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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):193-208



Comunicaçoes Teórico-clínicas

Aprendizagem, trauma e comportamento violento

Learning, trauma and violent behavior

Ingrid D'Avila Francke*; Janaína Thais Barbosa Pacheco**; Rodrigo Grassi-Oliveira***

Resumo

Este artigo tem o objetivo de analisar alguns fatores associados ao comportamento antissocial, enfatizando a relaçao entre aprendizagem, trauma e comportamento antissocial. As Teorias Desenvolvimentais destacam o papel da aprendizagem nos problemas de comportamento a partir de interaçoes do indivíduo/ambiente. Nessa perspectiva, o comportamento antissocial constitui-se em uma forma, ainda que inadequada, de enfrentamento às exigências sociais. As Teorias Psicobiológicas, que investigam interaçao gene-ambiente, auxiliam no entendimento do impacto da reatividade do substrato neural e as alteraçoes no desenvolvimento cognitivo a partir dessas interaçoes. Nesse sentido, o estresse/trauma tem sido associado a uma cascata de respostas fisiológicas e neurobiológicas que produzem alteraçoes nos padroes de desenvolvimento cerebral, criando uma situaçao de vulnerabilidade ao surgimento de psicopatologias. Os fatores associados ao comportamento antissocial sao utilizados para a discussao do "Caso Raul". Com isso, pretende-se contribuir tanto para a abordagem científica sobre o comportamento violento quanto para abordagens terapêuticas.

Descritores: violência; aprendizagem; comportamento.

Abstract

This article aims to analyze some factors associated with antisocial behavior, emphasizing the relationship between learning, trauma and antisocial behavior. The developmental theories emphasize the role of learning in behavioral problems from individual/environmental interactions. From this perspective, antisocial behavior is a way, albeit inadequate, to confront the social requirements. Psychobiological theories, which investigate gene-environment interactions, help to understand the impact of the reactivity of the neural substrate and the changes in cognitive developments from these interactions. In this sense, stress/trauma has been associated with a cascade of physiological and neurobiological changes that produce the patterns of brain development, creating a situation of vulnerability to the emergence of psychopathology. Factors associated with antisocial behavior are used to discuss the "Case Raul". With this, we intend to contribute both to the scientific approach to violent behavior and to the therapeutic approaches.

Keywords: violence; learning; behavior.

 

 

INTRODUÇAO

Diversos estudos têm se preocupado com a compreensao do desenvolvimento do comportamento violento e antissocial1,5. Embora no Brasil esse tema seja frequentemente debatido e constitua um problema de saúde pública, a produçao científica nacional ainda é insipiente. O estudo dos comportamentos agressivos e antissociais englobam uma ampla variedade de perspectivas e disciplinas teóricas; os fatores relacionados ao surgimento e a manutençao desse padrao comportamental também sao variados4,6.

O objetivo do presente estudo é analisar alguns fatores associados ao comportamento violento e antissocial, descritos na literatura, enfatizando a relaçao entre aprendizagem, trauma e comportamento antissocial. A partir da descriçao realizada no "Caso Raul", o artigo discutirá a relaçao entre exposiçao a trauma, fatores desenvolvimentais, psicobiológicos, comportamento violento e criminal.


FRONTEIRAS DA NORMALIDADE

A expressao 'antissocial' é amplamente utilizada para fazer referência às características comportamentais de vários tipos de transtornos mentais, como o Transtorno da Conduta, o Transtorno Desafiador Opositivo e o Transtorno de Personalidade Antissocial7,8 . Esse conceito também tem sido empregado para designar o caráter agressivo e desafiador da conduta de indivíduos que, embora nao tenham o diagnóstico de um transtorno específico, apresentam problemas comportamentais que causam prejuízos no seu funcionamento social. Portanto, o uso do conceito de comportamento antissocial nao implica necessariamente o estabelecimento de um único diagnóstico clínico9.

