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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):209-217



Comunicaçoes Teórico-clínicas

Violência na perspectiva neurocientífica dos afetos e das decisoes: por que nao devemos simplificar os determinantes do comportamento humano

Violence in the neuroscientific perspective of affections and decisions: Why we should not simplify the determinants of human behaviour

André Palmini*

Resumo

O processo de tomada de decisoes depende de interaçoes entre circuitos cerebrais que geram respostas emocionais ao ambiente e aqueles que regulam a forma como reagimos a estas emoçoes, com base nas expectativas sociais, culturais e históricas em que estamos inseridos. O cérebro humano flexibiliza o comportamento, gerando uma ampla gama de interaçoes entre o que sentimos, as vontades que temos e as formas de controle para adequar as nossas reaçoes a estes estímulos. Esta equaçao depende tanto de razao quanto de emoçao e os circuitos cerebrais que organizam o comportamento humano estao equipados para sintetizar as contribuiçoes de ambas na geraçao de respostas adequadas. Lesoes ou interferências com estes circuitos, notadamente envolvendo as regioes pré-frontais, interferem com este controle comportamental, gerando respostas socialmente inadequadas - impulsivas ou premeditadas. Estes e outros conceitos sao discutidos neste ensaio, a partir da descriçao do caso de um paciente com comportamento fortemente anti-social e que sofreu sério traumatismo craneano anos antes, com extensas lesoes de lobos frontais. Em especial, sao integrados conceitos de alteraçao de comportamento social decorrentes de lesoes estruturais com interferências nestes circuitos que podem ocorrer a partir de modificaçoes genéticas e de experiências psico-sociais traumatizantes.

Descritores: emoçao; razao; controle comportamental; comportamento antisocial; lesoes pré-frontais.

Abstract

Decision-making depends upon interactions between brain circuits involved in basic emotional responses to environmental stimuli with those regulating our reactions to these emotions, based on social, cultural and historical expectations. The human brain allows a large array of behavioral repertoires in line with the interactions between what we feel and what we want, on the one hand, and the necessary control to promote adequate responses to these stimuli. Such equation equally depends upon emotion and reason, and brain circuits involved with behavioral regulation are equipped to synthesize the contributions of both to generate the best adaptive responses. Lesions and functional interferences with these brain circuits, notably those involving the pre-frontal regions, affect such behavioral control, leading to socially unacceptable responses - impulsive or premeditated. These and other related concepts are discussed here, from the perspective of a patient with overtly antisocial behavior who, years before, suffered a severe traumatic lesion to the frontal lobes. Particularly, I try to integrate the concepts of behavioral dyscontrol following structural lesions with those caused by genetic or psychosocial traumatizing experiences.

Keywords: emotion; reason; behavioral control; antisocial behavior; prefrontal lesions.

 

 

"BOTTOM-UP/TOP-DOWN": O EMBATE EMOÇAO VERSUS RAZAO NA MODULAÇAO DO COMPORTAMENTO HUMANO DEIXOU DE FAZER SENTIDO

A histórica discussao sobre a modulaçao do comportamento humano, simplificada nas visoes distintas sobre a primazia de mecanismos racionais ou emocionais na tomada de decisoes, tem deixado de fazer sentido. Os avanços na neurologia, na neuropsicologia e na neuroimagem observados nas últimas 3 décadas finalmente iluminaram esta questao e têm mostrado que a discussao era, em verdade, superficial e filosófica, muito mais do que médico-científica1,2. Assim, voltam os filósofos a ocupar-se dela 3 enquanto aos neurocientistas cabe integrar o conhecimento alcançado e alçar a discussao a um patamar mais elevado - como, por exemplo, formas de intervir positivamente no processo de tomada de decisoes.

