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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2010; 12(2-3):157-173



Caso Clínico

Caso clínico

Clínical Case

 

 

Este é o relato de um caso clínico atendido no Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência de um Hospital Geral ao longo de dois anos e meio. Inicia com a descriçao do evento que levou à necessidade do atendimento, seguido pela história de vida do jovem protagonista e de sua família. Conclui com o relato do atendimento em suas diversas modalidades.


RAUL E SUA FAMILIA

Raul é o paciente identificado, tem 16 anos e é estudante do primeiro ano do ensino médio quando o atendimento tem início; Marta é sua mae, 32 anos, profissional da área da saúde; Pedro, seu pai, 36 anos, é profissional da área de segurança pública; Cássio, seu irmao, 12 anos, estudante da sétima série do ensino fundamental.


MOTIVO DO ATENDIMENTO

Raul veio encaminhado de uma clínica psiquiátrica privada para avaliaçao e tratamento após tentativa de matricídio e suicídio. Havia plano anterior de matar também o pai e o irmao. Houve tentativa de suicídio após o ataque à mae. Raul ingeriu bebida alcoólica antes do episódio e, mais tarde, soube-se que também usou crack pela primeira vez. O paciente tem história anterior de traumatismo crânio-encefálico grave.


DESCRIÇAO DOS ACONTECIMENTOS

Em uma noite de domingo, Marta estava sozinha com os filhos em casa, pois Pedro estava trabalhando. Naquele dia, Raul havia passado o dia fora de casa, tendo ido assistir a um jogo de futebol com os vizinhos e, como se soube mais tarde, havia feito uso de álcool associado pela primeira vez ao crack. Marta relatou que estava se preparando para dormir, acompanhada de Cássio, quando ouviu barulhos no quarto de Raul. Foi até lá e viu-o colocando luvas hospitalares. Questionou-o sobre isto, e ele lhe respondeu que as estava experimentado para, no dia seguinte, pintar uma porta da casa. Marta voltou para seu quarto, apreensiva, com medo do filho. Diz ter sentido que ele iria tentar lhe agredir, mas questionou sua percepçao da realidade. Alguns minutos após, ele entrou no quarto da mae, iluminando-o com a luz de seu celular. Questionado novamente, respondeu que queria ver se aquela luz era suficiente para iluminar. Nesse momento, Marta disse que tinha certeza do que ocorreria. Prontamente enviou uma mensagem de texto pelo celular para seu marido, dizendo estar com medo do filho e pedindo que ele voltasse logo para casa. Disse ter tido medo de lhe telefonar e Raul a ouvir. Alguns minutos após, Raul entrou subitamente no quarto, jogou-se por cima da mae, tapando-lhe a boca e desferindo-lhe um golpe na garganta com uma faca. Iniciou-se um duelo corporal, sendo que Marta conseguiu dizer a Cássio que fugisse para o banheiro. Seguiram-se diversos golpes (nos braços, rosto e pescoço), enquanto Marta gritava por socorro. Conta que, nesse momento, viu os olhos de Raul transtornados, nao reconhecendo o filho. Ao mesmo tempo, Marta percebeu uma grande poça de sangue ao seu lado e, acreditando ter sido fatalmente atingida em sua jugular, gritou a Raul que parasse, pois ela acreditava já estar morta. Ele recuou e rapidamente foi até a cozinha e trouxe outra faca, estendeu-a para Marta, dizendo: "agora me mata", mas ela relatou que sua sensaçao era de que ele apenas queria que ela voltasse a se aproximar dele. Marta, entao, correu, procurando fugir. Foi até o banheiro, orientando Cássio a fugir com ela, conduziu-o até o quintal da casa e ajudou-o a pular para a casa do vizinho. No caminho, Raul jogou uma das facas contra o irmao, atingindo-o de leve num joelho. Marta conseguiu trancar o portao de ferro da porta de entrada e Raul ficou atrás deste portao, dizendo que iria se matar, fazendo cortes superficiais em seu pescoço. Raul relatou mais tarde ter se arrependido e desejado mesmo morrer naquele momento. Marta informou nao ter visto sinais de arrependimento no filho naquele e em nenhum outro momento até alguns meses após.


ENCAMINHAMENTOS POS-AGRESSAO

Marta foi levada pelos vizinhos a um hospital de pronto atendimento, sendo feito automaticamente um registro de ocorrência policial. Neste constava que teria havido uma briga familiar, sendo os cortes que Marta sofrera fruto de agressoes nao intencionais. Raul foi levado a outro hospital de sua cidade, onde deu entrada por "tentativa de suicídio", sem relato de conexao com o ocorrido com sua mae.

Raul foi liberado algumas horas depois, após sutura das lesoes. A avó, tio e tia paternos, ao saberem do ocorrido, prontamente foram à casa de Pedro. Limparam os vestígios da agressao com a intençao de que nao se visse a grande quantidade de sangue que havia no quarto do casal e sala, assim como objetos e móveis fora do lugar. Posteriormente, esse ato foi visto como tendo prejudicado a percepçao de Pedro sobre a gravidade do ocorrido, demonstrando também a grande influência de sua família de origem e a "proteçao" que esta lhe dá.

Foi encontrada no quarto de Raul uma mala com algumas roupas e pertences, fotos suas de criança e um bilhete em que Raul fingia ser sua mae, solicitando ao pai a senha do cartao do banco, com a resposta deste anotada. Após alguns dias, Raul assumiu para os pais que seu desejo era de matar toda a família, atribuindo o crime ao pai. Para tanto, pretendia primeiro matar a mae e o irmao com a faca, para, quando o pai chegasse, matá-lo com sua própria arma já que Pedro, por sua profissao, porta arma de fogo. Disse que o plano era fugir para a praia com sua namorada no carro recém comprado pela família, e que iria morar neste carro com o dinheiro que houvesse na conta corrente dos pais.


