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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2014; 16(1):53-67



Artigo de Revisao

Dependência de Jogos Eletrônicos em Crianças e Adolescentes

Video game addiction

Vitor Carlos Thumé Bredaa; Felipe Almeida Piconb; Laura Magalhaes Moreirac; Daniel Tornaim Spritzerd

Resumo

Com o incrível avanço tecnológico das últimas décadas, os jogos eletrônicos se tornaram uma das principais atividades de lazer de crianças e adolescentes. Os problemas relacionados ao uso excessivo dos games despertam cada vez mais a atençao de profissionais da saúde, e o número de artigos sobre o tema tem aumentado progressivamente.
MÉTODOS: Foi realizada uma revisao nao sistemática da literatura utilizandose os bancos de dados PubMed, SciELO e LILACS.
RESULTADOS: Sao descritas as características dos jogos e dos jogadores que parecem estar envolvidos nesse comportamento de dependência, assim como as características clínicas, as bases neurobiológicas, o perfil de comorbidades e as opçoes de tratamento. A inclusao da categoria Internet Gaming Disorder no DSM-5 demonstra a importância que a comunidade científica tem dado ao assunto e estimula o desenvolvimento de mais pesquisas nessa área. Estudos epidemiológicos, clínicos e de neuroimagem observam que trata-se de um transtorno prevalente principalmente entre os jovens, que acarreta prejuízo significativo na vida dos indivíduos acometidos e que apresenta grandes semelhanças com outros comportamentos de dependência. Discute-se também a influência e os potenciais mecanismos pelos quais os jogos violentos podem estimular a agressividade, principalmente entre os jogadores que já apresentam outros fatores de risco para esse comportamento.
CONCLUSAO: Apesar do crescente corpo de evidências científicas disponíveis na literatura, muitas dúvidas ainda necessitam de esclarecimento e mais pesquisas sobre o tema devem ser estimuladas para que se tenha um maior êxito no reconhecimento e tratamento desse transtorno.

Descritores: Videogames; Transtorno de jogos on-line; Jogos on-line; Dependência; Transtorno de jogos.

Abstract

Along with the amazing technological development seen in the last decades, video games have become one of the main entertainment activities of children and adolescents. The problems due to the overuse of video games have increasingly drawn more attention from health professionals, and the number of publications is growing steadily.
METHODS: A non-systematic literature review using the PubMed database, SciELO and LILACS databases was performed.
RESULTS: The characteristics of games and players that seem to be involved in addictive behavior, as well as clinical characteristics, neurobiology, comorbidity profile and treatment options are described. The inclusion of Internet Gaming Disorder in DSM-5 demonstrates the importance that the scientific community has given to the subject, and stimulates the development of further research. Epidemiological, clinical and neuroimaging studies show that it is a prevalent disorder particularly among youth, which causes significant impairment in the life of affected individuals, and that presents strong similarities with other addictive behaviors. The influence and potential mechanisms by which violent games can stimulate aggression, especially among players who already have other risk factors for this behavior is also discussed.
CONCLUSION: Despite the growing body of scientific evidence available in the literature, many questions still need clarification, and further research on the topic should be encouraged in order to improve the recognition and treatment of this disorder.

Keywords: Videogames; Internet gaming disorder; online gaming; Addiction; Gaming disorder.

 

 

INTRODUÇAO

Brincar é a atividade predominante na infância, e parece ser, nao só na espécie humana, a maneira mais divertida e segura de aprendizado para um cérebro em desenvolvimento1. No jogo, as crianças interagem entre si, vivenciam situaçoes e emoçoes, manifestam indagaçoes, formulam estratégias e, ao verificarem seus erros e acertos, podem reformular sem puniçao seu planejamento e suas novas açoes2.

Sabe-se que tanto o brinquedo como o brincar sao influenciados pelas relaçoes humanas e pelos padroes de uma sociedade3. Com o grande avanço tecnológico das últimas décadas, principalmente no que tange à informática, os jogos eletrônicos tornaram-se cada vez mais populares, sendo uma das mais importantes atividades de lazer para crianças e adolescentes4,5. A indústria dos games é hoje mais lucrativa que a indústria do cinema, e só fica atrás, em termos de movimentaçao financeira, da indústria bélica e automobilística6.

