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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2014; 16(1):43-52



Artigos Originais

Enactment na clínica com crianças? Consideraçoes sobre enactment de vida e enactment de morte*

Enactment in the clinic with children? Considerations about life enactment and death enactment*

Rafael Cavalheiroa; Milena da Rosa Silvab

Resumo

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a maneira pela qual os autores compreendem a utilidade clínica do conceito de enactment**2. Sao expostas algumas controvérsias sobre o tema e as principais diferenças em relaçao a termos mais correntes na literatura psicanalítica, como contratransferência e acting. Por fim, através de duas vinhetas clínicas, é feita uma proposta de pensar-se o enactment na clínica com crianças, bem como a introduçao dos termos enactment de vida e enactment de morte.

Descritores: Teoria Psicanalítica; Processos Psicoterapêuticos; Inconsciente (Psicologia).

Abstract

This paper aims to discuss the authors understanding of the clinical usefulness of the concept of enactment. Some controversies on the subject and the main differences between enactment and most current terms in the psychoanalytic literature such as countertransference and acting are also discussed. Finally, through two clinical vignettes, a proposal is made to think about the concept of enactment in the work with children, as well as the introduction of the terms life enactment and death enactment.

Keywords: Psychoanalytic Therapy; Psychotherapeutic Processes; Unconscious (Psychology).

 

 

INTRODUÇAO

O conceito de enactment é relativamente novo na literatura psicanalítica, embora muitos autores tenham descrito fenômenos bastante parecidos sem nomeá-los com esse termo (Sandler1, McLaughlin2, Joseph3). Ele aparece em um cenário em que se passou a entender que alguns aspectos contratransferenciais poderiam ser utilizados em prol do processo analítico, e em que os fenômenos resultantes da interaçao, no campo, entre o paciente e o terapeuta passaram a ser cada vez mais discutidos, valorizados e aprimorados (Goellner4). Começou a ganhar destaque, especialmente, a partir da década de 90**, estudado inicialmente por analistas estadunidenses (Cassorla5). O assunto vem sendo muito explorado, incorporado, criticado e questionado por diversos autores***. O primeiro trabalho latinoamericano sobre o tema é de autoria de Roosevelt Cassorla e data de 2000. Esse autor vem estudando as vicissitudes do impacto da "colocaçao em cena" (enactment) e seus reflexos comunicativos e obstrutivos no campo analítico.

Nao há consenso sobre a utilidade do enactment para o processo analítico. Encontramos diversas opinioes contrárias sobre essa questao, algumas das quais serao ilustradas posteriormente neste trabalho. Também há dificuldades em diferenciar esse conceito de outros que também se referem às reaçoes provocadas pelo paciente no terapeuta, tais como acting-out e contratransferência.

Os enactments, atualmente, vêm sendo compreendidos em suas diferentes formas, normalmente com finalidades opostas. Isso nao é, de modo algum, uma novidade na teoria psicanalítica, na qual a existência de dimensoes antônimas sempre foi presente, tais como: pulsao de vida/pulsao de morte, interno/externo, mental/protomental, consciente/inconsciente, psicótico/nao psicótico. Os enactments podem ser abertos/encobertos (Jacobs), agudos/crônicos (Cassorla) e, como propomos agora, de vida/de morte.


CONSIDERAÇOES SOBRE A IMPORTANCIA E ALGUMAS CONTROVÉRSIAS DO CONCEITO

Primeiramente, gostaríamos de começar tentando fazer uma breve distinçao entre o conceito de enactment e de dois termos mais consagrados na literatura psicanalítica - o de acting e o de contratransferência -, apesar de ser bastante difícil estabelecer limites conceituais precisos quando falamos de fenômenos que muitas vezes sao simultâneos e sobrepostos. Para Bateman7, a diferença entre enactment e acting out reside na contribuiçao do analista. No acting (out), o analista é apenas um observador, já no enactment o analista é um participante, vulnerável as suas próprias transferências, suscetível a pontos cegos e preso na relaçao, em vez de ao lado dela.

Rocha8 reforça o ponto supracitado e segue: "o enactment difere do conceito de acting out à medida que pressupoe uma encenaçao, uma atuaçao - também no sentido teatral, nao só no sentido de acting out (ou in), ou seja, açao no lugar de palavras - em que tanto o paciente quanto o analista tomam parte" (p. 173).

