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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2014; 16(1):15-25



Artigos Originais

O acompanhamento terapêutico a crianças e adolescentes com problemas no desenvolvimento: desafios e possibilidades

Therapeutical accompaniment of children and adolescents with developmental problems: challenges and possibilities

Ana Paula Carvalho da Costa

Resumo

Este artigo apresenta algumas funçoes e especificidades do acompanhamento terapêutico realizado junto a crianças e adolescentes com problemas no desenvolvimento, entendido como uma intervençao de efeitos clínicos e políticos. Posteriormente, sao indicados certos desafios enfrentados por essas crianças e adolescentes em relaçao às suas tentativas de inserçao no laço social, o qual exclui as diferenças, principalmente quando impressas no próprio corpo do sujeito. Apresenta-se, por fim, um atendimento em AT realizado, a partir do referencial psicanalítico, junto a um adolescente estudante de uma escola especial.

Descritores: Acompanhamento terapêutico; Reforma psiquiátrica; Constituiçao psíquica; Psicanálise; Laço social.

Abstract

This essay presents some of the functions and specificities of "Therapeutical Accompaniment", conducted with children and adolescents with developmental problems, understood as a clinical intervention and political effects. Subsequently, are shown certain challenges faced by these children and adolescents in relation to their attempts to insert into the social bond, which excludes differences, especially when printed in the subject's own body. Finally, a case of TA performed from psychoanalytic theory with a teenage student at a special school is presented.

Keywords: Therapeutical accompaniment; Psychiatric reform; Psychic constitution; Psychoanalisis, social bond.

 

 

INTRODUÇAO

O acompanhamento terapêutico (AT) é uma modalidade de atendimento que tem sido largamente utilizada no campo da saúde mental, atuando nos movimentos da Reforma Psiquiátrica e da Inclusao Escolar. É uma prática que se propoe a acompanhar, fora do setting tradicional, pessoas portadoras de sofrimento psíquico - cuja intensidade, por vezes, dificulta a construçao de laços sociais em seu contexto de vida. Possui, assim, uma circulaçao social delimitada a uma área muito restrita - em muitos casos se restringindo à própria casa ou, ainda, exclusivamente ao espaço do seu quarto. Em funçao dessa condiçao, o acompanhante terapêutico guia seu trabalho no sentido de acompanhar o paciente nos lugares a que este se propuser a ir - dentro ou fora de casa -, numa aposta de poder ampliar as possibilidades de inserçao social.

Abordaremos, portanto, alguns pontos: O que é o AT? Quais as funçoes e especificidades dessa clínica com crianças e adolescentes? Quais as diferenças e semelhanças em relaçao à clínica realizada no setting tradicional? E, para contribuir com a articulaçao dessas ideias, apresentarei alguns recortes clínicos de um AT realizado, a partir do referencial teórico psicanalítico, junto a um adolescente de 20 anos, estudante de uma escola especial.

Tais encontros, curiosamente, realizaram-se quase que exclusivamente no espaço de sua casa, havendo poucos atendimentos na rua, mas, a partir dos quais, ele pôde retomar algumas atividades importantes nas quais havia se inserido - antes do momento de desorganizaçao psíquica - e refazer alguns laços fundamentais para ele.


ACOMPANHAMENTO TERAPEUTICO: ENLACE ENTRE CLINICA E POLITICA

O AT surgiu no contexto do Movimento da Reforma Psiquiátrica, o qual teve início, no Brasil, durante a década de 70, em meio à luta pela democratizaçao do país. Esse período criou as condiçoes históricas à crítica ao modelo hospitalocêntrico entao existente, surgindo movimentos que propunham novas formas de atençao em saúde mental.

O movimento pela Reforma surgiu como uma série de tentativas de reformular as propostas de tratamento oferecidas ao louco, humanizando a atençao dentro do asilo; posteriormente, a proposta se radicalizou, pois as reivindicaçoes passaram a clamar nao mais pela reformulaçao do atendimento dentro do hospício, mas a defender a queda dos muros do hospital como condiçao necessária à transformaçao nos modos de abordar o problema da loucura.

