Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):218-224
Bernstein DA. Comentário sobre o caso Raul: ponto de vista de um psicólogo americano. Rev. bras. psicoter. 2010;12(2-3):218-224
Comunicaçoes Teórico-clínicas
Comentário sobre o caso Raul: ponto de vista de um psicólogo americano
Comments on Raul's case: an American psychologist's approach
Douglas A. Bernstein*
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
As circunstâncias do caso "Raul," e os dilemas associados com o seu tratamento e o de sua família, representam um dos mais difíceis enfrentados por profissionais da área da saúde em qualquer país do mundo. Temos aqui um jovem que se mostrou capaz de agressao violenta e potencialmente mortal contra um ser humano, mais grave ainda, sua mae e seu irmao, e mesmo se seria fácil descartá-lo como um menino "mau" que deveria ser posto na prisao, outros fatores - inclusive o uso de drogas, o traumatismo craniano, e a influência do comportamento inadequado de seu pai alcoolista e dependente - sugerem que Raul pode nao ser inteiramente responsável pelo seu comportamento, e considerando a sua idade talvez ainda possa ser recuperado através de um tratamento. Os profissionais da saúde mental tendem a focalizar estes fatores genéticos, biológicos, e de aprendizagem de comportamento social quando devem intervir em casos como o de Raul. Seu ofício é o de encontrar meios para reduzir ou talvez mesmo reverter os efeitos destas influências nefastas de maneira que o paciente possa se encaminhar para um comportamento mais adaptado.
O mínimo que podemos dizer é que esta profissao é difícil. No comentário que vou fazer deste caso, considero apenas a perspectiva da lei americana, no contexto das responsabilidades profissionais e éticas (e o risco de ser processado por prática profissional inadequada) que governa as escolhas dos profissionais da saúde mental nos Estados Unidos. As leis de cada país sao "a encarnaçao das atitudes, preconceitos e valores"1 de uma sociedade, e nos Estados Unidos este caso nao seria tratado apenas em termos clínicos, mas em termos da responsabilidade, tanto a do paciente quanto a dos profissionais de saúde mental que tentaram ajudá-lo.
Consideremos a situaçao que os profissionais enfrentaram neste caso.
Eis um jovem que cresceu num ambiente familiar conturbado pelo alcoolismo, que tinha sofrido um traumatismo craniano que pode ter afetado suas emoçoes, memória, e comportamento, e cujo temperamento herdado presume-se que resultou - mesmo antes do traumatismo craniano - na tendência precoce à agressividade, impulsividade, e possivelmente uma perturbaçao do comportamento (vandalismo, liderança na agressao entre pares). Ainda que os pais tenham minimizado e até desmentido a importância destas tendências, a controvérsia sobre os transtornos de conduta prévia do paciente mostra que estes nao podem ser descartados. Profissionais da saúde mental nos Estados Unidos teriam lhes dado um peso considerável pois sao considerados precursores bem corroborados de comportamento criminoso subsequente2. Raul demonstrou o que se pode considerar um estágio precoce do desenvolvimento da personalidade anti-social porque acabou confessando que tinha planejado o assassinato de toda a família de maneira a poder roubar o dinheiro e o carro novo do pai, fugir com a namorada, e fazer seu pai passar por assassino. Ele também nao mostrou nenhum remorso além do que chamaríamos nos EUA uma "tentativa de suicídio simbólica" quando seus planos falharam. Afinal de contas, um jovem que tinha preparado tao cuidadosamente durante semanas a tentativa de assassinato de sua própria mae, e a tinha executado com tal violência, poderia certamente ainda melhor concretizar uma auto-agressao se realmente tivesse esta intençao. Uma explicaçao mais plausível seria considerar que esta "tentativa de suicídio" ocorreu quando ele se deu conta que nao ia escapar às consequências de seus atos, e imaginou que se parecesse desesperado - oferecendo "sangue por sangue" - seria uma maneira de pagar pelo que fez. Quanto à sua depressao, podemos questionar a sua natureza, pois poderia ter sido gerada pela destruiçao de suas fantasias grandiosas e nao pelo remorso do sofrimento que infligiu à sua família.
A IRM realizado no hospital após a tentativa de matricídio mostrou lesoes bilaterais nos dois lobos frontais, áreas nas quais o dano causado por traumatismos cranianos ou outros fatores tem sido associado ao comportamento agressivo e violento3. Em um estudo recente, por exemplo4, lobos frontais lesionados foram diretamente associados à incapacidade para sentir empatia pelo sofrimento de outros.
Em resumo, Raul é um jovem apresentando um risco de agressao maior do que o normal. Sua periculosidade se revela aumentada pelo fato de que a tentativa de matricídio nao foi passiva; ele nao tentou envenená-la ou sabotou a escada ou o carro que ela ia usar. Nem roubou uma arma para atirar à distância. Jogou-se sobre ela e usou uma faca para tentar abrir a sua garganta. Este tipo de violência sangrenta e intima reflete uma capacidade de agressao que destaca Raul dos outros adolescentes impulsivos e agressivos. Na verdade, sua impulsividade, somada à sua incapacidade para tolerar frustraçoes, sugeriria que é somente uma questao de tempo antes que ele agrida ou assassine alguém que esteja impedindo a realizaçao de seus desejos.