Quanto à distinçao entre enactment e contratransferência, Levenson9 diz que o enactment nao é simplesmente um sentimento do terapeuta, mas um padrao de comportamento entre terapeuta e paciente, frequentemente mascarado como interpretaçao. Renik10 considera que só através da compreensao dos enactments é que teremos acesso à contratransferência.

Em um dos artigos pioneiros sobre o assunto, Chused11 diz que os enactments sao interaçoes simbólicas entre analista e paciente que possuem significado inconsciente para ambos. Ivey6 diz que os enactments ocorrem quando o paciente mobiliza inconscientemente alguma predisposiçao subjetiva do analista para sentir e reagir de determinadas maneiras, comportando-se de modo destinado a suscitar uma reaçao emocional do analista que confirme uma fantasia transferencial. Quando a reaçao emocional pode ser compreendida e elaborada pelo analista, sabendo distinguir as projeçoes do paciente, estaríamos no campo da contratransferência. Porém, quando há identificaçoes projetivas maciças, esse sentimento fica muito nublado e difícil de ser compreendido, logo é atuado (na interpretaçao, por exemplo). Nessa situaçao estaríamos no campo dos enactments.

O conceito de enactment tem se mostrado importante na psicanálise contemporânea, pois se apoia nas noçoes de campo analítico e de intersubjetividade, ideias que exaltam a importância da participaçao do terapeuta, valorizando-se os aspectos intrínsecos da dupla no processo analítico. Concordamos com a descriçao feita por Goellner4 de que "sua compreensao cresce em importância, sobretudo entre psicoterapeutas mais jovens e inexperientes, que provavelmente têm uma maior tendência a 'atuar' inconscientemente a contratransferência durante o processo terapêutico" (p. 26). O autor afirma que, caso essas atuaçoes nao possam ser bem compreendidas pelo terapeuta, podem levar a sérios impasses. Porém, quando percebidas, podem levar à compreensao de diversos mecanismos do funcionamento mental da dupla, o que pode beneficiar o desenvolvimento do processo.

De acordo com Chused11, no painel realizado pela APA (American Pshychoanalytic Association) em 1989 sobre o assunto, a maior parte dos analistas defendeu a ideia de que os enactments sao inevitáveis durante o tratamento. Alguns autores mais contemporâneos compartilham essa visao (Steiner12, Levenson9, Cassorla13,14). Na verdade, essa ideia já estava implícita desde a formulaçao de M. Baranger e W. Baranger15 quando dizem que o campo analítico é o lugar que permite a encenaçao das fantasias primitivas do paciente. Steiner12 aponta para a necessidade de o analista estar atento às áreas onde eles sao mais prováveis de ocorrer e diz que isso requer auto-observaçao e autoconhecimento por parte do analista. Friedman e Natterson16 apresentam uma visao diferente sobre o conceito: consideram que "de um ponto de vista intersubjetivo o estudo do enactment leva a uma reconsideraçao da natureza do processo analítico" (p. 220, traduçao nossa). Seguem dizendo que os enactments "sao contínuos, na análise, e sao, essencialmente, apenas outro modo de descrever o processo analítico" (p. 226). Apesar de destacarem que a relaçao analítica é assimétrica, consideram que a subjetividade do analista nao pode ser minimizada, que analista e analisando estao em uma relaçao de coigualdade e que suas subjetividades estao sempre interligadas. Essa visao é, de certo modo, polêmica, pois, com a ênfase na correlaçao e na indissociabilidade da subjetividade da dupla, parece que o analista nao assistiria nada de um lugar "distante" como no acting-out (Bateman7) - ele estaria sempre sendo parte da atuaçao. Os autores consideram, por exemplo, que, quando há resistências na análise, ela é produzida pela relaçao analista/analisando e é um aspecto de um enactment. Renik17 diz algo similar e acredita que às vezes podemos separar e identificar alguns enactments, que se constituem em uma pequena parte daquele enactment que ocorre continuamente no processo analítico.