Estao presentes aqui, portanto, duas propostas de açao: a da desospitalizaçao, que diz respeito a mudanças organizacionais e legais na relaçao com o louco, e a da desinstitucionalizaçao, um processo mais profundo, que transforme as formas de relaçao com a loucura1.

É na proposta de desinstitucionalizaçao da loucura que o trabalho do acompanhamento terapêutico inicialmente se insere, no sentido de acompanhar tais sujeitos em uma maior circulaçao pela cidade. Palombini2 refere que essa prática, referenciada na psicanálise, é uma modalidade clínica de interesse, colocando-se como alternativa para a construçao de um "espaço transicional, uma zona de intermediaçao entre a referência institucional para esse sujeito" (o hospital psiquiátrico, o ambulatório, ou a própria casa) "e seu acesso à via e aos lugares públicos".

Nesse sentido, o trabalho do AT permite um "andar junto" entre acompanhante e acompanhado, criando as condiçoes para a construçao de outros caminhos a serem percorridos pelo paciente, bem como as diversas possibilidades de contato com outros instrumentos sociais - para além do manicômio e de outras organizaçoes igualmente excludentes.

A cidade, nessa modalidade clínica, aparece muitas vezes como agente de intervençao: afinal, é nela que se dao os trajetos percorridos por acompanhante e acompanhado, possibilitando a emergência de encontros com outros sujeitos, em diferentes espaços sociais. Encontros estes que autorizem as escolhas do portador de sofrimento psíquico, reconheçam sua palavra (ainda que, com bastante frequência, possa ocorrer exatamente o oposto) e apontem outros enlaces possíveis.

No entanto, por mais que a prática do AT tenha surgido e se caracterizado como uma prática clínica que trabalha na rua - isto é, fora do tradicional setting analítico -, esses trajetos a serem estabelecidos nao podem ser preconcebidos, ou seja, dados a priori. Aqui também a direçao deve ser a do desejo. A realizaçao do AT desenvolve-se, portanto, em um contexto que diz respeito aos territórios subjetivos que o paciente tem construído para si - seja seu bairro, sua casa ou, até mesmo, seu quarto.

A cidade, nesse exercício, se presentifica como matéria dessa clínica, podendo-se pensá-la, segundo Palombini3, em uma funçao de alteridade ao sujeito acompanhado. Afinal, ela potencialmente resguarda - em relaçao a outros espaços do habitar - uma maior distância do corpo materno.

Deparamo-nos entao com uma dimensao política, pois trabalhamos aqui com sujeitos que estao imersos em um mundo de relaçoes sociais, em uma malha significante de diferentes discursos (familiares, sociais, médicos...) que produzem um saber sobre eles, e com uma dimensao clínica, que busca escutar as respostas que tais sujeitos produzem a partir de entao, isto é, como eles se singularizam, para além das grandes definiçoes e classificaçoes nosológicas, por exemplo.

O recorte a ser feito aqui será o do atendimento de crianças e adolescentes com problemas no desenvolvimento, no sentido de abordar os tensionamentos que esses sujeitos vivem e as estratégias possíveis frente ao enfrentamento de seu mal-estar.


O AT NO ATENDIMENTO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM PROBLEMAS NO DESENVOLVIMENTO

O AT pode ser realizado com crianças, adolescentes, adultos e idosos, mas o enfoque a ser dado aqui será o do atendimento de crianças e adolescentes com problemas no desenvolvimento. O AT pode se fazer fundamental nesses casos, dado que, nessas etapas, o sujeito está em processo de constituiçao psíquica e, portanto, em uma relaçao de maior dependência das figuras paternas. Frente ao problema do filho, a família, muitas vezes, nao consegue supor possibilidades de o mesmo crescer e desenvolver autonomia para lidar com as coisas do futuro - reforçando, assim, a expectativa de uma maior dependência ao meio familiar.

