Rev. bras. psicoter. 2013; 15(3):5-17
Dockhorn CNBF, Macedo MMK, Ribas RF. As lógicas da toxicomania e a condiçao do sujeito. Rev. bras. psicoter. 2013;15(3):5-17
Artigos Originais
As lógicas da toxicomania e a condiçao do sujeito
The logics of substance abuse and the condition of the subject
Carolina Neumann de Barros Falcao Dockhorna; Mônica Medeiros Kother Macedob; Renata Freitas Ribasc
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Sabe-se que o uso de drogas é uma prática que esteve presente em toda a história da humanidade. Nao existem evidências de nenhuma sociedade humana na qual nao fosse utilizado algum tipo de substância psicoativa1. Contudo, o abuso de drogas é um marco social dos tempos atuais, crescente na sociedade contemporânea e que torna alarmantes os indicadores de produçao e consumo de substâncias psicoativas. O Relatório Mundial sobre Drogas 2012, elaborado pelo Escritório das Naçoes Unidas sobre Drogas e Crime, indica que pelo menos 230 milhoes de pessoas (o equivalente a 5% da populaçao mundial) usou pelo menos uma vez alguma droga ilícita em 20102. Em contrapartida, drogas lícitas - como o álcool, por exemplo - tendem a ser ainda mais utilizadas.
O Relatório das Naçoes Unidas coloca em evidência, também, os múltiplos impactos que as drogas provocam. Nao apenas sao preocupantes os efeitos do uso, abuso e dependência dos indivíduos consumidores e de seus familiares, mas igualmente os diversos efeitos sociais e econômicos resultantes, tal como o incremento dos índices de violência e corrupçao2.
Do ponto de vista da Psicanálise, o uso problemático de drogas demanda um olhar para o sujeito implicado nesse padecimento. Visando justificar a importante contribuiçao da Psicanálise em sua inserçao no campo do uso abusivo de drogas, Torossian3 ressalta a necessidade de outra compreensao que nao aquela a partir da qual o tratamento psicoterapêutico tem como objetivo o rápido alcance do estado de abstinência e sua manutençao. Para a autora, o risco de tal objetivo reside na ênfase dada à substânciadroga, desconsiderando totalmente o sujeito dessa relaçao. Por isso, segundo Torissian3, a Psicanálise nao trabalha com a dependência química, mas, sim, com o sujeito que sofre pela condiçao decorrente de uma formaçao sintomática crônica que evidencia a posiçao do sujeito em uma relaçao de exclusividade com a droga.
Nao há consenso entre os autores da Psicanálise acerca do termo utilizado para referir o investimento sistemático no objeto droga. Alguns optam por destacar o estado de adiçao, isto é, de escravidao ao objeto, enquanto outros defendem a utilizaçao do termo "toxicomania", que se refere a uma modalidade de ligaçao tóxica com o objeto droga4.
É preciso, pois, considerar o sujeito da drogadiçao ou da toxicomania em sua dimensao de singularidade. Com o objetivo de sustentar a compreensao da dependência química como expressao de um funcionamento psíquico no qual a droga se tornou objeto de necessidade (e nao de desejo), opta-se, neste artigo, pelo uso da expressao "toxicomania". Partindo das proposiçoes teóricas de Rassial5, toma-se a toxicomania como a relaçao intensa e exclusiva do sujeito com o objeto droga, sem qualquer espaço para adiamentos ou substituiçoes.
Na coerência da prioridade dada à singularidade da condiçao toxicômana, busca-se problematizar, a partir de duas narrativas clínicas, diferentes lógicas que podem reger o encontro do sujeito com o objeto droga. É fundamental ressaltar que nem todo o encontro com a droga será uma toxicomania; conforme Le Poulichet6, existem lógicas distintas que permeiam a relaçao do sujeito com o objeto droga.