Emoçao e razao sao interdependentes na construçao do comportamento humano e a ciência desta interaçao foi impulsionada pela teoria dos marcadores somáticos, expressa por Damasio a partir de estudos de pacientes com lesoes pré-frontais1. Além disso, exames de neuroimagem funcional têm permitido mostrar a interaçao entre mecanismos corticais e subcorticais na tomada de decisoes com caráter moral, incluindo atitudes altruístas4,5. Estes estudos, por sua vez, convergem com as bases da neurociência dos afetos, proposta por Panksepp e seu grupo de colaboradores, que através de experimentos em animais e humanos têm mostrado o papel da integraçao córtico-subcortical na gênese dos sentimentos e dos comportamentos deles decorrentes6. Esta 'affective neuroscience' baseia-se na perspectiva de que emoçoes básicas como medo, raiva, alegria e pânico de sepraçao, expressas por animais e seres humanos, sao cruciais na regulaçao do comportamento e, na medida em que interagem com mecanismos 'racionais' corticais, resultam na ampla gama de sentimentos humanos como culpa, remorso, inveja, amor e tantos outros. Esta relaçao entre estruturas subcorticais geradoras de emoçoes básicas e estruturas corticais que incorporam o contexto do indivíduo e sua história tem sido exemplificada por estudos que mostram que circuitos anatômicos e neuroquímicos sejam compartilhados por sentimentos como dor física e 'dor psíquica' 7.

O conjunto mais significativo de dados científicos que têm resolvido esta discussao entre a primazia de emoçao ou da razao no determinismo do comportamento humano envolve a demonstraçao de que as mesmas estruturas cerebrais consideradas como o 'ápice' da racionalidade humana - as regioes pré-frontais - sao igualmente cruciais para a integraçao de mecanismos emocionais ao processo de tomada de decisoes. Em outras palavras, "razao e emoçao" compartilham as mesmas regioes anatômicas na integraçao do comportamento1,2. Assim, lesoes em estruturas frontais, como no paciente discutido nesta ediçao temática, interferem com o uso da razao na medida em que impedem a integraçao entre razao e emoçao que depende destas estruturas. Nao é que os mecanismos racionais enfraquecem, e sim que enfraquecem porque nao conseguem valer-se adequadamente de contribuiçoes emocionais para a organizaçao do pensamento e da tomada de decisoes. A emoçao deixa de impactar suficientemente a razao e é esta 'orfandade', por assim dizer, que reduz o controle racional sobre o comportamento. Nao faz mais sentido discutir-se razao versus emoçao como uma disputa entre regioes corticais versus estruturas subcorticais, mas sim a integraçao entre razao e emoçao em diversas estruturas cerebrais, particularmente nas regioes pré-frontais. Na mesma linha de raciocínio, deve-se supor que alteraçoes importantes em processos emocionais podem alterar a integraçao razao-emoçao e isto observa-se constantemente na clínica psiquiátrica, em especial na visao cada vez mais acurada do impacto de traumas precoces na regulaçao emocional e na vulnerabilizaçao a doenças psiquiátricas ao longo do desenvolvimento do indivíduo8,9.

Assim, me permitindo uma visao introdutória neurobiológica ao caso clínico deste menino, eu convido o leitor a considerar que a despeito de possíveis evidências de algum transtorno psiquiátrico prévio, nao claramente definido, houve uma sensível vulnerabilizaçao do processo de tomada de decisoes a partir de uma lesao de lobos frontais aos 13 anos de idade.


TRAUMAS PRECOCES COMO VULNERABILIZADORES PARA COMPORTAMENTOS ANTI-SOCIAIS: UMA VISAO LIGADA AO DESENVOLVIMENTO

Como me posiciono no título deste ensaio, penso que a abordagem dos determinantes do comportamento humano deva ser abrangente e nao simplista. Assim, apesar do impacto muito significativo do traumatismo crânio- encafálico com lesoes frontais na evoluçao deste menino, outros elementos devem ser considerados, especialmente à luz de achados recentes nas neurociências. O pai e o avô deste menino sao /eram alcoolistas. Sabese que o alcoolismo funciona como um marcador de outras vulnerabilidades genéticas a doenças psiquiátricas e este fato nao pode ser negligenciado. Além disto, a mae deste menino teve uma infância bastante complicada - o que pode ter colocado questoes psicológicas importantes no seu desenvolvimento - e seu pai apresentava comportamentos pouco usuais como brincar com armas de fogo junto com seu filho. Possivelmente com ainda maior relevância, houve claras intercorrências perinatais. Este menino nasceu com baixo peso para a idade gestacional, teve hipoglicemia neonatal e necessitou ficar internado por uma semana após o parto. Este contexto genético-psicológicobiológico antecede em muito o traumatismo, mas possivelmente já vulnerabilizou este menino à doença mental.