Em uma cultura que valoriza a aceleraçao na produçao e no tempo, a família também se toma frente a essas demandas e questiona-se sobre as possibilidades de o filho se inserir nessa velocidade esperada. Quando há uma diferença ou uma limitaçao marcada no corpo, há uma maior dificuldade na família de reconhecer esse filho numa posiçao desejante. Assim, as limitaçoes nas suas inserçoes nas trocas sociais por vezes ficam mais decisivas, nao tanto pela limitaçao física ou psíquica, mas, sobretudo, pelas fantasias que a família faz dessas limitaçoes.

É a partir das possibilidades de estabelecer relaçoes, ou fortalecer os laços já existentes, fora do espaço de casa, que o sujeito poderá construir uma maior autonomia em relaçao à família - espaço este que, por vezes, de tao "resguardado", acaba sufocando as inserçoes do sujeito para além do espaço de casa. Faz-se imprescindível auxiliar na construçao de uma relaçao possível ao laço social - criaçao de laço, de pertença, de inserçao na malha social, buscando pontos de contato entre o que o sujeito traz, em seus rasgos de desejo, e os traços e as representaçoes que a cultura e o discurso social apresentam.

No AT com crianças e adolescentes, será fundamental escutar o sujeito, os pais (e as produçoes imaginárias dos mesmos em relaçao à problemática do filho) e a rede social, escolar ou terapêutica que o acompanha em outros lugares de sua vida, como a escola, demais profissionais que o atendem, entre outros - enfim, a rede de relaçoes que ele tem estabelecida.

Uma observaçao que se faz fundamental, em se tratando do AT, é que, apesar de ser uma modalidade de atençao que inicialmente caracterizou-se por ser um atendimento que se dá na rua, na pólis, muitas vezes nao é isso que acontece. No entanto, a prática continua sendo a do AT, tomando-se em conta que nao será o espaço onde se dará a intervençao que define o atendimento nessa modalidade clínica, ser dentro ou fora de um determinado espaço, mas, sim, a da escuta do sujeito e a das possibilidades que ele apresenta em determinado momento. O fato de os atendimentos serem feitos, muitas vezes, na casa do paciente nao descaracteriza o atendimento como da ordem do AT. Ao mesmo tempo, uma circulaçao na rua que nao faça enlace com aquilo que o sujeito aponta como direçao acaba sendo uma saída sem amarra, sem direçao. Nesse caso, o desejo é o sentido indicado.

Muitas vezes, aquilo que interessa ao sujeito pode demorar a aparecer, sendo entao fundamental suportar esse tempo de espera - espera ativa por parte de quem se propoe a acompanhar.

No sentido de abordar melhor essas questoes, apresentarei um caso clínico no qual algumas funçoes e especificidades do AT se fizeram presentes, podendo, a partir do mesmo, dar corpo à teoria.


UM RECORTE CLINICO

Iniciei o atendimento de Fabrício - entao com 20 anos - em agosto de 2004, a partir de um pedido da escola especial, municipal, na qual este estudava e da qual estava afastado em razao do comportamento agressivo que vinha apresentando.

O primeiro contato com o paciente ocorreu na sua casa, sendo que fui recebida por ele e por sua mae. Ele sentou-se na sacada e, enquanto a mae contava as dificuldades do filho na escola, ele ficava olhando para os trabalhadores que estavam fazendo obras no seu prédio. Por vezes, o paciente me olhava, rindo, e respondia às coisas que eu lhe perguntava, balançando a cabeça afirmativamente. A mae contavame também sobre os tratamentos que ele fazia, com psiquiatra, terapia ocupacional e agora com o AT. Refere que voltará a trabalhar, após sete meses de licenças, e precisa que o filho volte a frequentar a escola. Após fazer o contrato com ela, fui para a sacada com o paciente, e ele começou a tocar violao. Depois, me convidou para escutar música no seu quarto e colocou várias vezes a música de um CD que estava no seu aparelho - CD que embalou muitos dos nossos encontros no decorrer dos quatro meses em que o atendi.