ANTECEDENTES DO EVENTO: ENAMORAMENTO E MENTIRAS

Nos meses que antecederam a agressao, Raul vinha apresentando importantes alteraçoes de comportamento que coincidiram com o início do ano letivo de seu primeiro ano no ensino médio, após ter iniciado o relacionamento com uma jovem de sua escola, Tamara.

No início do namoro, estava muito entusiasmado, ficando inclusive mais afetuoso com seu irmao menor e com seus pais. Depois, foi ficando irritável, opositor e isolado da família. Sua namorada havia se apresentado como tendo 16 anos, órfa de pai e mae e criada por tios com excelente condiçao financeira.

Havia uma casa muito bonita próxima à escola, onde a jovem afirmava morar, dizendo que nao lhe era permitido levar visitas. Após dois meses de namoro, Tamara relatou estar grávida dois dias após uma relaçao sexual em que o preservativo havia furado. Mesmo confrontando a namorada com a rapidez com que o teste mostrou-se positivo, Raul acabou acreditando em sua explicaçao de que eles eram um "caso raro". Segundo os pais, nessa época Raul parecia estar vivendo "fora da realidade" e, preocupados com a evoluçao desse relacionamento, procuraram orientaçao médica para o filho, sendo-lhes dito que suas atitudes eram "normais para um adolescente".

Buscaram, também, informaçoes sobre Tamara junto à escola. Acabaram por descobrir que ela, na verdade, tinha 21 anos de idade, nao era órfa e nao morava no endereço fornecido por ela. Marta levou-a para realizar exame de B-HCG, que foi negativo.

Mesmo com as mentiras reveladas, Raul seguiu acreditando na namorada. Na escola, contava para todos que seria pai. Chegou a escrever sobre isso em trabalhos escolares. A jovem insistia na falsa gravidez e dizia a Raul para nao seguir falando sobre esse assunto com seus pais porque eles a obrigariam a realizar um aborto. Dizia também que sua família era contra o namoro e, dessa forma, só poderiam se encontrar durante os dias de semana, no horário das aulas.

Nos finais de semana, Raul ficava isolado da família, escrevendo longas cartas para a namorada, com conteúdo que exaltava sua "potência" masculina e seu "infinito amor" por ela. Em seu isolamento, cultivava a crença de que os pais lhe mentiam para terminar com o seu namoro. Isso e o fato de passar a nao ir às aulas para ficar com Tamara resultaram em um clima de brigas crescentes dentro da família.

Nas duas semanas que antecederam a tentativa de homicídio, Raul passou a ficar ainda mais opositor e desafiador com relaçao aos pais. Questionava regras, usava palavras que nao eram usuais em seu vocabulário, com ofensas e agressoes verbais. Tentava colocar os pais um contra o outro. Mentia sobre fatos ocorridos. Passou a fazer perguntas "estranhas", como: "Se o senhor morresse, como ficaria o financiamento da casa?" ou "Qual a senha do cartao de crédito?".

O próprio Raul conta que, nesses dias, vinha conversando longamente com sua namorada sobre como poderiam fazer para terem seu filho, acreditando que os pais queriam um aborto. Disse que falavam em fugir, mas que ela ressaltava que, sendo seu pai da área de segurança, ele poderia encontrálos facilmente. Raul contou que Tamara lhe dizia sobre como seria bom se seus pais "sumissem", e que eles poderiam inclusive viver na casa da família. Anteriormente, Raul havia pedido aos seus pais que Tamara fosse morar com eles, o que lhe havia sido negado.

No final de semana que antecedeu a tentativa de matricídio, houve uma séria briga entre Raul e seu pai, que se repetiu no dia seguinte. Pedro contou que sentia ter perdido o controle sobre seu filho e que acabava interrompendo as discussoes porque nao via outro fim que nao a agressao física. Chegou a conter Raul em sua cama durante uma briga em que ele estava extremamente agitado e agressivo. Nos dias que se seguiram, Raul assistiu a um filme com sua mae, em que alguém era morto com uma facada no pescoço, tendo questionado sobre como se morria desta forma. Ambos os pais chegaram a revelar um para o outro o medo de que Raul fizesse algo contra eles.


HISTORIA E DESENVOLVIMENTO DE RAUL

Raul nasceu com 38 semanas, de parto cesáreo devido à pré-eclâmpsia. Pesou 2050g e teve Apgar 9/10. Apresentou hipoglicemia, ficando internado por uma semana. Teve desenvolvimento neuropsicomotor normal no primeiro ano de vida. Foi para a escola aos quatro anos, sem problemas de adaptaçao.


HAVIA ANTECEDENTES ANTISSOCIAIS?

Segundo relato dos pais, Raul teria sempre sido um menino obediente, respeitador, bom aluno, bom amigo. Nao havia, na infância, mentido ou cometido qualquer ato delinquente. Assumia seus atos, dando como exemplo quando quebrou um vidro no condomínio aos cinco anos de idade enquanto brincava com amigos.

Houve também um episódio em que, junto com amigos, disparou com arma de pressao em lâmpadas da escola que frequentava. Tal evento nao parece ter sido valorizado nem pela família nem pela escola. Por outro lado, segundo relato do próprio paciente, ele teria se envolvido em inúmeros episódios de agressoes entre pares, cerca de "dez por ano", sendo considerado uma "liderança" em sua escola.