AVALIAÇAO DE RISCO DE VIOLENCIA
No relato do caso Raul nao temos indicaçao de que os profissionais de saúde mental encarregados do caso tenham aplicado a avaliaçao sistemática que teria ocorrido nos EUA onde se teria empregado uma ou mais técnicas standard de avaliaçao de risco de violência que estao atualmente disponíveis5. Aparentemente a avaliaçao realizada focalizou somente as medidas neurológicas e psicológicas tradicionais que visam a estabelecer um plano de tratamento. Em seguida o plano de tratamento foi executado, aparentemente sem levar em conta o risco de violência que teria levado os psicólogos americanos a considerar cuidadosamente as consequências da decisao de tratamento em meio aberto ou fechado. A decisao tomada de tratamento ambulatorial para Raul é difícil de justificar do ponto de vista Americano porque uma avaliaçao do risco poderia facilmente ser feita colhendo provas das quatro áreas que a pesquisa sobre fatores de risco mos trou serem de grande importância para predizer a violência: (a) tendências do temperamento como, por exemplo, em relaçao à raiva e à impulsividade, (b) fatores clínicos como, por exemplo, sintomas de perturbaçao mental tais como depressao, (c) fatores da historia como, por exemplo, comportamento violento prévio (d) fatores contextuais, como, por exemplo, estabilidade do ambiente familiar, suporte social, uso de drogas). Do ponto de vista da avaliaçao do risco que é a perspective predominante nos EUA, provavelmente teria sido constatado que o risco de violência de Raul é superior ao normal conforme indicam as agressoes prévias, o pensamento psicopático, as atitudes criminosas e os problemas de abuso de substância6.
Um dos instrumentos mais usados nos EUA para verificar o nível de risco de violência é o Guia de Estimativa do Risco de Violência (VRAG: Violence Risk Assessment Guide)7. Este guia consiste numa lista extensiva de fatores associados com problemas ocorridos na infância, adolescência e adultez. Os resultados podem ser resumidos num escore numérico que pode ser usado para determinar se o paciente se encontra na categoria de risco baixo, médio, ou alto. Uma copia do VRAG pode ser consultada no site http://www.tn.gov/mental/policy/forms/MHDDvrag.pdf e seu uso é apropriado tanto para crianças como para adultos.
Como Raul foi tratado? O primeiro passo, como é o caso da vasta maioria dos problemas mentais hoje em dia, foi a prescriçao de uma combinaçao de drogas e psicoterapia, neste caso tanto para o paciente quanto sua família. Em seguida, para proteger sua família, e a sociedade, da possível agressividade de Raul enquanto seu tratamento continuava, ele foi internado numa instituiçao psiquiátrica, mas nao numa prisao psiquiátrica onde a influência de pares ainda mais agressivos poderia ter sido contra-produtiva. Esta internaçao foi certamente uma boa ideia, mas ele recebeu alta depois de apenas um mês. O relato nao explica a decisao de alta mas na ausência de uma justificativa convincente - tal como uma dramática melhora documentada na sua organizaçao cognitiva, emocional e comportamental - a alta pode ter sido uma decisao errônea, particularmente porque, aparentemente, nao se acompanhou de nenhum plano de tratamento. Se os profissionais daquele hospital psiquiátrico acreditavam que Raul nao representava mais um perigo, ou nao precisava mais de tratamento, sua família parecia nao concordar, pois quando ele voltou para casa lhe deram um quarto separado do resto da casa por uma porta que estava trancada de noite!
Quando a família procurou mais tratamento, o enfoque anterior foi aplicado novamente, isto é, drogas psicotrópicas para Raul, sua mae e seu irmao, e terapia para todos. E num esforço bem intencionado para construir vínculos entre o pai e o filho, conseguiu-se que Raul tivesse um estágio de trabalho na companhia de segurança onde o pai trabalhava. Este esforço levanta pelo menos duas questoes. Em primeiro lugar, ainda que normal mente seja uma boa ideia cimentar o vínculo entre um adolescente e seu pai, neste caso podemos temer a natureza da influência que este pai pode exercer. Este homem recusa-se a admitir seu alcoolismo, mostra-se fraco e dependente, sabota a terapia familiar e mostra-se em tudo o oposto do modelo de papel masculino que Raul necessita - modelo que é frequentemente difícil de achar em casos como o de Raul, quer seja no Brasil ou nos EUA. Em segundo lugar, o trabalho numa companhia de segurança coloca um jovem potencialmente perigoso em um local de trabalho onde há acesso a armas de fogo. É verdade que se supoe que ele só possa trabalhar no escritório, mas um jovem articulado e sedutor como Raul pode bem descobrir onde estao as armas, e pode tentar roubar uma delas. Se isto acontecesse, nao queremos imaginar as consequências para os profissionais da saúde mental caso Raul venha a cometer um crime com uma arma que ele obteve num emprego recomendado pelos seus médicos. Nao posso imaginar um profissional da saúde mental nos EUA arriscando a açao legal que poderia resultar desta recomendaçao.