Num atendimento realizado apenas com a mae, ela falou sobre situaçoes ocorridas no nascimento do filho. Ele apresentou uma condiçao clínica que é muito comum em recém-nascidos e que em geral é fácil de ser tratada quando o tratamento é feito a tempo; mas, além disso, ele ficou vários meses internado, em funçao de uma outra doença que a equipe do hospital alegou, o que fez a mae desconfiar de um possível erro médico no momento do parto. Em funçao das dificuldades em relaçao à comunicaçao e à aprendizagem, Fabrício possuía o diagnóstico de Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD)4. Em relaçao à família de Fabrício, a mae falou que ela e o pai dele eram separados, e que pai e filho se encontravam regularmente. Além disso, referiu que estava casada novamente e que moravam, naquele apartamento, ela, o atual companheiro, a filha mais velha (fruto do casamento com o pai de Fabrício) e as duas filhas pequenas, do seu casamento atual.


A REDE DE ATENDIMENTO

Em seguida, participei de uma reuniao da escola em que estariam presentes os técnicos que acompanhavam Fabrício: além das trabalhadoras da escola (professoras, psicopedagoga, orientadora educacional, supervisora, entre outras), comparecemos eu (AT) e a terapeuta ocupacional. Nesse momento, a escola colocou que o aluno estava afastado das aulas para tratamento das manifestaçoes de agressividade, angústia e choros repentinos, e que elas estavam enfrentando dificuldades para trabalhar com ele frente a tantos sintomas. Nesse contato, elas falaram de algumas mudanças importantes pelas quais o paciente passou, como a mudança de residência e o afastamento dos antigos vizinhos; a saída de alguns colegas, amigos de Fabrício, que deixaram de estudar na escola ao fazer 21 anos; além do nascimento das irmas menores e da necessidade de ter de dividir o quarto com elas. Referiram também que, quando ele era menor, era mais fácil intervir com ele, mas que, ao crescer, elas passaram a se assustar com as ameaças que ele fazia, quando se desorganizava.

Nesse contato com a escola foi possível fazer um primeiro acesso ao paciente e a seu contexto familiar, conhecer as questoes que estavam sendo abordadas com ele na escola, antes de ter sido suspenso - o que permitiria compor as intervençoes, durante os ATs, a partir do que surgia na escola. E, também, para ajudar a conhecer melhor as vivências do paciente e o lugar atribuído a ele a partir da família.


DAS BORDAS CORPORAIS

A maioria dos atendimentos aconteceu na casa dele. Geralmente, o paciente mostrava-se bastante disposto a me receber, convidando-me com frequência a ir para o seu quarto escutar música. O CD que escutávamos era o de um músico gaúcho que cantava músicas românticas. Era interessante que nesses momentos ele falava do seu interesse por usar botas, assim como o músico. Uma pergunta bastante frequente que ele fazia era se determinada coisa "era bom". Tal pergunta retornava bastantes vezes. Por exemplo, perguntava se bater "era bom". Era uma tentativa de atribuir valor às coisas, frente à fragilidade simbólica que apresentava.

Nas nossas conversas, Fabrício falava constantemente sobre Luiza, uma trabalhadora da escola por quem ele estava apaixonado, e sobre Alexandre, o auxiliar de limpeza de quem estava muito próximo e a quem procurava com muita frequência dentro da escola. Esse trabalhador também usava botas, em funçao do trabalho, e usava cavanhaque. Em certo momento, Fabrício também passou a deixar seu cavanhaque crescer.

Ao falar dessas pessoas, o paciente dizia que quebraria a cabeça deles e que arrancaria partes do corpo de Luiza, ou objetos pessoais que ela usava, e levaria para casa. Essas falas aconteciam em um momento importante, visto que estava entrando num processo de adolescência, a qual acarreta mudanças de ordem corporal e da sexualidade, colocando ao sujeito a necessidade de se ressituar a partir disso - isto é, ressituar sua organizaçao psíquica e imagem corporal.

Em um dos primeiros atendimentos realizados, Fabrício mostrou agressividade contra mim, momento em que deu um chute em minha perna. Essa desorganizaçao do paciente parecia dizer de uma nao delimitaçao corporal, exigindo de mim uma intervençao no sentido de dar borda, contorno ao corpo do paciente - o que, nesse momento, foi através do meu próprio corpo.