Muitos estudos relacionam o uso de jogos eletrônicos com uma maior facilidade de aprendizado, o desenvolvimento de habilidades afetivas, cognitivas e motoras, e também a facilitaçao da socializaçao. Diversos benefícios de seu uso têm sido comprovados também em tratamentos médicos e psicológicos7-9. Por outro lado, o uso dos jogos eletrônicos é fonte cada vez maior de preocupaçao para pais e cuidadores, na medida em que tem aumentado progressivamente o tempo que os jovens passam em contato com os games10. É bem estabelecido que seu uso pode, para alguns indivíduos, acarretar prejuízo grave na saúde (tanto física quanto mental), no desempenho acadêmico e também nos relacionamentos afetivos11,12. Esses problemas relacionados aos jogos eletrônicos tendem a continuar ao longo do tempo para a grande maioria dos indivíduos afetados.Merece destaque também a altíssima prevalência de comorbidades psiquiátricas associadas a essa condiçao11. Reconhecendo o crescente corpo de evidências sobre o tema, e com o objetivo de estimular a pesquisa na área, a quinta ediçao do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5)13 incluiu como"condiçoes que merecem mais estudos" a categoria "Internet Gaming Disorder".

A pesquisa sobre dependência de jogos eletrônicos tem crescido muito nos últimos anos, abordando temas como a classificaçao, a etiologia e a fenomenologia desse comportamento de dependência. Assim, o objetivo do presente estudo é revisar de forma nao sistemática a literatura disponível sobre o tema, principalmente nos aspectos mais relevantes para a prática clínica, tais como: definiçao, epidemiologia, neurobiologia, perfil de comorbidades, tratamento da dependência de jogos eletrônicos, assim como a associaçao dos jogos violentos com o comportamento agressivo.


MÉTODOS

Uma revisao nao sistemática da literatura foi realizada utilizando-se os bancos de dados PubMed, Scielo e Lilacs. Foram pesquisados os termos videogame, internet gaminge online gaming, sendo cruzados com os descritores addiction e disorder. Para uma busca mais inclusiva, também foram utilizadas fontes suplementares, como o Google Scholar e livros especializados no assunto. Nao foram incluídos estudos específicos sobre "jogos de azar" (gambling) ou estudos sobre dependência de internet que nao especificassem quando o uso da internet se referia a jogos eletrônicos.


RESULTADOS

Características dos Jogos


Podemos dizer que todo jogo, por mais livre e nao estruturado que seja, possui alguns princípios básicos. O primeiro deles, e talvez o mais importante, é que a participaçao deve ser voluntária. E quanto mais autonomia o jogador tem para entrar ou sair de um jogo, modificá-lo e estabelecer suas estratégias, mais ele vivencia essa atividade como prazerosa14-16. Trata-se também de uma atividade segura, na qual nao existem puniçoes ou consequências negativas sérias ao jogador e o próprio nível de dificuldade é controlado (principalmente no caso dos jogos eletrônicos) para estimular a sensaçao de competência e evitar uma frustraçao excessiva que leve ao abandono do jogo17. Além disso, o jogo possibilita a interaçao/conexao com outras pessoas e estabelece uma sintonia afetiva entre elas, cuja manutençao garante a continuidade do jogo e a sua diversao18,19.

A evoluçao tecnológica proporcionou um grau cada vez maior na qualidade de imagens e sons, aumentou de forma inimaginável a interatividade do indivíduo com o jogo e também a interatividade entre os jogadores. O realismo cada vez maior dos games intensifica os estímulos recebidos e exige uma maior habilidade/dedicaçao do jogador para que prossiga jogando. Com narrativas complexas e atrativas, os jogos permitem cada vez mais que o jogador crie e transforme seu personagem e sua história, levando a um alto grau de imersao na realidade do jogo20. Podemos classificar os jogos eletrônicos em três níveis, levando-se em consideraçao a plataforma utilizada, a presença de conexao com a internet e a modalidade do jogo.