As definiçoes operacionais de comportamento antissocial descrevem respostas de agressividade, desobediência, oposicionismo, temperamento exaltado, baixo controle de impulsos, roubos, fugas, entre outros, podendo variar quanto à gravidade8,10,11. De acordo com alguns autores, esses comportamentos apresentam características comuns e uma funçao particular que os distinguem de outros tipos de manifestaçoes comportamentais e podem ser agrupados de acordo com a definiçao de problemas de externalizaçao12,14. Os problemas de externalizaçao estao ligados à manifestaçao da agressividade, impulsividade e de comportamentos delinquentes12.

O termo antissocial pode ser encontrado com frequência associado a quadros como o de Transtorno da Conduta e o de Transtorno Desafiador Opositivo7,10,13, embora evidências clínicas apoiem a distinçao entre esses diagnósticos. Os comportamentos antissociais também se constituem no principal indicador do Transtorno de Personalidade Antissocial. No entanto, esse quadro diferencia-se dos descritos anteriormente porque seu diagnóstico pressupoe que o padrao antissocial seja inflexível e duradouro ao longo do desenvolvimento7. Além disto, para receber esse diagnóstico, o indivíduo deve ter no mínimo 18 anos e apresentar evidências de Transtorno da Conduta desde antes dos 15 anos de idade7.

A literatura indica a relevância do conceito de comportamento antissocial devido à sua relaçao com vários transtornos mentais e com outras categorias comumente utilizadas para fazer referência a problemas de comportamento que nao configuram transtornos mentais específicos, como é o caso dos problemas de externalizaçao ou do comportamento delinquente9. A relaçao entre esses vários transtornos e problemas comportamentais está ligada à natureza ou funçao particular do comportamento antissocial8, bem como ao seu desenvolvimento que será examinado a seguir.


FATORES DESENVOLVIMENTAIS DO COMPORTAMENTO ANTISSOCIAL

O conceito de comportamento antissocial apresentado e discutido neste artigo está baseado na proposta de Patterson e colegas8,15,17 que propoem que esse padrao é desenvolvido durante a infância. Tal proposiçao foi construída a partir da observaçao e de estudos empíricos com crianças em contexto escolar e familiar8. Esses autores baseiam-se em uma perspectiva cuja ênfase central é o papel da interaçao da criança com os membros da família e com o grupo de pares. Dentro desse enfoque, tanto o comportamento pró-social quanto o comportamento desviante de uma criança sao diretamente aprendidos nas interaçoes sociais, particularmente com membros da família, e vao se alterando a partir das exigências ambientais e do desenvolvimento do indivíduo.

Segundo Patterson, a funçao do comportamento antissocial, na relaçao com o ambiente, é maximizar consequências gratificadoras imediatas e evitar ou neutralizar as exigências do ambiente social8,18. Os comportamentos antissociais sao eventos aversivos e sua ocorrência está diretamente relacionada à açao de uma outra pessoa8,18,21. Embora possa ser considerada uma forma primitiva de enfrentamento, este padrao comportamental é efetivo para modificar o ambiente. Indivíduos antissociais utilizam comportamentos aversivos para modelar e manipular as pessoas à sua volta e, devido a sua efetividade, esse padrao pode se tornar a principal forma desses indivíduos interagirem e lidarem com as outras pessoas8.

A efetividade do comportamento antissocial está relacionada principalmente às características da interaçao familiar, à medida que os membros da família treinam diretamente esse padrao comportamental na criança8. Os pais, em geral, nao sao contingentes no uso de reforçadores positivos para iniciativas pró-sociais22 e fracassam no uso efetivo de técnicas disciplinares para enfraquecer os comportamentos desviantes16. Além disso, essas famílias se caracterizam pelo uso de uma disciplina severa23,26 e inconsistente27, com pouco envolvimento parental e pouco monitoramento e supervisao do comportamento da criança10.