Estudos bem recentes têm mostrado que a predisposiçao a atos antisociais pode ser detectada já desde muito cedo. O grupo do professor Adrian Raine, da Universidade da Pensilvânia, tem-se dedicado a aprofundar estas questoes10. Em uma série de publicaçoes nos últimos anos estes autores mostraram que alteraçoes no padrao de respostas autonômicas podem ser detectadas desde os 3 anos de idade em crianças que, mais tarde, mostram comportamentos violentos, anti-sociais, incluindo a participaçao em diversos tipos de crimes11-14. Mais especificamente, seguindo uma coorte por mais de 20 anos, o grupo do professor Raine mostrou que crianças com diminuiçao nas respostas autonômicas a estímulos aversivos aos 3 anos de idade cresciam com um padrao de insensibilidade ao medo que aumentava, significativamente, a probabilidade de cometerem atos violentos aos 8 anos e crimes aos 20 anos de idade12. Além disso, o grupo da Dra. Ellen Leibenluft e do Dr. Daniel Pine, do NIH, mostrou recentemente que adolescentes com funciona mento psicopático, que cometiam atos antisociais sem remorso apresentavam alteraçoes nas conexoes entre a amígdala e os lobos frontais, quando comparados a populaçoes controle15,16. Estudos como este, utilizando-se da novíssima técnica conhecida como 'resting state functional MRI' (ou ressonância magnética funcional obtida com o indivíduo em repouso), têm avançado a concepçao de que redes neurais vao sendo desenvolvidas ao longo da infância com o objetivo de modular o comportamento social. Pontos nodais destas redes - como os lobos frontais e a amígdala do lobo temporal - sao claramente modificados por traumas precoces (biológicos e psicológicos) e contextos genéticos ao longo do desenvolvimento, vulnerabilizando os indivíduos a atos antisociais. Como estes circuitos amígdalo-frontais sao cruciais para a integraçao entre emoçao e razao, controlando as respostas autonômicas ligadas a sensaçao de medo - absolutamente necessárias para o desenvolvimento do respeito a regras e padroes sociais -, as alteraçoes descritas nestes circuitos ajudam a entender o posicionamento expresso acima sobre o novo patamar ao qual deve ser alçada esta discussao. Até que ponto estas redes neurais já estavam vulnerabilizadas no paciente discutido aqui pelo seu background genético-psicológico-biológico é uma questao interessante.


IMPACTO DE LESOES FRONTAIS NA ORGANIZAÇAO DO COMPORTAMENTO HUMANO

Os lobos frontais, em especial as regioes órbito-frontais e o cíngulo anterior, sao áreas onde convergem (i) os estímulos que recebemos constantemente do ambiente, do nosso corpo e da nossa consciência (vontade), (ii) as noçoes de regras sociais incorporadas na nossa cultura e (iii) os elementos marcantes da história de cada indivíduo. Assim, estas estruturas "calibram" o nosso comportamento de acordo com regras e sinais sociais, na medida em que predizem as consequências positivas ou negativas dos nossos atos17. Em relaçao ao caso do menino discutido nesta ediçao, podese dizer que estas estruturas pré-frontais lançam mao das 'informaçoes de que dispoem' para modular ou suprimir comportamentos agressivos que têm ou teriam consequências negativas. Além disto, estas regioes frontais contrapoem-se aos 'drives' muitas vezes excessivos desencadeados por estruturas límbicas profundas, arraigadas nas emoçoes, como a amígdala temporal e a insula. Visto de uma forma mais simples, este cenário anátomofuncional envolve um sistema de "proteçao" contra atos que podem levar a consequências sociais negativas - atos estes gerados seja por impulsos de responder a situaçoes de frustraçao, seja por elaboraçoes mentais que permitem- se burlar normas sociais para atingir objetivos específicos, como vingar- se de alguém causando-lhe danos físicos. Nesta perspectiva, as regioes frontais protegem o indivíduo contra as consequências negativas de atos impulsivos e/ou de atos francamente psicopáticos, antisociais, cuja motivaçao atende a anseios distorcidos da realidade social - como tentar matar a própria mae.