PLATAFORMAS

O termo "plataforma" refere-se à máquina na qual o jogo é "executado". Há 40 anos, os jogos eletrônicos popularizaram-se em grandes máquinas ativadas por moedas, chamadas fliperamas ou arcades. A evoluçao para os aparelhos de videogame domésticos ocorreu a partir da década de 1980. Os jogos para computadores de mesa e laptops também evoluíram a partir da década de 1970, e, mais recentemente, observamos o surgimento de jogos para smartphones e tablets.


CONEXAO COM A INTERNET

A conexao com a Internet potencializa ainda mais a interatividade entre os jogadores, pois permite que estes participem ao mesmo tempo do jogo, ainda que estejam distantes geograficamente. Além disso, foi possível o desenvolvimento de alguns jogos que funcionam ininterruptamente, 24 horas por dia, num ambiente que permanece em andamento mesmo quando o jogador está ausente. Esse mundo persistente gera a necessidade de o sujeito se manter on-line pelo maior tempo possível, para que nao seja superado pelos outros jogadores21.


MODALIDADES

A variedade de modalidades (ou gêneros) de jogos eletrônicos hoje compreende uma quantidade significativa de estilos capazes de agradar a um número cada vez maior de pessoas. Alguns tipos sao jogos de esporte, aventura, guerra, mistério e também jogos de administraçao e simulaçao. Dois gêneros de jogos incrivelmente populares e que merecem destaque pela repercussao clínica sao os MMORPGs (Massive Multiplayer Online Role Playing Game) e os FPSs (First Person Shooter). Os MMORPGs sao jogos nos quais milhares de jogadores criam personagens (ou avatares) e executam tarefas/missoes em um mundo virtual dinâmico. Os FPSs sao jogos nos quais o ângulo de visao é o do próprio jogador (primeira pessoa), a fim de maximizar a experiência de atirador, tendo guerras e conflitos armados como seus principais contextos.


DEPENDENCIA DE JOGOS ELETRONICOS

Diagnóstico e avaliaçao


Desde a década de 1980 pesquisadores atentavam para as semelhanças entre o uso excessivo de jogos eletrônicos e outros comportamentos de dependência22,23. Com o surgimento da internet e dos jogos on-line, a preocupaçao com esse tema aumentou exponencialmente, assim como a quantidade e a qualidade das pesquisas sobre o assunto24,25.

De fato, em 1996 foi proposto que os critérios de dependência de jogos eletrônicos poderiam ser baseados nas seis características centrais das dependências químicas: saliência, modificaçao de humor, tolerância, abstinência, conflito e recaída26. Desde entao muitos instrumentos diagnósticos têm sido estudados, mas ainda nao existe um consenso sobre quais sintomas e ponto de corte melhor definem essa dependência27.

O termo "Internet Gaming Disorder" aparece pela primeira vez no DSM-5, na seçao reservada para "condiçoes que merecem mais estudos", descrito como o uso persistente e recorrente de jogos on-line (que nao envolvam apostas) associado a prejuízo ou sofrimento significativos e indicado pela presença de 5 ou mais dos sintomas abaixo por período de 12 meses:




Apesar de o tempo de jogo estar associado de certa maneira com o desenvolvimento de problemas, ele acaba sendo um marcador apenas indireto desse transtorno, pois existe uma significativa parcela de jogadores com uso bastante intenso e que nao apresenta necessariamente prejuízo28.

Enquanto nao se chega a um consenso sobre quais critérios devam ser universalmente utilizados, costuma-se valorizar bastante a presença de prejuízo significativo na vida do indivíduo (piora do rendimento escolar/acadêmico, isolamento social e conflitos familiares) como um dos principais marcadores desse transtorno. Esse enfoque, embora nao explique o motivo do uso problemático, permite ao terapeuta uma maior liberdade para a compreensao diagnóstica, assim como para formular um plano terapêutico específico para cada indivíduo29.