DIFERENTES TIPOS DE ENACTMENT: ENACTMENT DE VIDA, ENACTMENT DE MORTE

Percebe-se que os autores que têm trabalhado com o conceito de enactment buscam, de maneira geral, diferenciar enactments que poderiam constituir contribuiçoes para o processo analítico, desde que rapidamente detectados e trabalhados, em relaçao àqueles que se constituiriam em empecilhos a esse processo. Para tanto, eles têm proposto diferentes nomenclaturas. Jacobs18 descreve os enactments abertos e os encobertos. Para o autor, os enactments seriam abertos quando sao logo percebidos pelo analista e tornam-se proveitosos para revelar aspectos do funcionamento mental da díade. Ao contrário, seriam encobertos quando passam por longos períodos sem serem percebidos. O autor, entretanto, ao falar dos enactments encobertos, mostra através de um exemplo clínico como, a partir de um engano relacionado a uma peça do seu vestuário, sua atuaçao acabou por dissolver o conluio, oferecendo possibilidade de elaboraçao. O autor entende que, mesmo que ocorram longos períodos de nao compreensao e de sedimentaçao do processo, algo acaba por irromper e permite que o enactment seja desfeito e compreendido. De modo semelhante, Cassorla13 postula a existência de enactments normais, os quais sao derivados de identificaçoes projetivas mais realísticas/comunicacionais. Esses sao contínuos e inevitáveis ao tratamento. Sao microtraumas atualizados na relaçao transferencial que sao dissolvidos rapidamente, através das interpretaçoes do analista, e podem ser utilizados em favor do processo analítico. Seu resultado seria a continuidade, compreensao do que nao pode ser comunicado verbalmente. Buscam uma ligaçao e desenvolvimento psíquico. Por isso, propomos para esses casos a denominaçao "enactment de vida".

Já os enactments que se constituiriam em empecilhos para o tratamento seriam derivados de identificaçoes projetivas maciças. Esses seriam, por sua vez, distinguidos entre: "agudos - quando aparecem com grande intensidade, mobilizando violentamente a dupla analítica e durando apenas instantes, se compreendidos; e crônicos - quando se prolongam, numa colusao que demora bastante tempo até ser identificada, ou que leva a um impasse impossível de ser desfeito" (Cassorla13, p. 61). Sao situaçoes que podem passar muito tempo sem compreensao, e que buscam encobrir macrotraumas. Podem levar a impasses e, na sua expressao máxima, ao abandono do tratamento. Assim, dentro dos enactments crônicos há os que podem ser desfeitos e os que atacam a ligaçao com o paciente de tal modo que impedem a continuidade da relaçao/tratamento. O processo torna-se estéril, o campo é imobilizado pelo excesso de conluios que nao conseguem ser desfeitos e a funçao alfa parece ter sido insuficiente ou desvitalizada****. Quando os conluios nao podem ser dissolvidos, é como uma aniquilaçao silenciosa que exerce uma tendência ao desligamento, nesse caso o desligamento do próprio processo analítico, por isso o termo "enactment de morte". A proposiçao desse termo tem como base o conceito desenvolvido por Green19 de narcisismo negativo, ou de morte. Este parte de uma reconceitualizaçao da pulsao de morte de Freud, referindo-se a uma funçao desobjetalizante, a qual atua nao apenas sobre os objetos ou seus substitutivos, mas também sobre o próprio processo de objetalizaçao (Green20). De acordo com Green21, leva a uma destruiçao por desinvestimento. Propomos que os enactments de morte atuam dessa forma, destruindo o processo analítico/terapêutico por desinvestimento da ligaçao com o analista e com o tratamento. O próprio Green21, nesse mesmo texto, referiu que certos tratamentos analíticos seriam mortos de um modo diferente da reaçao terapêutica negativa, em funçao de um "obstáculo narcísico atrás do qual o sujeito se abriga e que parece resistir a uma análise" (p. 265). Propomos que, quando essa funçao desobjetalizante encontra eco no analista e ele também já nao consegue mais investir na ligaçao com o paciente, podemos nos deparar com um enactment de morte.


ENACTMENT NA CLINICA COM CRIANÇAS

Talvez por ser um conceito novo, ainda nao se tenha pensado e desenvolvido o enactment em sua relaçao com a clínica de crianças. A única referência bibliográfica que encontramos foi o artigo de Chused11, no qual ela traz a articulaçao do conceito com a análise de uma menina de 8 anos. Porém, diferentemente das vinhetas que serao apresentadas, essa menina estava em um tratamento de alta frequência semanal e, pelas descriçoes da autora, parecia funcionar predominantemente com a parte nao psicótica da personalidade. Logo, tinha maior capacidade de se comunicar de forma simbólica, tanto verbalmente quanto através do brincar. A autora já alerta que a comunicaçao na clínica com crianças tende, naturalmente, ao ato.