O efeito das práticas parentais ineficazes é permitir uma série de interaçoes diárias, nas quais os membros da família inadvertidamente reforçam o comportamento coercitivo e os problemas de conduta da criança28. Patterson e colegas17 afirmam que, em algumas ocasioes, o comportamento é reforçado positivamente, através de atençao ou aprovaçao, mas a principal forma de manutençao deste padrao ocorre por meio de reforço negativo ou de condicionamento de esquiva6. Em geral, a criança utiliza-se de comportamentos aversivos para interromper a solicitaçao ou exigência de um outro membro da família. Enquanto o comportamento antissocial é efetivo e, portanto, reforçado, a criança nao é estimulada a aprender formas assertivas de resoluçao de problemas. Dessa forma, essas famílias parecem desenvolver crianças com dois problemas: alta frequência de comportamentos antissociais e pouca habilidade social29,30. A interaçao familiar coercitiva tende a produzir um agravamento na intensidade e na amplitude dos comportamentos antissociais. De certa forma, os comportamentos que ocorrem na infância sao protótipos de comportamentos delinquentes que poderao acontecer mais tarde. A delinquência, entao, representa um agravamento de um padrao antissocial que inicia na infância e, normalmente, persiste na adolescência e na vida adulta11,14.

A estabilidade do comportamento antissocial tem sido investigada por uma série de estudos longitudinais que buscam compreender as variáveis que contribuem para a manutençao e a escalada desse padrao comportamental28,31,32. Ao tentar explicar as modificaçoes que acontecem ao longo do tempo, Patterson e colegas8 propuseram o Modelo da Coerçao que relaciona diversos fatores que contribuem para a evoluçao do comportamento antissocial e suas características em cada fase do desenvolvimento9.

Basicamente, o Modelo inicia com a aprendizagem dos comportamentos antissociais pela interaçao da criança com os pais. A criança descobre que seus comportamentos aversivos evitam exigências e produzem gratificaçoes; para os pais, torna-se cada vez mais difícil lidar com uma criança de comportamento antissocial, o que diminui a supervisao e o monitoramento. O comportamento coercitivo da criança produz uma reaçao do ambiente social que, em geral, é manifestada através da rejeiçao dos pais e dos pares. Além disso, essas crianças tendem a apresentar dificuldades de aprendizagem e fracasso acadêmico17.

Diante dessa combinaçao de fatores, o indivíduo tende a ligar-se a grupos de pares que também apresentam problemas de comportamento17,28,33, especialmente na adolescência34. Finalmente, o Modelo da Coerçao apresenta os efeitos do comportamento antissocial na adultez. Os estudos longitudinais que investigam o ajustamento global do indivíduo adulto indicam que crianças e adolescentes antissociais frequentemente tornam-se adultos com dificuldade de permanecer em um emprego, que enfrentam problemas no casamento e que possuem alto risco de se divorciarem2,3,35.

Patterson e colegas8 assinalam que, embora os estágios do Modelo da Coerçao indiquem uma progressao, isso nao significa que toda criança antissocial irá escalar e manter esse padrao comportamental durante seu desenvolvimento. No entanto, alguns fatores relacionados com a continuidade ou com o agravamento dos comportamentos antissociais foram identificados; entre eles, destacam-se a ocorrência de comportamento antissocial em pelo menos um dos pais30, a própria intensidade do comportamento36,37, a variedade dos atos antissociais3,38, a idade de início desse padrao20,39,41 e a sua ocorrência em mais de um ambiente10,39. Em relaçao especificamente ao comportamento delinquente, a literatura é consistente ao afirmar que a idade de início e a repetiçao dos atos infracionais sao importantes preditores da severidade e continuidade da prática de comportamentos antissociais e de outros problemas psicossociais, tais como isolamento social, evasao escolar e uso de drogas39,41.