Tal acontecimento permitiu escutar algo que diz respeito a uma frágil inscriçao da imagem corporal, o que pode ser pensado a partir do que Lacan5 fala sobre o Estádio do Espelho. O autor afirma que o Estádio do Espelho pode ser entendido como uma identificaçao, isto é, uma transformaçao produzida no sujeito quando ele assume uma imagem. O reconhecimento jubilatório de sua imagem especular, num momento em que ainda está mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentaçao, constituirá, segundo Lacan, a matriz simbólica em que o "eu" se precipita numa forma primordial, "antes de se objetivar na dialética da identificaçao com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua funçao de sujeito5.

Nesse sentido, o bebê, em sua condiçao corporal de fragmentaçao, prematuraçao, inacabamento anatômico, vivenciará inicialmente uma indiferença entre o seu corpo e o corpo da mae. O Estádio do Espelho caracteriza-se entao pela conquista que a criança faz da imagem do seu corpo, ordenando-se uma primeira identificaçao. Esse processo se desdobra em três tempos: 1) um momento bastante breve, em que a criança vê um outro no espelho; 2) uma etapa decisiva para o processo identificatório, aquele da descoberta de que o outro do espelho é uma imagem; 3) um último momento, no qual a criança se reconhece nessa imagem, adquirindo uma representaçao do próprio corpo, unificado numa totalidade, nao fragmentado.

Portanto, é o olho da mae, em posiçao especular, que está num lugar privilegiado de orientaçao do olho do bebê. Como exemplo, temos os gracejos trocados pela mae com o seu filho, em que o sorriso da criança é tomado por essa mae como uma resposta, como um "quer dizer", no sentido de significar as manifestaçoes do seu filho. O ponto de ancoragem dessas trocas é "o olho que se olha no olho que o olha"6 (p. 19). Importância de que haja, primeiro, uma alienaçao, mas, depois, uma separaçao nessa relaçao da mae com o seu filho. Que ela possa fazer investimentos em outros aspectos de sua vida e abrir espaço para que o filho também invista, libidinalmente, em outros lugares.

Essa separaçao representa a entrada da funçao paterna, que remeterá a criança, em um tempo posterior, a uma identidade sexual7, a uma dimensao desejante e a uma inscriçao na cultura. Ao nao haver essa entrada da dimensao paterna, os investimentos sociais passam a ser vivenciados mais como uma intrusao ao elo nao rompido com a mae e uma invasao desorganizadora à frágil organizaçao psíquica que o sujeito conseguiu estabelecer.

Retomando a história de Fabrício, é possível pensar que essa relaçao mae-bebê possa ter se dado a partir de um baixo investimento libidinal dessa mae dirigido ao filho, o que igualmente poderia acarretar uma dificuldade na entrada da funçao paterna e na simbolizaçao do corpo. Isso tomando-se em conta a contribuiçao de Jerusalinski8, quando esse autor afirma que a alta ocorrência de problemas sexuais nos portadores de problemas no desenvolvimento se dá porque o desejo da mae dirigido ao filho fica perturbado e a reciprocidade do intercâmbio entre eles deixa de ser prazerosa. Assim, esse apaixonar-se e ter de dar conta da sexualidade que irrompe fez Fabrício retomar uma vivência de fragmentaçao corporal, produzindo, também na relaçao com o corpo do outro, uma nao integraçao.

Nesse sentido, uma das funçoes do acompanhante terapêutico é justamente proporcionar intervençoes que possam dar borda ao sujeito - o que se deu, no caso do chute, através do próprio corpo do acompanhante terapêutico. Mas há a possibilidade de intervençoes que ocorram pela palavra. Por exemplo, ao falar sobre a vontade de levar objetos das pessoas de sua admiraçao, como Luiza e Alexandre, foi possível oferecer interpretaçoes que situassem a relaçao de Fabrício com eles a partir de um dos fatores que sustentam o laço social - gostar, querer estar próximo, trocar experiências -, e situando assim o que é dele, o que é do outro e as trocas possíveis.