Defendemos a ideia de que esse conceito pode ser uma importante ferramenta na clínica infantil, especialmente com crianças que apresentam patologias severas. Isso vai ao encontro da afirmaçao de Cassorla13 de que "o enactment é consequência da impossibilidade de externalizar essas situaçoes ou fantasias inconscientes a elas vinculadas, através da simbolizaçao verbal. Por envolverem elementos beta, serao mais comuns quando predomina o funcionamento da parte psicótica da personalidade" (p. 59).

Cassorla (2013, comunicaçao pessoal) diz que é útil pensar o enactment na clínica com crianças, porém alerta que devemos tomar um cuidado: se, ao brincar, a comunicaçao da criança tem conteúdo simbólico e o analista responde - durante o jogo - da mesma forma, trata-se de atos simbólicos, e nao de enactments. Os atos simbólicos sao fruto do inconsciente reprimido, como sonhos, atos falhos e o brincar da criança neurótica. Já nos pacientes mais regredidos, esses atos ou brincadeiras nao necessariamente se associam a outros elementos, pois nao há rede simbólica suficiente, e eles podem ser simplesmente repetiçoes ou atos concretos.


MATERIAL CLINICO

Apresento duas vinhetas clínicas nas quais pude reconhecer áreas em que ocorreram enactments.

Pedro é um paciente de 7 anos, muito impulsivo, agressivo, pouca discriminaçao do que está acontecendo no ambiente a sua volta. Recentemente, teve impregnaçao por excesso de medicaçao. Por essa e outras razoes, foi internado em um hospital onde ficou algumas semanas para fazer uma avaliaçao completa do caso (mapeamento genético, avaliaçao de medicaçao e para se pensar em algum diagnóstico). Nossos encontros sempre sao difíceis, talvez pela minha pouca experiência e por sentir que minha capacidade analítica e funçao alfa sao constantemente obstruídas pela agressividade do paciente.

O paciente tem variaçoes bruscas de humor, muitas vezes está desenhando e levanta-se repentinamente e começa a chutar algum móvel ou bater nas prateleiras. No início, deixava-o bater, pois sentia que sua mente poderia estar sobrecarregada e que aquilo seria como a pressao de elementos beta que precisava ser evacuada de alguma forma. Depois, comecei a ficar preocupado, pois ele poderia se machucar enquanto agredia os móveis, entao combinamos que ele nao poderia mais fazer aquilo.

Em uma manha aparentemente calma, Pedro estava desenhando e entao, como ocorre com certa frequência, levantou-se de forma abrupta da cadeira, agitou-se e começou a gritar e bater palmas. Segundos depois, isso evoluiu para tapas e socos desferidos contra as prateleiras de metal, fazendo muito barulho, um barulho que eu nao conseguia mais tolerar. Eu fiquei parado tomado por aquilo, pensando "O que eu faço? Digo para ele nao fazer? Interpreto? Contenho?". Tudo que eu consegui fazer foi ficar imóvel, incompreendendo um sentimento de excesso nele e em mim. Nenhum de nós sabia o que fazer. Algo estava se espalhando na sala e de forma desesperada. Nao compreendíamos o que se passava, apenas a intensidade da açao de bater e jogar tudo longe (Iankilevich22). Nesse momento sinto que sou engolfado pela parte psicótica de Pedro e, sem me dar conta, respondo aos gritos: "PARE COM ISSO AGORA!". O paciente parece muito assustado com a minha reaçao e para de bater. Imediatamente, sinto-me culpado e assustado com a minha própria reaçao, mesmo tendo apaziguado a situaçao.

Uma segunda situaçao ocorreu recentemente, após o paciente ter voltado da internaçao. Na internaçao, no hospital, Pedro teve contato com terapeutas que faziam intervençoes mais coercitivas, diziam que o menino nao deveria fazer determinada atividade, que seria inapropriada, pois ele já tinha 7 anos. Falavam que meninos de 7 anos nao chupavam bico, que meninos de 7 anos nao gritavam, e sim conversavam, etc.