Os pais disseram que desconheciam tais fatos ou talvez os negaram. Na escola em que o paciente estudou e que foi contatada durante sua avaliaçao, confirmou-se o relato dos pais: era um "bom aluno, bom amigo". Houve um único episódio confirmado pelos pais: Raul teria agredido um menino de compleiçao física menor do que a sua e teria sido reprimido pelo segurança de um estabelecimento comercial com uma "gravata", o que gerou ocorrência policial da família contra o segurança.

A história de episódios de transtorno de conduta prévia do paciente ficou até hoje controversa na equipe.


ATROPELAMENTO E TRAUMATISMO CRANIO-ENCEFALICO

Aos 13 anos, Raul sofreu um atropelamento (por um caminhao) enquanto levava sua bicicleta para o conserto. Nessa época estava começando a sair de casa sozinho. Seu atendimento nao foi imediato, pois o motorista que o atingiu, fugiu. Há relatos de ter estado consciente alguns minutos após o trauma. Inicialmente atendido em sua cidade, foi levado a um hospital geral. O menino apresentou crise convulsiva e alteraçao do nível de consciência, oscilando entre torpor e coma e momentos de agitaçao e agressividade intensa, quando teve de ser contido no leito. Apresentou edema cerebral, com necessidade de ventilaçao mecânica. Desenvolveu hematoma extradural parietal direito, necessitando drenagem cerebral, ficando com uma janela óssea. Passou a usar Carbamazepina 600mg diários. Cabe destacar que tal medicaçao nao vinha sendo usada em doses terapêuticas nos meses que antecederam a tentativa de matricídio, com o conhecimento da equipe que o atendia, pois considerou que a ausência de convulsoes permitia essas doses baixas.

Sua mae, possuindo conhecimentos técnicos, permaneceu o tempo todo ao seu lado durante a internaçao na UTI e ficou sendo chamada por ele como "a moça que me cuida". Continuou a nao reconhecer os pais durante algumas semanas após a alta hospitalar, mas, aos poucos, foi lhes chamando de pai e mae, muito mais por lhe dizerem do que por ter conhecimento disso.

Os pais relataram a sensaçao de que Raul nunca voltou ao seu "normal" depois de seu acidente; a mae disse que pensava com frequência que seu filho nunca havia retornado para casa. Raul manteve acompanhamento neurológico, e os pais referiram que questionavam sobre as mudanças do filho, mas a equipe que o atendia dizia que estas eram "normais" e que "iriam passar".

Após o acidente, Raul apresentou alteraçoes em seu comportamento, ficando mais agressivo, especialmente com seu irmao, mas tais alteraçoes nao eram tao importantes como as que ocorreram após o início do namoro com Tamara. Manteve sempre, a despeito do acidente e de suas consequências, bom rendimento escolar.

Raul relatou, no decorrer de seu atendimento, que, após o acidente, passou a ter dificuldade de sentir sentimentos usuais, como amor, compaixao e tristeza. Falava que muitas vezes sentia como se nao gostasse de ninguém e que era como se fosse um "morto-vivo". Referiu que somente conseguia sentir-se "vivo" quando se envolvia em um relacionamento amoroso- sexual, tal como foi com Tamara. Antes dessa namorada, teve outros relacionamentos curtos, sempre com jovens mais velhas do que ele.

Disse ter a sensaçao de que este tipo de relacionamento lhe "bloqueia e conserta o cérebro", mas "como se fosse um vírus num computador", impedindo-o de acessar a realidade. Referia nao ter lembranças de sua vida antes do acidente, somente as relacionadas ao que lhe contam, ou às fotos antigas que via. Inclusive apresentava sempre grande interesse em ver suas fotos e ouvir relatos de seus pais sobre sua infância.

Cabe ressaltar que a possibilidade de perda do filho contribuiu para o fato de o casal optar por tentar manter o ambiente em casa calmo, mesmo às custas de nao resolver os conflitos do casal, já que nao conseguiam falar sem dar origem a grandes discussoes.


HISTORIA FAMILIAR

A mae de Raul


Marta é a segunda de uma prole de dois filhos. Teve uma infância complicada pelo fato de seu pai ter abandonado a família para viver outro relacionamento no interior do estado. Sua mae nunca havia trabalhado, pois o marido nao o permitia. Era alcoolista e exercia grande controle sobre a esposa. Nao há relatos de agressoes físicas.

Marta diz que era muito próxima do pai, apesar do alcoolismo deste. Com a separaçao do casal, sobrevieram sérias dificuldades financeiras e emocionais. Segundo Marta, sua mae nunca superou esta traiçao e separaçao, tendo desenvolvido quadro depressivo nunca tratado. Nunca aprovou seu casamento e a consequente saída de casa. Marta nega em si sintomas psiquiátricos prévios. Seu irmao é também alcoolista e vive com a mae.

Após alguns anos de separaçao, o pai de Marta retomou as relaçoes familiares, tanto na esfera emocional como financeiramente. Atualmente está vivendo com a nova esposa no litoral, onde mantém encontros frequentes com os filhos e netos.

O pai de Raul

Pedro é o segundo de uma prole de três filhos. Seu pai também era alcoolista e faleceu há alguns anos por complicaçoes de cirrose hepática. Ele também era trabalhador da área de segurança, assim como o é o irmao mais novo. Sua mae trabalhava na área de saúde, de forma semelhante a Marta. Mesmo trabalhando fora, sempre foi ela que se responsabilizou pelos afazeres domésticos. Para ela, "homem nao deveria entrar na cozinha ou organizar a casa", por exemplo.