O diagnóstico da dependência de jogos eletrônicos tem como base uma avaliaçao inicial minuciosa e completa, visando examinar, além dos problemas relacionados aos games, outras situaçoes importantes na vida do adolescente. Uma abordagem diagnóstica multiaxial tem como objetivo identificar e ao mesmo tempo descartar a presença de transtornos psiquiátricos, avaliar características de personalidade e o nível de inteligência, fazer um levantamento de possíveis doenças clínicas e também avaliar aspectos sociais e o funcionamento geral do indivíduo. O período da avaliaçao inicial é também fundamental no estabelecimento de um vínculo terapêutico de confiança, que servirá como base para a intervençao motivacional e a terapia propriamente dita.

Os autores desta revisao consideram que a compreensao dos tipos específicos de jogos e os motivos para sua escolha sao fatores importantes durante os primeiros contatos com o paciente. Uma escuta atenta para as características do jogo, do personagem, das tarefas e missoes que o jogador realiza pode fornecer informaçoes interessantes e complementares na avaliaçao.


EPIDEMIOLOGIA

A dependência de jogos eletrônicos segue um continuum clínico, na medida em que o indivíduo pode apresentar desde apenas alguns fatores de risco até uma síndrome de dependência completa25. Embora a grande maioria dos meninos jogue diariamente, apenas uma pequena parcela destes irá desenvolver algum tipo de prejuízo associado aos games. Mesmo sendo a dependência de jogos eletrônicos um fenômeno global, sabe-se que adolescentes do sexo masculino sao um de seus principais grupos de risco11,30.

Estudos de prevalência de dependência de jogos eletrônicos apontam parataxas entre 0,3% e 38%. Essa grande variaçao pode ser atribuída aos diferentes instrumentos diagnósticos utilizados e também às diferentes amostras populacionais incluídas nos estudos31. Dentre os tipos de jogos, é relativo consenso na literatura que os MMORPGs apresentam maior potencial de causar dependência. Quando consideramos apenas esse gênero específico, até 46% dos seus jogadores podem apresentar critérios para dependência de jogos eletrônicos32,33.


ESTUDOS EM NEUROBIOLOGIA

A neurobiologia da dependência de jogos eletrônicos começou sendo estudada através da tomografia por emissao de pósitrons (PET), num estudo do funcionamento cerebral que identificou que o ato de jogar estimula a liberaçao de dopamina nos centros de recompensa mesolímbicos em quantidades similares como o que acontece com ouso de anfetaminas34. Posteriormente, outras alteraçoes neurobiológicas foram observadas em estudos com jovens que jogavam intensamente. Foram evidenciadas alteraçoes no consumo de oxigênio em regiao pré-frontal bilateral em decorrência do uso de jogos eletrônicos35; maior reatividade em regioes corticais evidenciada por eletroencefalograma em jogadores excessivos em relaçao aos jogadores moderados36; diferenças de integridade da substância branca (feixes de axônios) em tálamo e córtex posterior do cíngulo em jogadores quando comparado com controles37; diferenças de conectividade cerebral entre diversas regioes cerebrais em dependentes comparado com controles saudáveis38,39; e diferenças de funcionamento cerebral em jogadores com ativaçao de regioes cerebrais correlacionadas com relatos de fissura e lembrança da experiência do jogo. Nesse último estudo foram ativadas as mesmas regioes que se mostram ativadas em situaçoes de fissura nas dependências químicas, novamente sugerindo o compartilhamento das bases neurobiológicas40. Além disso, achados recentes de ressonância magnética estrutural mostraram reduçoes de volumes de regioes cerebrais em jogadores comparados a controles41 e diferenças de espessura do córtex em diversas regioes cerebrais42. O campo de investigaçao da neurobiologia desse transtorno ainda é bastante recente e deixa muitas perguntas em aberto, mesmo já demonstrando uma semelhança neurobiológica com o que é encontrado nos transtornos por uso de substâncias.