Embora o Modelo da Coerçao tenha sido amplamente aceito como uma possibilidade de explicaçao do desenvolvimento do comportamento antissocial, o Modelo tem sido criticado, segundo alguns autores, por negligenciar fatores psicobiológicos e cognitivo-emocionais6. Alguns esforços de ligaçao do comportamento antissocial com variáveis cognitivas e emocionais têm sido feitos ao longo das últimas duas décadas42,43. Granic e colegas6 propoem uma compreensao do comportamento antissocial que parte do Modelo da Coerçao, mas introduzem princípios dinâmicos que objetivam analisar mais detalhadamente os elementos cognitivos e emocionais.

Nesse sentido, Dodge e Pettit44 propoem um modelo para descrever a emergência do comportamento antissocial ao longo do tempo. Segundo os autores, as disposiçoes biológicas e o contexto sociocultural colocam a criança em risco, mas as experiências negativas como eventos traumáticos poderiam mediar esse risco.


FATORES PSICOBIOLOGICOS DO COMPORTAMENTO IMPULSIVO E ANTISSOCIAL

As tendências atuais em integrar a neuropsicologia, a neurobiologia do comportamento e a clínica psiquiátrica estao gerando modelos mais efetivos com foco na gênese da predisposiçao precoce para transtornos mentais, incluindo os relacionados a comportamentos violentos e antissociais.

Do ponto de vista de aspectos hereditários, alguns estudos têm indicado uma modesta correlaçao entre TDO e sintomas de Transtorno da Conduta em gêmeos, maes e pais45. Estudos feitos com gêmeos e com crianças adotadas indicam que o Transtorno da Conduta tem componentes genéticos e ambientais. O risco para o TC é maior em crianças com um dos pais biológicos ou adotivos com Transtorno da Personalidade Antissocial ou um irmao com Transtorno da Conduta7. O Transtorno também parece ser mais comum em famílias em que um dos pais apresenta dependência de álcool, transtorno de humor, esquizofrenia, transtorno de déficit de atençao7.

Ainda sobre a etiologia do comportamento antissocial, uma pesquisa realizada com famílias adotivas/biológicas19 demonstrou que os fatores hereditários e ambientais apresentam um efeito moderado sobre a agressao e a delinquência, correspondendo a 49% e 42% da variância, respectivamente. Por outro lado, os achados das pesquisas neuropsicológicas têm mostrado que mais da metade dos adolescentes envolvidos em condutas delinquentes (de 60% a 80%) apresentam um comprometimento em suas funçoes neuropsicológicas46.

Raine4 apresenta uma revisao seletiva das bases biológicas do comportamento agressivo e antissocial em crianças com um foco sobre o funcionamento autônomo e os déficits pré-frontais. Em relaçao ao comportamento antissocial na adolescência tardia, algumas das associaçoes feitas pelo autor destacam o papel de uma má formaçao fetal, tabagismo e até a desnutriçao durante a gravidez. Também Shore5 apresenta dados que sugerem que vínculos mal estabelecidos na infância podem expressar, ao longo do desenvolvimento, alteraçoes comportamentais, como episódios de hiperatividade e de dissociaçao. Assim, Raine4 e Shore5 sao enfáticos ao afirmarem que experiências traumáticas ou estressantes durante etapas do desenvolvimento de estruturas límbicas e do sistema nervoso autônomo podem impactar a maturaçao adequada dessas estruturas que, por sua vez, influenciariam no uso de mecanismos ineficientes de enfrentamento ao estresse.

O estresse deixa de ser saudável e passa a ser tóxico ao indivíduo quando as tensoes do dia-a-dia mostram-se superiores à capacidade do sujeito para enfrentá-las. Também quando essas tensoes tornam-se insuportáveis ao indivíduo, impossibilitando-o de resistir ou de criar estratégias mais adequadas para enfrentá-las, elas acabam por causar prejuízos no seu funcionamento, principalmente, social47. Nesse sentido, os estilos e as estratégias de coping do indivíduo estariam sistematicamente falhando48. Esse modelo de percepçao e enfrentamento perante os problemas ou, ainda, essas estratégias de coping, quando essencialmente baseadas na emoçao, podem predispor indivíduos, durante o seu ciclo vital, a buscar preferencialmente a estimulaçao ou assumir riscos e, assim, reforçar os déficits de aprendizagem e socializaçao.