De todos os modos, a partir da re-hospitalizaçao de Raul devida ao fato dele dizer se sentir deprimido e ter ideias suicidárias, o foco da terapia tornou-se ajudar Raul a assumir a responsabilidade pelo ataque à sua mae, e pedir perdao. Este objetivo é muito legítimo, mas o resultado que parece ter sido obtido poderia também ser atribuído à pressao de adaptaçao social e ao desejo evidente dos terapeutas, assim como a própria preocupaçao de Raul sobre o que poderia vir a lhe acontecer (talvez mesmo a prisao) se ele nao se conformasse a estas expectativas. Do ponto de vista de muitos psicólogos americanos, sobretudo daqueles que adotam um enfoque cognitivo-comportamental do tratamento, outros seriam os objetivos prioritários a atingir, ou seja, ajudar Raul a construir as habilidades cognitivas e comportamentais que necessita para reagir de maneira mais adaptada e nao-agressiva quando confrontado a frustraçoes e outros elementos que provocam stress em casa, na escola e em outras situaçoes. A necessidade de promover estes objetivos é evidente no fato de que, mesmo após a terapia ter aparentemente melhorado o insight de Raul quanto à sua culpa e medo, planos foram feitos na sessao de alta para que sua mae e seu irmao nunca fossem deixados sozinhos com ele.
Esforços terapêuticos posteriores parecem ter continuado de maneira esporádica, e com sucesso limitado. Este resultado a longo termo nao é raro, mas em um caso como o de Raul, onde a impulsividade e a agressividade permanecem riscos confirmados, as comunidades legal e de saúde mental partilham uma responsabilidade pesada limitando suas intervençoes visando à reabilitaçao fora de uma instituiçao. Nenhum dado do relatório do caso reduz a preocupaçao de que Raul, agora um homem, possa ser ainda uma ameaça para a sua família, e possivelmente para outros. Se ele nunca tives se realmente cometido um crime violento, teríamos que admitir que haveria pouco ou nada que as comunidades legal e de saúde mental poderiam fazer para mantê-lo em algum tipo de instituiçao mas, como vimos, segundo as pesquisas sobre avaliaçao de risco de violência, seu comportamento representa um aviso claro de risco de agressao futura, e assim sendo, se ele realmente ferir ou matar alguém algum dia, poderia ser argumentado durante o seu julgamento que a responsabilidade por suas açoes deveria ser partilhada por aqueles que poderiam e deveriam ter visto o perigo, mas falharam em avaliá-lo ou em tomar as necessárias providências.
Nao seria justo nem razoável esperar que profissionais de saúde mental tomem decisoes perfeitas em cada caso clínico, mas a partir da perspective Americana, espera-se que usem todos os instrumentos disponíveis para avaliar o risco que o paciente apresenta de reincidir numa agressao violenta. Caso contrário, o resto da sociedade é levado a servir de participante involuntário e nao-informado de uma experiência para tentar tratar pacientes potencialmente perigosos. Neste caso, a mae e o irmao de Raul parecem ser os membros da sociedade mais expostos e, depois, do que eles já sofreram, deixá-los em perigo permanente parece dificilmente justificado.
REFERENCIAS
1. Freidman L (1993). Crime and punishment in American history. New York: Basic Books, citaçao p.101.
2. Dodge KA, Greenberg MT, Malone PS, & the Conduct Problems Prevention Research Group. (2008). Testing an idealized dynamic cascade model of the development of serious violence in adolescence. Child Development, 79, 1907-1927.
3. Cassel E & Bernstein DA (2007). Criminal behavior. (2nd ed.). New York, NY: Psychology Press. p. 62.
4. Shiota MN, & Levenson RW (2009). Effects of aging on experimentally instructed detached reappraisal, positive reappraisal, and emotional behavior suppression. Psychology and Aging, 24,890-900.
5. Skeem JL & Monahan J (2011). Current directions in violence risk assessment. Current Directions in Psychological Science, 20,38-42.
6. Kroner D, Mills J, Morgan B. (2005). A coffee can, factor analysis, and prediction of antisocial behavior: The structure of criminal risk. International Journal of Law & Psychiatry, 28,360-374.
7. Quinsey VL, Harris GT, Rice ME, & Cormier CA (2006). Violent offenders: Appraising and managing risk (2nd ed.). Washington, DC: American Psychological Association.
* Departamento de Psicologia, University of South Florida. O Professor Bernstein é coautor do livro Criminal Behavior (www.douglasbernstein.com).
Endereço para correspondência:
Douglas A. Bernstein
E-mail: douglas.bernstein@comcast.net
Recebido em: 23/02/2011
Aceito em: 15/03/2011
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