No nosso primeiro reencontro, Pedro parece diferente, parece mais contido. Reclama muito do terapeuta que estava com ele no hospital, dizendo que ele era muito ruim, chato, sem graça. Passa longos períodos das manhas sem querer fazer nada e descumprindo as combinaçoes previamente estabelecidas. Sinto-me empático com a situaçao e aceito que ele nao cumpra algumas combinaçoes. Em outras manhas, diz que eu sou seu melhor amigo, pergunta se eu o amo. Pensando a posteriori, sinto que talvez eu tenha sido empático em excesso com essa situaçao, novamente sendo envolvido em um conluio. Ficava muito incomodado com as intervençoes feitas pelo outro profissional. Sentia que, às vezes, Pedro pedia limites e eu, receoso em reproduzir as intervençoes do outro terapeuta, tentava através da fala buscar compreensao, o que nao funcionava. Talvez ele tenha tentado me transformar no terapeuta bonzinho, que deixava fazer o que ele queria e que iria salvá-lo do terapeuta mau, chato, punitivo. Possivelmente, eu tenha projetado o meu lado chato/punitivo, sentimento que estava presente no campo, identificandome com o papel que o paciente designou para mim, mecanismo similar ao descrito por Sandler1. Podemos perceber que outro conluio se formou, o campo se transformou em algo da ordem do gratificatório. A partir da discussao do material em supervisao e com colegas, esse conluio começou a se evidenciar para mim, e pude observar com alguma distância o convite feito na transferência, em vez de apenas "aceitá-lo" e sair do papel de terapeuta bonzinho.


DISCUSSAO

Como podemos perceber através das vinhetas, conceitos como contratransferência, contraidentificaçao projetiva e enactment sao muito próximos, superpoem-se e nem sempre é possível diferenciá-los claramente. Em relaçao à primeira vinheta: acreditamos que houve um enactment, pois, seguindo as ideias de Bion, a capacidade de pensar do terapeuta foi colocada em suspensao e ele entrou na açao induzida pelo paciente. A resposta, assustando-o, talvez tenha representado o objeto interno pai, que emergiu e foi reproduzido na relaçao transferencial. Como apontou Cassorla (2013, em comunicaçao pessoal sobre o presente caso), a fala "pare com isso agora" pode envolver vários níveis: descarga, pois o terapeuta foi recrutado pelo paciente para assumir um papel, e o assumiu, papel que nao foi necessariamente repressor, podendo ser também uma forma de contençao; interpretaçao, talvez uma interpretaçao em ato. É como se o terapeuta dissesse "Veja que nao é possível suportar isso". "No meu modelo, configura-se um enactment que inclui tanto a descarga como o trabalho de sonho, a possível interpretaçao, que veio do fundo de você. Penso que é um enactment agudo que tenta dissolver um enactment crônico com risco de conluio sadomasoquista. A resposta do paciente, sossegando, confirma a hipótese" (Cassorla, 2013, comunicaçao pessoal).

Pensando hoje e usando os diferentes vértices fornecidos por Cassorla, acreditamos que essa situaçao pode ser lida, pelo menos, de três maneiras diferentes. Primeira possibilidade: um enactment interpretativo na fala do terapeuta. Segunda possibilidade: houve uma descarga fruto de nao-sonho-adois (para maiores detalhes ver Cassorla14,23,24) dissolvendo um enactment crônico. Terceira possibilidade: seria uma evoluçao da segunda hipótese - dentro do que propomos, seria um enactment de vida, pois, após a cena, o terapeuta já consegue tecer hipóteses sobre sua açao que podem ser utilizadas no trabalho posterior. Há uma dissoluçao de conluios e recrutamentos previamente estabelecidos.

Sobre a segunda vinheta, estava se constituindo um enactment de idealizaçao mútua. No momento em que o terapeuta percebe isso, e é capaz de tecer hipóteses em relaçao a uma possível competiçao com o terapeuta anterior, o enactment se desfaz. "Quando você percebe o que ocorre, deixa de ser um enactment" (Cassorla, 2013, comunicaçao pessoal). Fica claro nas duas vinhetas que houve um predomínio da ligaçao com o paciente. Assim, mesmo que inicialmente eles tenham afetado a capacidade analítica do terapeuta, logo puderam ser compreendidos e utilizados como forma de comunicaçao.