Muitos estudos descrevem uma associaçao entre a disfunçao frontal, os comportamentos antissociais e o aumento do comportamento agressivo44. Déficits nas funçoes executivas frontais podem aumentar a probabilidade de agressao futura, embora nao existam registros de estudos demonstrando um padrao característico de disfunçao frontal como sendo preditivo de crimes violentos49. Distúrbios relacionando TCE a comportamentos delinquentes, agressivos, paranoides e antissociais sao vastamente descritos na literatura e, ainda, em geral, sao classificados como "agressividade impulsiva"50.

Em 2008, Perron e Howard concluíam um estudo, afirmando que um a cada cinco jovens de uma amostra total de 720 adolescentes infratores, relatou histórico de TCE49. As relaçoes entre os níveis de gravidade e problemas psicossociais específicos permanecem incertos, embora os pesquisadores que têm investigado as sequelas do TCE pediátricos têm identificado mais frequentemente problemas comportamentais e emocionais entre crianças que sofrem lesoes moderadas ou graves51.

Evidências apontam também para uma relaçao entre traumatizaçao precoce na infância e déficits nas funçoes executivas (atençao, flexibilidade cognitiva, formaçao de objetivos, julgamento, abstraçao, planejamento da sequência de comportamentos motores, inibiçao de comportamentos impulsivos ou inadequados e automonitoramento)52. Esses recursos deficitários e disfuncionais estao, segundo Shore5, no núcleo das psicopatologias, gerando comportamentos motivados muito mais pela emoçao do que pela razao, ou seja, comportamentos impulsivos e de risco.

Os modelos de traumatizaçao precoce53,56 têm colaborado muito para o entendimento de mudanças comportamentais, aparentemente inesperadas, em indivíduos que sofreram algum tipo de negligência na infância. Esses sintomas sao agravados por um incidente agudo e traumático, como, por exemplo, o traumatismo crânio-encefálico (TCE).

Charnigo e colegas57, a partir de estudo longitudinal e de análises sobre mudanças comportamentais ao longo da vida, reforçam a influência de eventos estressores na variaçao de resultados quanto a alteraçoes comportamentais e fornecem hipóteses que suscitam a necessidade de mais estudos, agregando processo desenvolvimental como preditores de distúrbios do comportamento.

A reatividade do substrato neural é o grande alvo da interaçao entre o processo desenvolvimental e as consequências de eventos estressores incidentais e traumáticos, e as alteraçoes no processamento cognitivo seriam a expressao máxima desse impacto. Nesse sentido, o estresse/trauma precoce na vida deve estar associado a um substrato neuronal já relativamente disfuncional e responsável por uma cascata de respostas fisiológicas e neurobiológicas que produzem alteraçoes permanentes nos padroes de desenvolvimento cerebral. Essas alteraçoes contribuem para um prejuízo cognitivo, criando uma situaçao de vulnerabilidade ao surgimento de psicopatologias58. Segundo Raine e colegas59, existem dois pontos que devem ser observados: (a) essa interaçao demonstra deficiências cognitivas profundas e nao elementos isolados e (b) comportamentos antissociais após um TCE nao devem ser isentos de comprometimento funcional em longo prazo.

A partir dessas perspectivas, sao relatadas altas taxas de anormalidades neuropsiquiátricas em pessoas com comportamento violento e criminoso, sugerindo uma associaçao entre descontrole emocional e lesao cerebral, especialmente envolvendo os lobos frontais60. Estudos recentes de neuroimagem, como o de Perron e Howard49, reafirmam que a regulaçao da emoçao, o comportamento agressivo-impulsivo e o aprendizado com as experiências negativas na infância sao muito influenciados pelas regioes frontais do cérebro. Porém, ainda sao poucos os estudos de seguimento que se propoem a investigar os fatores preditores da delinquência e da agressividade, e os poucos que existem sao constituídos por amostras pequenas, nao randomizadas e privadas de liberdade, que carecem de parâmetros comparativos (grupo controle) e do controle de variáveis intervenientes (como o uso de drogas ou a presença de sintomas psicóticos, como a alucinaçao e o delírio).