Pedro cresceu em bairro pobre, vivenciou o envolvimento de seus amigos com tráfico de drogas e roubos. Sentia sua família como "um local de luta contra a criminalidade". Exceto pelo alcoolismo do pai, nao há relato de outros transtornos psiquiátricos em sua família.

O casal e a família que formaram

Marta e Pedro, jovens de 16 e 20 anos, respectivamente, namoravam há um ano quando engravidaram acidentalmente de Raul. Optaram por casar e disseram que nunca pensaram em nao ter o bebê. Foram morar na casa dos pais de Pedro, onde ocorreram conflitos. Pedro era extremamente dependente de sua mae, e Marta era constantemente pressionada por sua sogra a ter atitudes semelhantes às suas quanto a "mimos" oferecidos a Pedro. Além disso, Marta nao concordava com a ideia de assumir todas as tarefas domésticas, já que trabalhava tanto quanto o marido.

Quando Raul estava com quatro anos de idade, a família mudou-se para a residência anexa a uma escola em que Pedro tinha o trabalho de zeladoria e ali Raul veio a estudar. Cássio nasceu nesse período.

Marta, tendo a característica de ser uma pessoa autoritária, desde o início assumiu um papel dominante no que diz respeito à organizaçao e planejamento financeiro, sendo isto bem aceito por Pedro, que preferia manter uma posiçao mais dependente.

Alcoolismo, separaçao, reconciliaçao.

Nessa época, Pedro passou a fazer uso de álcool, o que iniciou desavenças crônicas entre o casal. Quando alcoolizado, Pedro permanecia mais distante da esposa e dos filhos. Nao apresentava atitudes agressivas fisicamente, mas havia muita discussao devido ao seu isolamento, causado e/ou procurado com o uso do álcool. Além disso, Pedro é descrito por Marta como tendo comportamentos inadequados com os filhos, como, por exemplo, ter "brincado" em casa com um revólver de verdade com o filho menor e um amigo.

Ambos os pais sempre se preocuparam muito em dar boas condiçoes para os filhos. Trabalhavam em esquema de múltiplos plantoes para aumentar o orçamento familiar, tendo precisado contar muitas vezes com a ajuda das avós nos cuidados dos filhos. A avó materna, especialmente, sempre teve grande participaçao na vida familiar, nao aceitando ficar afastada da filha. A avó paterna nao tinha grande participaçao por nao querer estar próxima da nora.

Devido aos conflitos ocasionados pelo alcoolismo de Pedro, o casal esteve separado por um ano quando Raul e seu irmao tinham respectivamente dez e seis anos de idade. Os meninos foram morar com a mae em um apartamento alugado, e o pai em outro, já que nao estava mais no emprego de zelador da escola.

Nesse período, Pedro parou de beber e houve reconciliaçao baseada nesta premissa. Quando retomaram o casamento, houve nova mudança, desta vez para casa própria onde residem até hoje. Há relatos de que os meninos sentiam muito a falta do pai, e de que Raul nao teria apresentado mudanças de comportamento dignas de nota nessa época.

No entanto, Cássio passou a ter medo de dormir sozinho, indo dormir com a mae, o que no episódio da tentativa de matricídio estava começando a ser resolvido. Cabe ressaltar que houve separaçao judicial e que esta nunca chegou a ser desfeita, segundo eles, por questoes de ordem econômica. Em consequência disso, Marta tem acesso direto à pensao alimentícia dos filhos e a usa para despesas da casa, uma vez que Pedro apresenta dificuldades na organizaçao das mesmas.

Após a reconciliaçao, o casal permaneceu "bem", com menos episódios de brigas e discussoes, mesmo após Pedro ter retornado a beber. Permaneciam pontos de conflito que tinham como base divergências nos papéis dentro da família, mas estes vinham sendo "deixados de lado".


NARRATIVA SOBRE O TRATAMENTO

Envolvimento de vários serviços de saúde


No atendimento imediato de Raul e da mae, já descrito, feito em hospitais diferentes, houve apenas intervençao médica sem consultoria psiquiátrica. Raul foi logo liberado, e a mae ficou hospitalizada por alguns dias, realizando cirurgias plásticas nos braços, maos e no rosto que ficou com uma grande cicatriz. Judicialmente, a família apenas relatou a ocorrência de uma briga familiar e justificou o comportamento de Raul como suicida e nao matricida pelo receio de que ele pudesse ser preso. O temor dos pais era de que ele nao viesse a ter acesso a uma adequada avaliaçao e tratamento. Acreditavam que a situaçao havia evoluído a tal ponto devido à patologia resultante do trauma craniano sofrido no passado. Além disso, Raul vinha usando mal sua medicaçao antiepilética e, nas últimas semanas, havia abandonado a medicaçao. Os pais sabiam, mas nao conseguiam confrontar Raul.

A família, em seguida ao evento, internou Raul em uma clínica psiquiátrica particular. Lá, ele permaneceu por aproximadamente quarenta dias, até que a equipe desta clínica solicitou transferência para uma avaliaçao neurológica e psiquiátrica mais detalhada em hospital geral. Foi oferecida consultoria a esta clínica, mas a mesma nao conseguiu seguir as orientaçoes, mantendo Raul praticamente o tempo todo sedado e solicitando a transferência do paciente.