CONCLUSAO

Através das vinhetas clínicas, buscamos mostrar como pensar sobre o conceito de enactment na clínica com crianças pode ser útil. A utilizaçao do conceito ainda é imprecisa, causando dúvida e confusao entre os analistas em relaçao a outros termos. Bateman7, por exemplo, diz que o "enactment é um termo híbrido, que incorpora ideias geralmente classificadas como atuaçao, atualizaçao, repetiçao, transferência e contratransferência. Consequentemente, nao existe uma definiçao universalmente aceita do conceito, o que por sua vez leva ao risco de ficar sem sentido, acrescentando pouco às nossas tentativas de refinar a teoria analítica e de compreender melhor os pacientes". (p. 41). Isso se torna ainda mais presente na clínica com crianças, em que a comunicaçao por ato é muito mais presente que com adultos, tornando ainda mais árdua a tarefa de discriminaçao entre comunicaçao simbólica e atuaçao. Neste sentido, destacase a importância de que novos trabalhos se empenhem na tarefa de pensar sobre o enactment na clínica com crianças, especialmente com a utilizaçao de material clínico. Acreditamos que o presente trabalho coloca-se como um pequeno passo nessa direçao, mas seria bastante enriquecido pela descriçao de material mais completo a respeito de casos de psicoterapia e/ou análise de crianças.

Destacamos ainda que a introduçao dos termos enactment de vida e enactment de morte nao foi feita a fim de acrescentar mais um conceito e gerar confusao, mas sim para ajudar a identificar situaçoes que possam impedir o curso do tratamento, matando-o por desinvestimento - do paciente e do psicoterapeuta ou analista. Sao situaçoes em que o desligamento e a desfusao prevalecem sobre qualquer forma de comunicaçao, ligaçao e objetalizaçao.

Acreditamos, a partir do presente trabalho, que, embora o conceito de enactment ainda nao seja tao claro e nao haja consenso em relaçao a seu significado, pensar sobre ele é importante para a clínica, tanto de adultos como de crianças, principalmente a fim de identificarmos essas situaçoes e de pensarmos em como manejá-las quando sao identificadas. Destaca-se, para isso, a importância do tratamento pessoal do terapeuta e da supervisao dos atendimentos.


REFERENCIAS

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a. Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre, RS, Brasil
b. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da UFRGS

Instituiçao: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Correspondência

Rafael Cavalheiro*****
Rua Ramiro Barcelos, 2.600, sala 130
90035-003 Porto Alegre/RS
rafaelatler@gmail.com

Submetido em: 31/01/2014
Solicitaçao de reformulaçoes em: 28/05/2014
Retorno dos autores em: 05/06/2014
Aceito em: 20/06/2014

* Agradecemos ao Dr. Roosevelt Cassorla pelas suas sábias e afetivas colocaçoes, que viabilizaram o investimento necessário para a escrita deste trabalho.

** A primeira vez que o termo enactment apareceu em um título de trabalho foi em 1986 com o artigo sobre "enactment contratransferencial" de T. Jacobs.

*** Para uma discussao mais aprofundada sobre as controvérsias e limites do conceito, o artigo de Gavin Ivey6 traz uma reflexao crítica, questionando os problemas da definiçao e os possíveis impactos positivos e negativos dos enactments na relaçao analítica.

**** Em relaçao à funçao alfa, Cassorla (2013, comunicaçao pessoal) diz que a funçao alfa implícita (ver Cassorla, 2009, 2010) do analista ocorreria nos enactments de vida (agudos/alguns crônicos). Verificar-se-ia que ela estava agindo de forma implícita no momento em que o enactment foi desfeito, logo, foi produtivo. Quando nao é produtivo (enactment de morte), nao saberíamos se a funçao alfa funcionou. Ou ela nao foi suficiente, ou nao foi adequada, ou foi atacada pelo paciente, ou o analista nao a teve. Nao há como saber. Só sabemos que o conluio continuou até ficar permanente (análises intermináveis sem que o analista se dê conta do conluio) e com impasses analíticos.

***** O terapeuta é um dos autores do texto. Durante a descriçao do caso foi utilizada a primeira pessoa do singular para preservar a especificidade do encontro.

 

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