COMORBIDADES PSIQUIATRICAS

As comorbidades psiquiátricas podem ter uma relaçao de causa e efeito com a dependência de tecnologia e uma tendência a se reforçarem mutuamente. As comorbidades mais frequentemente encontradas entre dependentes de jogos eletrônicos sao depressao, ansiedade social e transtorno de déficit de atençao/hiperatividade11,43,44. Jovens com depressao, ansiedade social e TDAH podem tornarse mais vulneráveis a desenvolver dependência de jogos eletrônicos por serem mais impulsivos, terem menor habilidade social e de empatia e menor controle emocional. Nesses casos, o uso dos jogos, que inicialmente funcionava como uma estratégia de enfrentamento (ou de autotratamento), pode evoluir para um comportamento de dependência, que por sua vez pode agravar o transtorno inicial.

Outra hipótese pode ser levantada pelos achados do único estudo longitudinal que avaliou usuários excessivos de games ao longo de dois anos: jovens dependentes de jogos eletrônicos apresentavam novos diagnósticos de depressao e de ansiedade social durante o período do estudo, enquanto os jovens que deixaram de ser dependentes evoluíram com reduçao dos sintomas desses transtornos11. Talvez tal fenômeno possa ser explicado se considerarmos que o indivíduo dependente de jogos eletrônicos pode apresentar inúmeros prejuízos a nível familiar, social e escolar que se tornam fatores de risco para quadros depressivos, ansiosos e de desatençao. O jovem dependente de videogame passa muitas horas jogando e termina por afastar-se da família e dos amigos, evoluindo com agravamento do isolamento social. Também diminuem as horas de estudo, o que pode contribuir para piora significativa do rendimento escolar. Com frequência, muitas horas noturnas sao despendidas com o jogo, o que piora ainda mais a capacidade atencional do indivíduo.

Diversos fatores poderiam explicar a maior vulnerabilidade de jovens com TDAH à dependência de jogos eletrônicos. Uma possibilidade seria o processo de recompensas imediatas e a hiperestimulaçao dos games,que evita o entediamento, comum em portadores de TDAH43. Outra possibilidade seria a compensaçao de déficit dopaminérgico, que ocorre em indivíduos com TDAH, através da liberaçao de dopamina no estriado durante os jogos34. Além disso, o longo tempo dedicado aos jogos consome tempo de investimento em atividades que exigem mais concentraçao43.

A obesidade é outra comorbidade que parece associada ao uso excessivo dos jogos eletrônicos. Esse tipo de atividade nao apenas reduz a quantidade de calorias gastas, mas também promove o consumo excessivo de alimentos45, e o excesso de peso resultante pode acabar se tornando um agravante para a depressao e para a ansiedade social. Ao mesmo tempo, modalidades de jogos como os exergames, que associam atividade física com o jogo eletrônico, podem servir como um incentivo para um padrao de comportamento mais ativo e até auxiliar no combate à obesidade infantil46.

Portanto, a relaçao entre dependência de jogos eletrônicos e outros transtornos psiquiátricos nao é tao simples como já se imaginou. A dependência de jogos eletrônicos tanto nao é apenas um sintoma de outros transtornos mentais como pode contribuir ativamente para a piora destes. Estabelece-se uma via de mao dupla, na qual os transtornos agravam-se reciprocamente.


TRATAMENTO

Na medida em que uma nova tecnologia é desenvolvida, ela é inicialmente recebida com bastante entusiasmo e utilizada de modo mais intenso; passado algum tempo, seu uso se reduz e permanece em um padrao menos intenso. Embora essa tendência também seja observada no caso dos games, os dados disponíveis na literatura científica mostram um comportamento diferente. O estudo longitudinal que acompanhou jovens dependentes de jogos eletrônicos pelo período de dois anos observou que 84% dos sujeitos estudados persistiram com esse diagnóstico ao final do estudo, reforçando a preocupaçao de que esse comportamento nao seja apenas uma fase passageira na vida dos jovens11,12. Assim, mais atençao deve ser dada à necessidade de avaliaçao especializada e ao tratamento desse transtorno.