Essas dificuldades sao as mesmas relatadas na literatura referente às investigaçoes dos prejuízos neuropsicológicos associados aos problemas de conduta. Isso demonstra a necessidade de mais estudos, associando questoes desenvolvimentais, trauma precoce, TCE e comportamentos antissociais e de descontrole do impulso. Dessa maneira, a busca por um fator causal no que se refere ao comportamento antissocial parece ser um recurso reducionista que nao é mais coerente com os avanços do conhecimento na área e com a perspectiva desenvolvimental.


CASO RAUL

A discussao do 'Caso Raul' constitui-se em uma oportunidade reflexiva sobre os aspectos envolvidos no desenvolvimento dos problemas de externalizaçao. Obviamente, a complexidade do caso e a riqueza em sua descriçao permitiriam abordar diversos aspectos da interaçao familiar, do comportamento dos personagens e dos fatores contextuais e neurobiológicos que culminaram com a tentativa de matricídio. Contudo, de acordo com o tema desenvolvido nesse artigo, a discussao restringir-se-á aos fatores possivelmente associados ao comportamento antissocial apresentado por Raul.

O matricídio é o assassinato da mae pelo seu filho biológico. Segundo Heide e Frei (2010), constitui-se em um evento raro, e os fatores associados nao estao claros; no entanto, psicopatologia severa e comportamento antissocial do agressor têm sido associados ao matricídio. Nesse sentido, a tentativa de matricídio perpetrada por Raul pode ser considerada um agravamento de um repertório antissocial que vinha se desenvolvendo, principalmente após o atropelamento.

Do ponto de vista da funçao do comportamento de 'matar a mae' (ou toda a família como é sugerido), a descriçao do caso é clara ao evidenciar que essa resposta, na perspectiva de Raul, produziria gratificaçoes imediatas (a casa para morar, a pensao do pai, a aprovaçao da namorada) e evitaria as exigências sociais percebidas como aversivas (a reprovaçao do namoro, a pressao da família, o nao poder morar com a namorada, a pressao da namorada por uma soluçao). Além dessas consequências, aspectos emocionais e afetivos estao envolvidos, a frustraçao e a raiva produzidas pelos impedimentos impostos pela família seriam substituídas, na percepçao de Raul, pelo alívio e pela satisfaçao de poder fazer o que deseja, após a morte da mae.

É importante observar que a agressao à mae foi antecedida por um planejamento relativamente detalhado, indicando que Raul apresentou capacidade cognitiva para organizar um plano e avaliar, ainda que de forma distorcida, as consequências de sua açao. Além disso, o planejamento diminui a força das explicaçoes baseadas em impulsividade e aumenta a gravidade do comportamento antissocial.

Embora a ocorrência de eventos traumáticos prévios seja difícil de mensurar, observam-se na história familiar de Raul alguns fatores de risco relacionados ao comportamento antissocial. O alcoolismo paterno, os conflitos conjugais, as dificuldades para a resoluçao de problemas, o comportamento paterno negligente e a pouca supervisao e monitoramento do comportamento dos filhos em fases de transiçao familiar sao eventos que configuram uma situaçao de negligência emocional e talvez até mesmo física na história de Raul. A traumatizaçao teria acontecido muito antes do acidente, através da falha repetitiva do cuidado parental, configurando uma forma de maus-tratos na infância.

As demandas da vida em sociedade exigiram de Raul recursos e estratégias de enfrentamento a situaçoes estressantes que, muitas vezes, ele nao dispunha de repertório para enfrentar. Essas exigências confrontaram- se diretamente com déficits neuropsicológicos que viabilizam a compreensao, a flexibilizaçao e a resoluçao de problemas, possivelmente nao disponíveis em Raul naquele momento. Esse é o motivo pelo qual uma avaliaçao neuropsicológica completa, que envolvesse uma extensa bateria de avaliaçao de funçoes executivas, poderia fornecer dados importantes na formulaçao do entendimento do caso.