Primeira internaçao psiquiátrica no hospital geral - 40 dias após evento

A equipe do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência discutiu a possibilidade dessa transferência para o hospital, gerando divergências na equipe. Parte do grupo considerava adequado o investimento e parte julgava que ele deveria ir para uma instituiçao forense com recursos psiquiátricos. Como nao existe esse recurso na cidade, ficou combinado que Raul viria para avaliaçao na unidade psiquiátrica fechada, sem a presença de seus pais, o que nao é a regra do serviço em casos de adolescentes.

Nessa primeira internaçao, Raul já estava medicado. Apresentava extrema distância emocional do ocorrido. Demonstrava predominantemente irritaçao em relaçao aos seus pais, já que entendia que esses o tinham "prendido" dentro da internaçao. Dizia querer ter alta para voltar a estudar e namorar. Suas preocupaçoes e pensamentos restringiam-se a conteúdos relacionados a Tamara. Passava grande parte de seu tempo escrevendo cartas, considerando-se um "leao", um "garanhao" e outros adjetivos com conotaçao exagerada de sua "potência" masculina. Demonstrava comportamento sedutor para com atendentes femininas e nao apresentava nenhuma crítica em relaçao ao que havia feito, assim como nao cogitava que houvesse impli-caçoes práticas e legais de seu ato. Quaisquer demonstraçoes de arrepen-dimento ou culpa por sua tentativa de matricídio nao foram observadas nessa primeira internaçao, e ele argumentava que já tinha se "desculpado" com sua mae e por isso esse assunto já estava "resolvido". Nao apresentou comportamento agressivo em nenhum momento nesta ou na internaçao anterior na outra instituiçao.

Os pais de Raul disseram sentir-se muito amparados pela residenteterapeuta e pela equipe, sentindo-se tratados como seres humanos em meio a uma situaçao enlouquecedora. A formaçao de um sólido vínculo, desde o início, foi primordial no sucesso do atendimento.

Avaliaçao diagnóstica

Os exames laboratoriais na sua chegada foram normais. O nível sérico (NS) de Carbamazepina foi de 6,2 mEq/L. Foi realizada avaliaçao neurológica extensa. Realizou-se EEG que demonstrou "atividade de base bem organizada, com ritmo alfa de 10hz. Ritmo de base na regiao parietal direita em decorrência de craniotomia. Presença de ondas agudas de média amplitude e em baixa incidência". Realizou-se também, ressonância magnética de encéfalo que demonstrou "alteraçoes cerebrais difusas e lesoes importantes em lobo frontal bilateralmente". A equipe da neurologia considerou as alteraçoes frontais suficientemente intensas para deixar Raul mais suscetível a descontrole de impulsos e alteraçao de personalidade.

Foi feita avaliaçao psicodiagnóstica que evidenciou rendimento intelectual em nível médio superior e potencial semelhante. Nos testes projetivos, verificou-se confusao mental e alteraçao do pensamento lógico que podia ser consequência do TCE sofrido no passado. Ficou evidente uma negaçao da realidade através de mecanismos grandiosos, onipotentes, hipomaníacos e paranoides, além de descontrole dos impulsos e das emoçoes com deslocamento do afeto, falta de envolvimento emocional, distanciamento afetivo das figuras parentais, dificuldade de julgamento da realidade e conduta sedutora.

Tratamento com psicofármacos

Em relaçao ao tratamento medicamentoso, além do reinício e aumento da dose de Carbamazepina para 1000 mg/dia (NS 7,7 mEq/L), foram adicionados progressivamente Haloperidol até 10mg/dia e Fluoxetina até 20mg. O aumento da dosagem de Carbamazepina foi realizado em consonância com a equipe de neurologia, visando à contençao de possível atividade epiléptica e ao controle de impulsos, para a qual também foi adicionado o Haloperidol, tendo como "alvo" sintomas de agressividade, comportamento e pensamento psicóticos, que é como foram caracterizados sua atitude matricida e seu envolvimento com a namorada. Progressivamente Raul pareceu apresentar mais contato com a realidade. O uso da Fluoxetina, por sua vez, foi iniciado para diminuir seu embotamento afetivo e lentificaçao motora que, na época, foi considerado que poderia ser o início de um quadro depressivo, já que demonstrava gradativamente maior contato com sentimentos de tristeza e desvalia.

Abordagem psicoterápica familiar e individual

O paciente era acompanhado diariamente durante a internaçao na tentativa de realizaçao de uma psicoterapia visando ao insight, o que naquele momento nao parecia possível. A família, também em terapia, inicialmente buscava o entendimento do ocorrido através da avaliaçao diagnóstica e da instauraçao de um tratamento para Raul.

Preparaçao para alta: questoes legais e encaminhamento para internaçao prolongada

Do ponto de vista legal, foi encaminhado laudo do caso à Promotoria da Infância e Juventude, enfatizando a gravidade do risco continuado de agressao.

Após dois meses de internaçao, estando concluída a investigaçao psiquiátrica, psicológica, familiar e neurológica, foi definido que o paciente nao deveria seguir internado, já que este serviço se destina, primariamente, a casos agudos e nao para atendimentos de longo prazo, como foi considerado que deveria ser o atendimento posterior. Além disto, havia preocupaçao quanto à manutençao de Raul em unidade psiquiátrica onde existe predomínio de pacientes muito regressivos.

Havia a necessidade da alta, porém ainda nao uma definiçao legal sobre qual encaminhamento seria dado ao caso. Com o auxílio da Ouvidoria do Estado, o caso foi levado à Corregedoria do Estado a fim de pressionar um posicionamento da Promotoria. A ideia da equipe era de que Raul deveria permanecer prolongadamente em uma internaçao fechada. A Equipe nao era favorável a um encaminhamento à Fundaçao de Apoio Sócio-Educativo (FASE- sistema semiprisional para adolescentes infratores), concordando com a família que, uma vez sendo Raul tao vulnerável à influência de seus pares, o resultado poderia ser desfavorável. Dessa forma, conseguiu-se que o paciente fosse internado em outro local, com a recomendaçao de que fosse por tempo indeterminado até ser considerado apto a retornar ao convívio familiar.