O tratamento da dependência de jogos eletrônicos, via de regra, nao tem o objetivo de abstinência plena, como se faz necessário no tratamento das dependências de álcool e outras drogas47. Baseado na experiência clínica do Grupo de Estudos sobre Adiçoes Tecnológicas (GEAT), entretanto, um período de afastamento do jogo pode ser necessário, caso o prejuízo mostre-se bastante intenso e o comportamento nao possa ser evitado de outra forma. Ainda, com o consentimento de um paciente bastante motivado, um breve período afastado do jogo pode ajudar na observaçao mais precisa das características do sofrimento do paciente, as quais, por sua vez, podem fornecer indícios de alguma condiçao psicológica ou psiquiátrica de base que esteja servindo como fator desencadeante da dependência de jogos eletrônicos.

Até o presente momento nao há nenhuma medicaçao comprovadamente eficaz no tratamento específico da dependência de jogos eletrônicos. Dessa forma, o uso de psicofármacos está indicado quando existe alguma comorbidade psiquiátrica passível de ser tratada com essa abordagem, o que per se pode melhorar o prognóstico da dependência de jogos eletrônicos48,49.

A psicoterapia é considerada a principal abordagem de tratamento, e deve ser escolhida de modo individualizado, de acordo com o perfil de cada paciente e outras variáveis (ex.: tipo de comorbidade associada), pois nao há evidências consistentes de que uma modalidade específica (cognitivocomportamental, psicodinâmica, interpessoal) seja efetivamente superior às outras. Em situaçoes nas quais a criança ou o adolescente nao reconhece o problema e nao se apresenta motivado para o tratamento, a psicoterapia familiar pode ser particularmente útil. Ela também está indicada em situaçoes em que se faz necessário o restabelecimento dos limites e da hierarquia entre os membros da família, o que é bastante comum em casos de dependência de jogos eletrônicos.

De modo geral, os objetivos do tratamento sao:
  • estabelecer confiança mútua;
  • trabalhar motivaçao para mudança, inclusive com o auxílio de psicoeducaçao;
  • tratar as comorbidades e, quando necessário, utilizar abordagens para regularizaçao do padrao sono-vigília;
  • trabalhar o uso "moderado" dos jogos eletrônicos;
  • retomar o funcionamento acadêmico, social e familiar;
  • trabalhar prevençao de recaída.

  • JOGOS VIOLENTOS E AGRESSIVIDADE

    Os efeitos dos jogos violentos no comportamento agressivo sao certamente a área mais pesquisada de toda a literatura científica sobre games. Achados de estudos experimentais e observacionais (tanto transversais quanto longitudinais) confirmam que a violência de jogos eletrônicos pode aumentar significativamente comportamentos, pensamentos e sentimentos agressivos, além de aumentar a excitaçao psicofisiológica (arou sal) e diminuir a empatia e o comportamento pró-social, tanto em curto como em longo prazos, naqueles que utilizam muito esses jogos50,51.

    Sabe-se que a agressividade é um fenômeno complexo que apresenta inúmeros fatores de risco. Quanto mais desses fatores estiverem presentes, maior será a chance de ocorrência de comportamento agressivo. Com o uso intenso e repetitivo, os jogos violentos podem ser um fator desencadeante de agressividade em crianças e adolescentes que já apresentam outros fatores de risco para tal comportamento52,53.

    É interessante notar que o contexto da violência nos jogos influencia o desfecho de agressividade. Quando essa violência está justificada com uma base pró-social (ex.: jogo de luta com a missao de salvar um amigo), o comportamento agressivo após o término do jogo pode ser bastante reduzido54. A agressividade pode também nao se mostrar tao aumentada no caso de jogos violentos jogados de modo cooperativo, se tomarmos em comparaçao os jogos violentos jogados mais competitivamente55. Uma possível explicaçao é que nesses casos os membros do grupo/equipe seriam "poupados" e o comportamento agressivo seria mais direcionado às pessoas que nao fazem parte desse grupo56.

