Rev. bras. psicoter. 2014; 16(1):3-14
Lobo BOM, Brunnet AE, Schaefer LS, Arteche AX, Kristensen CH. Terapia Cognitivo-Comportamental focada no trauma para crianças e adolescentes vítimas de eventos traumáticos. Rev. bras. psicoter. 2014;16(1):3-14
Artigos Originais
Terapia Cognitivo-Comportamental focada no trauma para crianças e adolescentes vítimas de eventos traumáticos
Cognitive-Behavioral Therapy focused on trauma for children and adolescents victims of traumatic events
Beatriz Oliveira Meneguelo Loboa; Alice Einloft Brunnetb; Luiziana Souto Schaeferc; Adriane Xavier Arteched; Christian Haag Kristensene
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Eventos estressores traumáticos vivenciados durante a infância e a adolescência podem acarretar sérios prejuízos para as vítimas, com grande impacto na qualidade de vida, no convívio social e familiar1. A experiência de tais situaçoes já nos primeiros anos de vida é bastante comum e, frequentemente, diz respeito a experiências adversas persistentes ou recorrentes e tipicamente de natureza interpessoal2. Dados epidemiológicos em populaçao norte-americana sugerem que aproximadamente 50% das crianças e dos adolescentes passarao por um evento traumático durante essa etapa da vida3,4. No Brasil, há uma escassez quanto a estudos de prevalência de exposiçao a eventos traumáticos, e, geralmente, as pesquisas investigam os índices de violência5. Por exemplo, em estudo de prevalência realizado com 480 crianças brasileiras, estimou-se que 20% sofreram violência física por parte dos cuidadores e 18,8% presenciaram violência doméstica6.
Eventos traumáticos múltiplos e/ou recorrentes, como, por exemplo, exposiçao crônica a situaçoes de violência doméstica ou abuso sexual, sao diferenciados na literatura daqueles traumas únicos, como acidentes automobilísticos, principalmente no que se refere à sintomatologia desenvolvida. Sugere-se que a exposiçao crônica a um estressor pode causar uma sintomatologia mais complexa, incluindo estados dissociativos, desregulaçao emocional, estratégias de coping desadaptativas, enquanto que a exposiçao a eventos únicos está relacionada a sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e a sintomas relacionados ao trauma7,8.
O TEPT é o transtorno mais estudado após a exposiçao traumática em crianças e adolescentes9,8. Segundo a quinta ediçao do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais10 (DMS-5), o transtorno é caracterizado por (1) exposiçao a um evento traumático, (2) presença de sintomas intrusivos (pesadelos, flashbacks, etc.), (3) evitaçao de estímulos associados ao trauma, (4) alteraçoes negativas no humor e nas cogniçoes associadas ao evento, e (5) aumento na reatividade fisiológica (como hipervigilância, resposta de sobressalto exagerada, problemas de sono, etc.)10. Considerando que pesquisas evidenciaram que os critérios diagnósticos utilizados anteriormente pelo DSM-IV-TR eram excessivamente rigorosos para crianças11, foram realizadas modificaçoes no DSM-V com o objetivo de considerar especificidades desenvolvimentais na apresentaçao do quadro, como a inclusao de uma categoria diagnóstica específica para crianças pré-escolares10. No entanto, pesquisas ainda sao necessárias para a verificaçao da adequaçao da nova estrutura diagnóstica do TEPT em crianças e adolescentes.
A dificuldade do diagnóstico do TEPT na infância foi refletida em estudos epidemiológicos, os quais apresentam resultados variados. Um estudo norte-americano (n=1.420) estimou a prevalência de TEPT em crianças e adolescentes em 0,5% e de sintomas pós-traumáticos em 2,2% ao longo da vida12. Uma pesquisa feita no Rio de Janeiro, Brasil, com uma amostra de crianças com idades semelhantes, no entanto, estimou a prevalência de sintomas pós-traumáticos em 6,5%13. Outros estudos com populaçao geral apresentaram taxas de diagnóstico de TEPT que variaram entre 0,4% e 9%14,15. Os estudos epidemiológicos sugerem, de forma geral, que uma parcela significativa de indivíduos que foram expostos a eventos traumáticos nao desenvolve TEPT9.