A primeira alta - quatro meses após evento

Assim, Raul foi transferido para outra instituiçao psiquiátrica. Considerava- se pouco provável uma recuperaçao rápida para voltar ao convívio em sociedade naquele momento. Contudo, após um mês de internaçao, Raul recebeu alta e retornou para sua casa, diferentemente do que havia sido planejado.

A família aceitou recebê-lo e cuidá-lo. Alguns cômodos da casa foram alterados por Marta porque considerava que, assim, se sentiriam em um local diferente daquele "onde tudo aconteceu". Foi organizado um novo quarto para Raul, colocando-o em uma construçao anexa à casa, cuja porta era trancada à noite, o que aliviava a sensaçao de ameaça que era constante.

Raul ficou sem nenhum atendimento após a alta, nao tendo recebido qualquer tipo de encaminhamento ou orientaçao. A família buscou, entao, por sua iniciativa, o mesmo Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital Geral, solicitando ajuda.

Tratamento ambulatorial no hospital geral - cinco meses após evento

Houve nova reuniao da equipe com a mesma divisao de opinioes. Predominou a decisao de que Raul e sua família reiniciariam atendimento em formato de Terapia de Família. Após a avaliaçao inicial, manteve-se a medicaçao porque parecia adequada, e ficou evidente a necessidade de intervençoes multissistêmicas, já que as repercussoes da tentativa de matricídio extrapolavam a capacidade terapêutica da abordagem apenas da família. Raul passou a ter também atendimento individual em psicoterapia por outro profissional, escolhendo-se um homem que também participava das sessoes de terapia familiar quando Raul era incluído. As sessoes de terapia de família foram feitas de forma intensiva, predominantemente com duas sessoes por semana. O foco nesse momento era ainda a reorganizaçao familiar após o trauma sofrido e o entendimento das reaçoes de cada um, enfatizando a necessidade de o casal trabalhar em sintonia nas decisoes e colocaçao de limites, o que de fato começou a acontecer.

Combinou-se que Raul trocaria de escola e, no turno inverso, buscar- se-ia um estágio de trabalho junto ao serviço do pai, cujos chefes foram bastante cooperativos. Houve uma aproximaçao entre pai e filho nesse período. Teve-se o cuidado de combinar cuidadosamente que as tarefas de Raul deveriam ser administrativas já que ele estava incapacitado a exercer funçoes de segurança por sua doença.

No segundo mês do atendimento ambulatorial, os terapeutas da família e de Raul combinaram com a família nuclear e extensiva (incluindo apenas as avós nesse momento) uma visita domiciliar. O objetivo inicial desta visita era saber maiores detalhes sobre a vida familiar e ter um contato real com o local da tentativa de matricídio. Essa visita foi de grande valia no estabelecimento da aliança terapêutica com a família e com Raul. Com as avós tratou-se a questao da repetiçao do problema do alcoolismo nas várias geraçoes e os conflitos entre as sogras e respectivos genro e nora, estes últimos sem muito sucesso. Raul, com o tempo, parece ter se conscientizado de seu risco em relaçao ao consumo de álcool.

O perdao materno legal

Após algumas semanas, o adolescente e seus pais foram chamados na Promotoria. Foi colocado para a mae, individualmente, ser sua a decisao quanto ao prosseguimento do processo ou a sua remissao, o que significava, judicialmente, "perdao". A mae optou pela remissao, mais por pensar que era isso o que se esperava dela do que por um sentimento genuíno de perdao. Quando homologada, a remissao ficou sujeita a medidas de proteçao. Raul deveria seguir estudando e realizando tratamento, assim como sua família, que se manteve legalmente responsável pelo seu cuidado.

Nova internaçao - sete meses após evento

Alguns dias após este fato, Raul desenvolveu um quadro depressivo com sério risco de suicídio. O próprio paciente solicitou internaçao por medo de nao conseguir controlar-se. Ficava clara a dificuldade em ajustar-se aos novos desafios que a vida lhe impunha, assim como o confronto com o medo que sua família sentia. Foi decidido por nova internaçao em unidade psiquiátrica no mesmo hospital. Desta vez, a internaçao já foi combinada pela equipe para ser de longa duraçao, diferentemente do planejado na internaçao anterior, já que era evidente que Raul e toda a família estavam ainda muito afetados. Nessa decisao, como no início do tratamento, a equipe responsável teve que enfrentar muitos questionamentos de parte dos colegas dos serviços envolvidos, relacionados com a adequaçao de dispor de tantos recursos que poderiam ser úteis a outros pacientes, já que questionavam se Raul era capaz de aproveitar o tratamento. O objetivo nao era mais realizar qualquer investigaçao diagnóstica, mas sim o esbatimento do risco de suicídio e o manejo mais intenso das problemáticas familiares e das questoes psicodinâmicas de Raul em relaçao à sua tentativa de suicídio e de matricídio.

Em cerca de um mês, o risco de suicídio se esbateu, porém optou-se por manter a internaçao visando à manutençao do tratamento psicoterápico intensivo do paciente e sua família.