MATERIALIDADE E INVESTIMENTO PSIQUICO

No AT, em razao de se estar em contato com os objetos de interesse do sujeito, há uma maior possibilidade de se deparar com aquilo que lhe pertence, dizendo de seus investimentos psíquicos. Um exemplo disso é quando ele me convidava a ouvir música. O ouvir música, por exemplo, estabelecia ali uma relaçao tal qual a do brincar, na qual a criança pode dizer toda a sorte de coisas que tem o valor de associaçoes genuínas9.

Como exemplo disso, destaco o dia em que ouvíamos música e, ao prestar atençao em uma parte na qual o cantor falava da saudade que sentia "dos encontros entre braços e pernas", dele e de sua amada, Fabrício perguntou o que eram "braços e pernas". Isto é, a incompreensao de uma expressao metonímica na música pôde surgir no atendimento e possibilitar uma maior compreensao do caso e direcionar o tratamento. Nessa situaçao com a música, por exemplo, aquilo que no cotidiano ficava na ordem de uma repetiçao infindável (escutar várias vezes o mesmo CD), no atendimento repercutiu e pôde propiciar um trabalho com aquilo que o paciente apresentava.


INTERVENÇOES COM A FAMILIA

Em relaçao à situaçao do chute, foi importante trazê-la à família, pois a mae achava que as manifestaçoes agressivas dele ocorriam apenas na escola. Era necessário apontar à mae que esse acontecimento se presentificava em outros espaços, para que a família pudesse se perguntar sobre modificaçoes necessárias. É interessante aqui o que as professoras destacaram, sobre o fato de ele ter passado a dividir o seu quarto com as irmas pequenas após o nascimento delas. Durante os encontros, foi possível perceber um aspecto relativo à disposiçao dos móveis: além do compartilhamento do quarto com as irmas menores, a cama de Fabrício era menor que ele - apontando, de uma certa forma, um desencontro entre o tamanho real do adolescente e o tamanho que a família atribuía a ele, desencontro este que nao se restringia, unicamente, à dimensao física de seu corpo.


SETTING AMPLIADO

No decorrer do tratamento, um único atendimento ocorreu fora de sua casa. Certo dia, Fabrício manifestou o interesse de que eu fosse à escola dele, para conhecê-la. Aceitei seu convite, partindo do pressuposto de um "mapeamento concomitante entre a circulaçao do desejo e a circulaçao pela cidade"10. Nesse encontro, Fabrício com frequência dava sua mao a mim, ao mostrar a escola, e nao permitia que outros fizessem a mesma coisa. Demarcava um tempo que era dele (o do AT). Nao pela agressao, mas pela palavra.

Nesse mesmo dia, encontrei suas professoras e a diretora da escola, que disseram que ele, além do retorno à escola, estava voltando também ao cargo de estagiário que fora criado para ele, de auxiliar de limpeza. Essa foi uma saída muito interessante encontrada pela escola, frente às dificuldades dele em permanecer a manha toda em sala de aula. A combinaçao que se estabeleceu a partir de entao era a de que, na primeira metade da manha, ele participava das atividades em sala de aula, com os colegas, e, na outra, trabalharia junto com Alexandre na limpeza da escola.

Durante o AT, quando eu perguntava se ele tinha ido à escola naquela semana, ele respondia: "Fui trabalhar". Esse acontecimento aponta que as saídas de Fabrício frente ao mal-estar decorrente do enfrentamento às demandas do laço social eram muito potentes. Afinal, ele mostrava uma forte possibilidade de se apropriar de alguns traços do masculino (como a bota, o cavanhaque) e do valor do trabalho, presentes na cultura, e podendo se situar a partir deles - algo que ele apresentou desde o primeiro encontro, quando, na sacada, relançava sua atençao para os trabalhadores que estavam fazendo obras no seu prédio.

Tais traços, que ele captura do outro e toma para si, permitem-lhe ocupar lugares a partir nao de uma licença/permissividade que lhe seja dada em funçao de suas diferenças cognitivas ou de desenvolvimento em relaçao aos demais, mas que ele possa encontrar uma via de pertença ao laço social, isto é, a algo ao qual, do campo social, ele pode se conectar. Nessas experiências, ele vai construindo um protagonismo e uma extensao das fronteiras de sua circulaçao.

