Uma Abordagem Multidis-ciplinar, Manejo,Terapia e Intervençao Legal Integradas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.










* Pedagoga; psicóloga; psicodramatista; psicoterapeuta clínica; especialista em Orientaçao Educativa; Docente e Supervisora de Psicodrama; Doutora em Psicologia pela PUCSP; Docente do departamento de Psicodrama do Instituto Sedes Sapientiae; Docente do departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de Sao Paulo; Coordenadora da Escola de Sociodrama Familiar Sistêmico.

Endereço para correspondência:
Maria Rita D'Angelo Seixas
Av. das Magnólias, 642, Cidade Jardim
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TEL: (011) 38134227 Fax: (11)35963585
E-mail: ritaseixas@uol.com.br

Recebido em: 30/06/2011
Aceito em: 03/07/2011

 

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