Essa falta de recursos adaptativos pode ter impactado significativamente a vida desse adolescente que, cada vez mais, utilizava-se de estratégias de enfrentamento muito mais focadas na emoçao do que propriamente no problema. Isso transformou Raul em um sujeito desconectado da realidade, apresentando, cada vez mais, comportamentos de fuga e esquiva, alicerçados em uma interpretaçao cognitiva distorcida e, ainda, insuflados com conteúdos fantasiosos e desprovido de empatia.

Assim, foi crescente a preocupaçao com a influência dos eventos estressores para a saúde mental do adolescente. A partir do envolvimento de Raul com a namorada, novas situaçoes surgiram. Ao mesmo tempo em que inauguravam uma nova fase de vinculaçao emocional, dando ao adolescente uma memória emocional aparentemente perdida até entao, exigiam-lhe esses recursos para enfrentar a resistência, percebida por ele através dos confrontos com a família em relaçao ao seu envolvimento conturbado com a namorada e assim impondo-se como um aumento do stress.

Nessa etapa da vida, na adolescência, o indivíduo já sofre o estresse relacionado a eventos negativos específicos que incluem questoes associadas à família e à escola, além de mudanças corporais típicas da puberdade, e essa situaçao parece ter exigido demais dos precários recursos que por hora Raul dispunha.

Todavia, há indícios claros que o TCE foi um marco importante no desenvolvimento de alteraçoes comportamentais de Raul, pois foi após o acidente que ele apresentou alteraçoes em seu comportamento no que se refere à agressividade, potencializada após o início do namoro com Tamara. Além disso, Raul passou a ter dificuldade de sentir sentimentos usuais, como amor, compaixao e tristeza, mostrando uma espécie de "entorpecimento" emocional.

Nesse sentido, as alteraçoes comportamentais pós-acidente nao surpreendem, mediante o exposto na revisao anterior desse artigo. Uma hipótese seria pensar no diagnóstico de TEPT, porém nao se observam alteraçoes comportamentais relacionadas com o evento em si, mas sim alteraçoes mais difusas que permeiam o funcionamento interpessoal. O evento da tentativa de matricídio pareceu aos autores muito mais um episódio psicótico breve, possivelmente relacionado ao uso de substâncias psicoativas e nao um sistema cognitivo e comportamental antissocial sistematizado, embora altera çoes de conduta sejam bem evidentes, assim como alteraçoes sistemáticas do humor.

Em suma, o contexto adverso de aprendizagem de Raul possibilitou um quadro de vulnerabilidade ao desenvolvimento de alteraçoes comportamentais com características antissociais, culminando com o TCE e com uma relaçao puberal intensa, precipitando um quadro psiquiátrico grave. Talvez a hipótese dos autores seja a de que uma síndrome afetiva póstraumática associada a déficits executivos poderiam explicar a emergência de alteraçoes comportamentais tao importantes.


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* Psicóloga, Bolsista Capes - mestrado em Cogniçao Humana no Grupo de Neurociência Cognitiva do Desenvolvimento /PUCRS.
** Doutora em Psicologia, Bolsista PNPD/Capes/PUCRS e é professora Colaboradora do PPG em Psicologia da PUCRS.
*** M.D. Ph.D, Professor adjunto da Faculdade de Psicologia da PUCRS e coordenador do Grupo de Neurociência Cognitiva do Desenvolvimento-GNCD/PUCRS.

Endereço para correspondência:
Ingrid D'Avila Francke
Av. Ipiranga, 6681, predio 11, sala 936
90619-900, Porto Alegre, RS
E-mail: ingridfrancke@yahoo.com.br

Recebido em: 28/01/2011
Aceito: 15/02/2011

 

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