Para a construçao desse protagonismo, é importante que a família possa reconhecer os traços aos quais o sujeito se enlaça, autorizando a autonomia nas suas escolhas. No caso em questao, no entanto, a mae queixava-se da escolha do filho, justificando sua opiniao em funçao do "risco" que seria o filho entrar em contato com os produtos de limpeza - ironicamente, dado que o risco maior, nesse caso, seria o de interditar o seu investimento.

E a continuidade dessa atividade só foi possível a partir da insistência de Fabrício e porque, na ausência de sustentaçao por parte da mae, ele pôde encontrar outros pontos de ancoragem, no laço social, que reconhecessem suas escolhas.


CONCLUSAO

A escolha pelas funçoes do acompanhamento terapêutico destacadas neste artigo se deu com o propósito nao de dar conta do tema ou esgotá-lo em uma suposta totalidade, mas sim como um recorte das especificidades dessa prática que, a nosso ver, mais contribuem para favorecer que esses sujeitos possam encontrar traços em nossa cultura que favoreçam sua pertença ao laço social.

Há outras funçoes importantes, com certeza, mas no recorte deste trabalho a intençao era a de costurar pontos que parecem essenciais para a inclusao de sujeitos que vivem, em nossa cultura, sob a pressao de duas posiçoes extremas: em um polo, a intolerância às diferenças e, no outro, as tentativas de produzir uma inserçao a qualquer preço. Tais posiçoes sao opostas, mas nem por isso completamente diferentes. Afinal, à medida que nao houver uma escuta da singularidade dos sujeitos nessas propostas, corre-se o risco de se provocar um adoecimento ainda maior.

E, no tocante à apresentaçao do caso clínico abordado, a expectativa é a de que a sua leitura incentive outros pesquisadores/clínicos a se aventurarem nesta caminhada.


REFERENCIAS

1. Cabral KV. Acompanhamento terapêutico como dispositivo da reforma psiquiátrica: consideraçoes sobre o setting [dissertaçao]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2005. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7429/000544246.pdf?sequence=1>. Acesso em: 17 nov. 2010.

2. Palombini AL. Apresentaçao. In: Palombini AL (org.). Acompanhamento terapêutico na rede pública - a clínica em movimento. Porto Alegre: Editora da UFRGS; 2004. p. 17-19.

3. Palombini AL, Jover ER, Richter EP, Benevides LG, Raymundo MB, Machado PS, et al. A psicose no espaço e tempo da cidade: suportes teóricos. In: Palombini AL (org.). Acompanhamento terapêutico na rede pública - a clínica em movimento. Porto Alegre: Editora da UFRGS; 2004. p. 27-41.

4. CID-10. Classificaçao Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10a ed. Rev. Sao Paulo: Universidade de Sao Paulo; 1997.

5. Lacan J. O estádio do espelho como formador da funçao do eu (1966). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1998. p. 96-103.

6. Cabas AG. Curso e discurso na obra de Jacques Lacan. Sao Paulo: Moraes; 1982.

7. Freud S. Psicologia de grupo e a análise do eu. In: Obras psicológicas completas, vol. XVIII, s/d. p. 87-179.

8. Jerusalinky A. Psicanálise e desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar. Porto Alegre: Artes Médicas; 1989.

9. Pinho GS. O brincar na clínica interdisciplinar com crianças. In: Escritos da criança, Centro Lydia Coriat. 2001;6:179-192.

10. Jerusalinsky J. O acompanhamento terapêutico e a construçao de um protagonismo. In: Escritos da Criança, Centro Lydia Coriat. 2001b;6:163-178.










Psicanalista. Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Participante da Associaçao Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política (LAPPAP - UFRGS)

Correspondência
Ana Paula Carvalho da Costa
Rua Mostardeiro, 333, conj. 812
90430-001 Porto Alegre/RS
anapaulacdc@gmail.com

Submetido em: 11/01/2014
Solicitaçao de reformulaçoes em: 05/03/2014
Retorno da autora em: 20/03/2014
Aceito em: 14/04/2014

 

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