Nesse sentido, os fatores associados ao desenvolvimento do TEPT em crianças e adolescentes podem ser compreendidos a partir de um somatório de fatores individuais e ambientais, que podem ser categorizados em fatores que ocorrem antes, durante e após o trauma16,17. Entre os fatores de risco que apresentaram tamanho de efeito moderado a alto em recente estudo de metanálise9, encontram-se (1) fatores pré-traumáticos: histórico de traumas prévios, baixo QI, problemas psicológicos individuais e parentais; (2) fatores peritraumáticos: severidade do trauma e percepçao de ameaça à vida; e (3) fatores pós-traumáticos: baixo suporte social, funcionamento familiar disfuncional e isolacionismo. Além disso, alguns fatores do processamento cognitivo, como a supressao de pensamentos intrusivos, podem levar ao desenvolvimento da psicopatologia9.
Apesar de o TEPT ser o transtorno mental mais relacionado à vivência de situaçoes traumáticas, crianças e adolescentes vítimas de traumas podem desenvolver outros quadros psicopatológicos e uma ampla variabilidade de sintomas18. Entre eles, encontram-se sintomas de ansiedade e depressao, comportamento suicida, problemas externalizantes, comportamento sexual inadequado para a faixa de desenvolvimento, entre outros7,19,20. Os sintomas de ansiedade podem ser manifestados através de comportamentos regressivos, de baixo rendimento escolar, medo de estímulos associados ao trauma21. Os comportamentos sexuais inadequados sao comuns em crianças vítimas de abuso sexual e podem envolver masturbaçao frequente, brincadeiras sexuais persistentes, entre outros22,23. Crianças e adolescentes expostos a situaçoes traumáticas podem apresentar também ideaçao suicida. Wherry et al.20 encontraram uma prevalência de 45,3% de comportamento suicida em uma amostra de crianças que foram sexualmente abusadas. Tendo em vista o impacto que a vivência de situaçoes traumáticas pode acarretar na saúde e na qualidade de vida das vítimas, além das implicaçoes legais e socioeconômicas envolvidas, esforços têm sido realizados no desenvolvimento e aprimoramento de estratégias de prevençao, avaliaçao, intervençao e tratamento nesses casos.
O tratamento psicoterápico de crianças e adolescentes vítimas de eventos traumáticos deve abarcar a ampla gama de sintomas associados. Uma revisao sistemática realizada pela Cochrane Collaboration, organizaçao que visa fornecer dados de evidência para diversos tratamentos na área da saúde, investigou a eficácia das psicoterapias para crianças e adolescentes com TEPT25. Os tratamentos investigados foram a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), a terapia de exposiçao, a psicoterapia de orientaçao psicodinâmica, a terapia narrativa, o aconselhamento e o Eye Movement Desensitization and Reprocessing (EMDR). Os resultados do estudo demonstraram que existem evidências de reduçao dos sintomas de TEPT, depressao e ansiedade em todos os tratamentos psicológicos investigados; no entanto, a TCC foi o único tratamento psicoterápico que demonstrou efetividade quando comparada a grupos controles, com resultados mantidos após um mês de follow up25. Nesse sentido, o presente estudo tem como principal objetivo fornecer uma visao atual acerca da TCC para crianças e adolescentes expostos a situaçoes traumáticas, destacando a Terapia Cognitivo-Comportamental Focada no Trauma (TCC-FT), a qual tem recebido grande destaque no tratamento desses casos. Inicialmente, sao abordados aspectos relativos à avaliaçao de crianças vítimas de situaçoes traumáticas.
AVALIAÇAO
Considerando a complexa sintomatologia apresentada por crianças e adolescentes expostos a situaçoes traumáticas, a avaliaçao psicológica completa e detalhada é crucial a fim de estruturar intervençoes psicoterápicas adequadas para cada indivíduo26. Em primeiro lugar, o clínico deve assegurarse de que a criança nao está sendo exposta a situaçoes traumáticas; em caso positivo, deve acionar sistemas de saúde, segurança pública ou justiça a fim de proteger a criança ou o adolescente em avaliaçao27. Além disso, situaçoes como o uso de substâncias e ideaçao suicida devem ser investigadas e, quando necessário, devem ser realizadas intervençoes imediatas28.