    Os mecanismos da agressividade associada aos jogos passam por aumento das atitudes positivas relacionadas à violência, uma tendência a perceber os comportamentos dos outros como agressivos, dessensibilizaçao à violência com diminuiçao das reaçoes emocionais e fisiológicas aos comportamentos violentos e uma diminuiçao da empatia e do sentimento de ajuda aos outros50. Esse mecanismo de dessensibilizaçao também explica a associaçao entre o interesse por jogos violentos e o aumento na chance de estar envolvido em bullying e cyberbullying, tanto como agressor quanto como vítima57. Do ponto de vista fisiológico, jogos violentos podem induzir a agressividade na medida em que aumentam o nível de estresse, medido através do índice de coerência cardíaca58.

    Uma teoria interessante que começa a ser estudada é a de que os jogos violentos podem também induzir a agressividade por aumentar o que Bandura59 cunhou de "desengajamento moral", isto é, o processo pelo qual as pessoas gradualmente mudam sua visao da realidade, alterando assim suas convicçoes morais59,60. Cenas e contextos frente aos quais deveríamos manter a indignaçao e a indagaçao permanente vao sendo lentamente naturalizados até que condutas anteriormente consideradas repreensíveis passam a ser moralmente aceitas. Os principais mecanismos desse processo já avaliados em relaçao aos games violentos sao: justificativa moral; difusao de responsabilidade; minimizaçao, ignorância ou distorçao das consequências; e desumanizaçao60,61.


    CONCLUSAO

    A complexidade dos jogos eletrônicos se apresenta também em relaçao aos seus múltiplos efeitos nos jogadores, o que nao pode ser compreendido apenas através de uma dicotomia simplista do tipo "bom/mau". Os games sao uma das principais mídias de entretenimento de crianças e adolescentes, e sua importância tende a aumentar junto com o desenvolvimento de novas tecnologias. Enquanto a maioria dos jovens é capaz de aproveitar os jogos de forma benéfica, uma pequena parcela apresenta prejuízo significativo em decorrência dessa atividade.

    A enorme variabilidade nas taxas de prevalência encontradas ilustra bem a dificuldade de se pesquisar um fenômeno cujo diagnóstico ainda nao se encontra consensualmente operacionalizado. Por nao haver um consenso na literatura científica sobre os critérios diagnósticos que melhor definem esse transtorno, a maioria dos estudos utilizou questionários diferentes para a definiçao dessa dependência, o que pode comprometer as comparaçoes e generalizaçoes entre os resultados obtidos. É possível que a inclusao da categoria Internet Gaming Disorder no DSM-513 possa favorecer uma padronizaçao desses instrumentos de avaliaçao em estudos futuros. Ainda, é importante ressaltar que, por se tratar de uma área de estudo relativamente recente, apenas um estudo longitudinal sobre a dependência de jogos eletrônicos foi encontrado, o que limita as inferências relacionadas a causalidade. Novos estudos sao necessários para esclarecer aspectos pouco compreendidos desse transtorno, permitindo uma melhor identificaçao, tratamento e prevençao desses casos.


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    a. Médico psiquiatra. Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica pelo Centro de Estudos Luís Guedes. Mestre em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Grupo de Estudos sobre Adiçoes Tecnológicas (GEAT)
    b. Médico psiquiatra. Especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Mestre em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vice-Coordenador do Grupo de Estudos sobre Adiçoes Tecnológicas (GEAT). Pesquisador em Neuroimagem do TDAH do PRODAH-A (HCPA-UFRGS)
    c. Médica psiquiatra. Especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica pelo Centro de Estudos Luís Guedes. Membro do Grupo de Estudos sobre Adiçoes Tecnológicas (GEAT)
    d. Médico psiquiatra. Especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Mestre em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Grupo de Estudos sobre Adiçoes Tecnológicas (GEAT)

    Instituiçao: Grupo de Estudos sobre Adiçoes Tecnológicas - GEAT

    Correspondência
    Vitor Carlos Thumé Breda
    Rua Comendador Caminha, 286, sala 301, bairro Moinhos de Vento
    90430-030 Porto Alegre/RS
    vctbreda@yahoo.com.br

    Submetido em: 15/01/2014
    Solicitaçao de reformulaçoes em: 14/04/2014
    Retorno dos autores em: 27/04/2014
    Aceito em: 28/05/2014

     

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