Repercussoes na família

Desde a tentativa de matricídio, todos na família apresentavam quadro depressivo e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Pedro havia conseguido, com muita dificuldade, reduzir o consumo de álcool. Após o retorno de Raul para casa, havia ocorrido piora importante dos sintomas maternos e do irmao. Tais sintomas foram abordados na terapia familiar, incluindo-se também sessoes individuais de todos seus membros. A abordagem utilizada nesse momento era semelhante a uma psicoterapia voltada para o trauma. Houve necessidade de prescrever medicaçao antidepressiva (Fluoxetina) para Marta e Cássio. Este foi encaminhado para psicoterapia individual. Marta e Pedro foram vistos intensivamente pela terapeuta em terapia de família, incluindo sessoes individuais principalmente para Marta. Ainda nao era possível o tratamento do alcoolismo do pai, que apresentava grande negaçao de sua situaçao e faltava ao tratamento por questoes de trabalho.

O longo tempo de internaçao, de quatro meses, possibilitou uma abordagem familiar bastante extensa e intensa. Abordou-se especialmente o de senvolvimento de rotinas e combinaçoes entre o casal como pais. As questoes relacionadas à conjugalidade nao conseguiram ser abordadas. Foi feito contato com a família extensiva, em especial tentando trabalhar as relaçoes de dependência/conflito entre Marta e Pedro e suas respectivas maes.

O longo processo do verdadeiro perdao materno

O longo processo de admissao da culpa e o pedido de perdao por parte de Raul foi central nesse período. Houve um momento em que o paciente solicitou ver as fotos de sua mae logo após a agressao, com cortes profundos na face, pescoço e braços. Ver as imagens lhe possibilitou um momento de maior contato afetivo com o ocorrido e com sua mae, tendo despertado sentimentos profundos de arrependimento. Estas sessoes entre Raul e sua mae foram centrais para o bom desenvolvimento do caso. A mae descrevia sua sensaçao de nao o reconhecer como filho e a culpa que isso lhe gerava. Nas sessoes de terapia com todos os membros da família, desenvolveu- se um trabalho de elaboraçao do luto pela família perdida, assim como de construçao de novo relacionamento familiar, com a construçao de limites mais claros e firmes. Nas sessoes só com o casal foram ventiladas muitas dificuldades, com pouca resolutividade porque sempre se voltava ao problema do alcoolismo, e Pedro nao mostrava intençao de parar de beber.

Conseguiu-se, entretanto, ao tempo da alta hospitalar, organizar melhor as rotinas familiares e, principalmente, ventilaram-se culpas e outros sentimentos que estavam latentes. Em preparaçao para a alta, fez-se uma sessao com ambas as famílias de origem dos pais (participaram as maes e todos os irmaos dos pais), organizando um esquema para que Raul estivesse sempre acompanhado de algum familiar e que sua mae e irmao nao precisassem ficar sozinhos com ele.

A partir dessas conquistas, Raul pode voltar a sua casa, escola e estágio.

Segunda etapa do atendimento ambulatorial no hospital geral - onze meses após evento

Após a alta hospitalar, Raul e seu irmao seguiram em atendimento individual semanal, assim como a família. Buscava-se nesse momento um maior envolvimento de Pedro no tratamento, visando abordar seu alcoolismo. Ele permanecia resistente, ia às consultas mais por sua obrigaçao legal do que por aceitar o tratamento. Também foi um período em que seu trabalho o demandava mais. Sua ausência em muitas sessoes acabou resultando na abertura de maior espaço para Marta nas sessoes de família a tal ponto que este espaço foi se convertendo em seu atendimento individual. Ao longo do tempo, especialmente quando houve breves interrupçoes do tratamento por questoes organizacionais da equipe, sua relaçao sólida com a terapeuta pa receu tornar-se a coluna vertebral do atendimento de todos, auxiliada pelas reunioes mensais com toda a família.

No início do ano seguinte, o tratamento passou a sofrer inúmeras intercorrências associadas à dinâmica da equipe: férias e mudanças de terapeutas criaram descontinuidade e dificuldades. Nao foi possível no momento da troca de equipe uma transiçao para outros terapeutas. Foram mantidas as sessoes de família, ainda que com menor regularidade, e as sessoes individuais da mae com a terapeuta de família que havia assumido esse novo papel.

Mais uma internaçao - um ano e seis meses após evento

Alguns meses depois, Raul teve mais um período de depressao com risco de suicídio. Isso ocorreu perto de seu aniversario de 18 anos, num período em que a equipe do hospital estava se reorganizando para reiniciar seu tratamento individual. Nao havia vaga no hospital e, também, preocupados com a continuidade do tratamento de Raul após sua maioridade, resolveu- se interná-lo no hospital que atendia ao plano de saúde da instituiçao em que o pai trabalha. A internaçao transcorreu bem, sendo dada continuidade ao tratamento farmacológico de Raul com troca de medicaçoes, tendo sido suspenso o Haloperidol e iniciada Clozapina, em uso até hoje em dose de 500mg. Nao houve psicoterapia. Foi feita uma visita da equipe a Raul nesse hospital, sendo feita uma reuniao com as médicas responsáveis que resultou num bom trabalho colaborativo.

Novo tratamento ambulatorial no hospital geral - um ano e onze meses após evento

Entretanto, após a alta, pouco antes dos 18 anos, essa instituiçao avisou que nao continuaria a tratá-lo após a maioridade a nao ser que o pai pagasse um valor adicional. O pai disse nao ter esses recursos e solicitou que o tratamento voltasse a ser no hospital anterior.