A compreensao da discussao acima permite, entao, que se compreenda os dois tipos de comportamento violento, um impulsivo, reativo, agudo e outro premeditado, predatório, sem remorso. Ambos levam a consequências negativas e para evitá-los entram em cena as regioes frontais, modulando a tomada de decisoes18. Assim, fica mais clara a compreensao do impacto comportamental altamente negativo de lesoes destas regioes frontais, como no paciente examinado aqui19. A perda da modulaçao comportamental orquestrada por estas regioes retira do indivíduo uma "gestalt" interior de certo ou errado, "gestalt" esta derivada justamente das emoçoes negativas que associam-se às possíveis consequências dos atos antisociais. Nao é que o indivíduo perca a noçao intelectual de certo ou errado, mas sim que perde a intensa força moduladora ou frenadora comportamental que a antecipaçao de emoçoes negativas têm sobre condutas "socialmente erradas" ou condenáveis. Desta forma, o acesso a estas emoçoes negativas ou a suas representaçoes cerebrais baseadas em experiências prévias ou culturais fica de certa forma bloqueado, levando à vulnerabilidade de atos antissociais sérios, com muito pouco remorso.

Assim, mesmo levando-se em conta outros elementos de insultos perinatais e contextos psicossociais pré-mórbidos na história deste menino, provavelmente sua lesao traumática grave nos lobos frontais é a principal responsável por seu comportamento psicopático e o principal determinante de seu prognóstico.


MANEJO DOS EFEITOS DAS DISFUNÇOES FRONTAIS: O QUE SE PODE FAZER E QUE PROGNOSTICO ESPERAR PARA RAUL

Phineas Gage inaugurou a lista hoje longa de relatos na literatura sobre modificaçoes drásticas de personalidade e comportamento em indivíduos que sofreram lesoes frontais20,21. A maioria destes indivíduos sofreu as consequências destas mudanças de personalidade sem que fosse possível uma modificaçao efetiva através de estratégias terapêuticas. Este cenário, entretanto, pode estar mudando, por avanços no entendimento do problema, nas técnicas de manejo psico-social e da farmacologia. De certa maneira, os bons resultados obtidos até agora com a reintegraçao social de Raul têm sido um exemplo destes avanços.

Sem dúvidas, o entendimento neurocientífico do por quê comportamentos psicopáticos seguem-se a traumatismos graves nos lobos frontais avançou muito mais do que as estratégias para mitigá-los. Entretanto, abordagens cognitivo-comportamentais aplicadas em 'settings' institucionais têm iluminado esta questao e mostrado alguns resultados animadores, tanto em adolescentes quanto em adultos22. Os autores sao unânimes no longo caminho a ser percorrido, mas já existem algumas linhas de investigaçao a ser encaminhadas. Da mesma forma, a aplicaçao de fármacos com açao no sistema nervoso central tem-se tornado menos aleatória e mais voltada ao entendimento neuroquímico das disfunçoes frontais23. Possivelmente, o paciente discutido aqui poderá beneficiar-se de algumas destas estratégias, em especial o uso de fármaco pró-dopaminérgico amantadine, para vencer uma certa inércia comportamental e doses adequadas de fármaco anti-impulsividade, seja a própria carbamazepina ou o ácido valpróico. Ao menos um estudo sugere que a venlafaxina seja uma melhor escolha antidepressiva para estes pacientes23.


CONCLUSAO

Embora a lesao grave de lobos frontais neste paciente provavelmente seja o principal fator relacionado ao seu funcionamento antisocial e seus atos psicopáticos - envolvendo mentiras e a séria agressao a sua mae - acho importante levar-se em conta o conjunto de evidências na sua história clínica que sugerem, por assim dizer, distintas camadas de vulnerabilizaçao. O entendimento cada vez maior da neuropsiquiatria do desenvolvimento é chave nesta questao e coloca em pauta estas distintas camadas, convidando- nos a uma reflexao no sentido de evitar uma simplificaçao dos determinantes do comportamento humano. Esta perspectiva, provavelmente, tem maiores chances de reduzir o impacto de cada um dos fatores biológicos e psicossociais no comportamento, aumentando as chances de uma melhora no prognóstico com o desenvolvimento de tratamentos mais específicos para cada "camada".


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* Professor Adjunto de Neurologia, Faculdade de Medicina, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Chefe do Serviço de Neurologia, Hospital Sao Lucas da PUCRS; Coordenador Neurocientífico, Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer, PUCRS).

Endereço para correspondência:
André Palmini
E-mail: apalmini@uol.com.br

Recebido em: 04/04/2011
Aceito em: 06/04/2011

 

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