Cohen, Mannarino e Deblinger28 sugerem que a avaliaçao de crianças e adolescentes deve incluir os seguintes domínios: processamento cognitivo, relacionamentos interpessoais, regulaçao emocional, funcionamento familiar, sintomas relacionados ao trauma e sintomas somáticos. Para isso, o avaliador deve coletar dados com diversas fontes de informaçao, como responsáveis, professores e outros profissionais da saúde29. O avaliador pode fazer uso de escalas, entrevistas estruturadas e outras ferramentas de avaliaçao psicológica, desde que os dados sejam interpretados dentro de cada contexto e nao substituam a entrevista com a criança e as outras fontes de informaçao30.
Alguns instrumentos para a avaliaçao da sintomatologia pós-traumática em crianças e adolescentes estao disponíveis em língua portuguesa. A entrevista estruturada Kiddie Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School-Age Children - Present and Lifetime Version (K-SADS-PL31; versao brasileira por Brasil, 200332) e o Inventário de Comportamentos da Infância e Adolescência, respondido pelos responsáveis ou pelas crianças e pelos adolescentes (Child Behavior Checklist - CBCL33; versao brasileira por Bordin, Mari, & Caeiro, 199534), podem ser utilizados para a investigaçao dos sintomas de TEPT e outros transtornos. No entanto, há uma escassez de instrumentos que abarquem a amplitude da sintomatologia relacionada ao trauma na infância e adolescência35, estando disponíveis apenas escalas que podem ser utilizadas para a investigaçao de sintomas associados, como escalas para sintomas depressivos (Children's Depression Inventory36; versao brasileira por Gouveia, Barbosa, Almeida, & Gaiao, 199537) e ansiosos (Spence's Children Anxiety Scale38; versao em português por DeSousa, Petersen, Behs, Manfro, & Koller, 201239).
TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL FOCADA NO TRAUMA
A literatura aponta que o tratamento psicológico focado no trauma é considerado o tratamento de primeira linha para crianças e adolescentes vítimas de eventos traumáticos, com sólidas evidências de eficácia40,41. Diretrizes para o tratamento psicoterápico para crianças e adolescentes vítimas de eventos traumáticos apontam para a necessidade de (1) considerar a severidade e o grau de prejuízo referente aos sintomas pós-traumáticos; (2) integrar intervençoes para comorbidades no tratamento psicoterápico, quando necessário; (3) incluir pais ou cuidadores no tratamento; e (4) considerar prejuízo funcional como marcador de resultados terapêuticos, assim como a reduçao dos sintomas18,41,42.
Estudos de metanálise recentes demonstram a eficácia da TCC e da TCC-FT40,43,44,25 para crianças e adolescentes expostos a situaçoes traumáticas, com reduçao significativa em sintomas de TEPT, depressao e comportamentos internalizantes. Estudos com TCC-FT têm demonstrado que os ganhos terapêuticos para crianças e pais/cuidadores se mantêm em follow-ups de 1 e 2 anos45,46. Existem evidências de eficácia para a TCC-FT para crianças vítimas de variados tipos de trauma, como violência urbana, terrorismo, violência interpessoal, luto traumático, entre outros41.
A TCC-FT foi inicialmente desenvolvida para crianças vítimas de abuso sexual, mas tem sido adaptada para vítimas de diversos tipos de traumas, como violência doméstica, violência urbana, terrorismo, luto traumático, desastres naturais, entre outros46. É uma modalidade de tratamento focal, flexível e de curto prazo, com cerca de 12 a 16 sessoes com duraçao de 90 minutos cada47. A característica central da TCCFT é a inclusao e participaçao ativa dos pais/cuidadores durante todo o tratamento, quando possível. As crianças e os cuidadores geralmente participam em sessoes separadas paralelas durante os componentes iniciais, seguidas de sessoes conjuntas para reforçar conceitos, fortalecer a comunicaçao positiva, construir um senso de confiança mútua e coesao e praticar as habilidades aprendidas nas sessoes individuais. A TCC-FT é direcionada para crianças e adolescentes com idades entre 3 e 17 anos que apresentem sintomas relacionados ao trauma, como sintomas de TEPT, depressao e problemas comportamentais28. A TCC-FT é baseada em componentes que incorporam intervençoes direcionadas ao trauma através de princípios cognitivo-comportamentais, familiares e humanistas. Esses componentes sao focados no fortalecimento de estratégias de coping, desenvolvimento de narrativas do trauma, estratégias de regulaçao emocional e processamento cognitivo das experiências traumáticas28 (ver Figura 1).
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