A equipe se reorganizou com novos terapeutas, exigindo, em contrapartida, a adesao do pai ao tratamento contra o abuso de álcool. Pedro aceitou relutantemente e permaneceu em tratamento individual alguns meses, sob ameaça da equipe de interromper o tratamento, já que se considerou o alcoolismo como problema central nas dificuldades conjugais e familiares, diretamente associadas com o transtorno de comportamento de Raul. Pedro apresentou alguma melhora, especialmente assumindo mais seu papel de pai. Algum tempo após, conseguiu-se também tratamento individual para Raul. A mae continuava em psicoterapia individual sistemática. As sessoes de terapia familiar continuaram mensalmente, sendo feitas com a presença de toda a equipe, servindo para integrar os vários tratamentos. O foco era predominantemente os cuidados parentais e o trabalho de individuaçao de Raul, dificultado pelos muitos cuidados que requeria por nao ter ainda conquistado plenamente a confiança dos pais. Ambos os filhos, agora que Cássio começava a adolescer, desafiavam os pais de diferentes maneiras, e estes aprenderam a coordenar seus esforços, com Pedro aumentando muito sua participaçao. Cássio, durante um período, foi muito mal na escola, mas melhorou com a ajuda intensiva e próxima do pai. A mae mostrava-se muito satisfeita com a participaçao do marido.

Pai e filho nao toleraram o processo psicoterápico individual por muito tempo, decidindo terminá-lo pouco após o aniversário de 18 anos de Raul. Outro fator foi que este estava trabalhando assiduamente, com horários rígidos e incompatíveis com os da terapia. Passou a frequentar um curso supletivo para terminar o segundo grau e seguiu tomando os remédios sem problema, apesar disto já ter sido muito problemático em momentos anteriores. Tanto ele quanto a família atestaram que as relaçoes em casa estavam muito melhores, que ele demonstrava perceber situaçoes que lhe causavam raiva e lidava adequadamente com elas. Conseguiu formar novo grupo de amigos que frequentavam sua casa, além de seus pais procurarem se relacionar com os pais destes.

Como a condiçao para a manutençao da psicoterapia familiar era o tratamento continuado de Pedro, foi combinada a alta da família. O casal havia examinado seus problemas crônicos e continuava falando às vezes sobre separaçao. Mencionaram a possibilidade de aceitar encaminhamento para terapia de casal sistemática, que nao poderia ser oferecida no hospital, mas nao chegaram a procurar esse recurso.

A alta

A família recebeu alta cerca de dois anos e meio após a tentativa de matricídio. Em sessao final, quando o pai e Raul reiteraram que nao continuariam suas terapias, foi combinado que Pedro se encarregaria de organizar a continuidade do tratamento medicamentoso de Raul em seu local de trabalho. A mae manteve sua psicoterapia. Esbatidos os sintomas de TEPT e depressao, assim como tendo havido um fortalecimento seu e melhora de sua relaçao com Raul, o foco passou a ser a relaçao com sua mae e com o marido. Estando Pedro sem tratamento individual e nao aceitando a terapia de casal, existe, no momento deste relato, um movimento de Marta com relaçao a conseguir se separar de fato de Pedro, uma vez que se sente mudada, nao mais conseguindo manter o mesmo papel na relaçao. Pedro segue com consumo de álcool praticamente diário e sem aceitar tratamento.

Cássio conseguiu uma vaga para retornar para psicoterapia com uma nova terapeuta do Serviço de Psiquiatria Infantil. Esteve em tratamento, apro veitando-o bem durante aproximadamente três meses. Conseguiu melhora em seus sintomas depressivos e de TEPT, porém segue com medo do irmao em alguns momentos. Mesmo assim, ambos conseguem manter uma relaçao amigável, compartilhando jogos eletrônicos, programas de televisao e futebol. Após um tempo, Cássio começou a faltar, e o seu tratamento foi interrompido de comum acordo no início de segundo semestre de 2010.


LINHA DO TEMPO A PARTIR DA TENTATIVA DE MATRICIDIO

2º-40º dia - Internaçao em clínica psiquiátrica.

40º dia - Transferência para internaçao psiquiátrica em hospital geral. Avaliaçoes psiquiátrica, neurológica e psicológica.

3º mês - Transferência para a clínica psiquiátrica anterior.

4º mês - Alta, sem seguimento.

5º mês - Início de tratamento ambulatorial no hospital geral. Terapia de família e psicoterapia individual. Retorno à escola e estágio junto ao trabalho do pai.

6º mês - Visita domiciliar pela equipe do hospital geral.

7º mês - Remissao processual pela mae. Nova internaçao por risco de suicídio. O irmao inicia psicoterapia individual.

11º mês - Segunda alta hospitalar. Tratamentos individuais da mae e do paciente.

16º mês - Mudança da equipe assistencial no hospital geral. Nao houve seguimento dos tratamentos individuais. Manutençao da terapia familiar, com menor frequência.

18º mês - 3º internaçao, em outro hospital (conveniado com plano de saúde da família). Manutençao mensal da terapia familiar. A mae retorna para psicoterapia individual.

23º mês - Organizaçao de nova equipe para atendimento no hospital geral. O pai inicia tratamento com foco no alcoolismo. O paciente inicia supletivo do Ensino Médio.

24º mês - O paciente inicia novo atendimento psicoterápico individual.

30º mês - O paciente começa a trabalhar e interrompe o atendimento. O pai também interrompe sua psicoterapia. Alta familiar da terapia de família.

32º mês - O irmao retorna para atendimento individual.

35º mês - Término do tratamento do irmao. A mae seguiu em atendimento individual, agora com foco em questoes conjugais. O paciente segue trabalhando e sem atendimento.

 

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