A LEITURA PSICANALITICA DA TOXICOMANIA
O tema da droga se faz presente desde os primórdios da Psicanálise. No início, porém, relacionavase ao uso particular de Freud e ao seu interesse de provar ser a cocaína uma substância benéfica quando utilizada para fins terapêuticos. Sabe-se que Freud buscou no estudo sobre a cocaína uma descoberta revolucionária capaz de propulsionar ao auge sua carreira médica7. No decorrer de suas experiências, Freud constatou outros aspectos que acompanham o uso de substâncias tóxicas, tais como os da dependência gerada e de seus efeitos nocivos ao sujeito, e essas constataçoes o levaram a desistir do uso da droga com fins terapêuticos.
Anos depois, ao ocupar-se do mal-estar que aflige o sujeito e das possibilidades de enfrentamento diante de aspectos penosos da vida, Freud8 referiu-se ao recurso às substâncias tóxicas, situando-o como um recurso paliativo frente ao sofrimento. Nesse texto, enfatiza que, por meio dessa condiçao, o sujeito buscaria uma forma de intoxicar-se visando à obtençao imediata de prazer e igualmente a uma independência em relaçao ao mundo externo. Ao nomear esses recursos como uma espécie de "amortecedor de preocupaçoes"8 (p. 97), o autor assinalou que neles residia tanto o perigo como a capacidade de causar danos. A expressao desses riscos se dá, segundo o pensamento freudiano, no "desperdício de uma grande cota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano"8 (p. 97).
Na leitura contemporânea da toxicomania proposta por Birman9, ela é vista como uma expressao frequente do mal-estar na atualidade. Para o autor, sao dois os segmentos da populaçao relacionados com o consumo de drogas: de um lado, os usuários regulares ou irregulares e, de outro lado, os toxicômanos. Assim, a toxicomania está associada à dependência física e psíquica em relaçao à droga, trazendo como traço característico a compulsao propriamente dita. Além disso, as toxicomanias nao estao exclusivamente relacionadas ao consumo de drogas ilegais, sendo também consideradas como objeto, na toxicomania, as drogas legitimadas pela ciência médica.
Cabe destacar importante ponto de contato entre o descrito por Freud8 quanto ao mal-estar produzido pela modernidade e o que se constata imperar no mal-estar contemporâneo. Se, na década de 1930, as restriçoes à sexualidade impediam o sujeito de desfrutar do prazer e o jogavam no circuito dos impedimentos neuróticos, por exemplo; atualmente, a prática e a busca do hedonismo rompem o reconhecimento necessário dos limites do Eu e danificam investimentos do campo da alteridade. No excesso das demandas de performance e no esforço para a manutençao ilusória de um estado permanente de completude e de ausência de tensao, o sujeito contemporâneo apela compulsivamente ao objeto que promete a manutençao da nao implicaçao com os afetos desprazerosos, forçosamente mantidos à distância.
Como ressalta Birman9, vive-se numa cultura das drogas, na qual a intoxicaçao é uma resposta ao mal-estar da contemporaneidade. O sujeito, descrente de seu papel transformador e nao atuante como agente de mudança, "busca pelo hedonismo e pela sensorialidade prazerosa produzir algum gozo diante de tanta dor"9 (p. 90).
Considera-se a Psicanálise uma ferramenta hábil e necessária no cenário atual, no qual é urgente o fomento da problematizaçao concernente às diferentes lógicas que se fazem presentes no heterogêneo fenômeno da toxicomania. Uma autora que fornece uma importante contribuiçao a essa temática é a psicanalista francesa Sylvie Le Poulichet6: ela propoe uma diferenciaçao entre as lógicas que sustentam o encontro do sujeito com as drogas.
A autora se utiliza das proposiçoes de Derrida10 em "A Farmácia de Platao" acerca do phármakon, substância que é veneno e remédio simultaneamente e que, paradoxalmente, age como droga maléfica ou como droga benéfica, oferecendo-se como um filtro de esquecimento e de possibilidade de salvaçao pelo acesso ao conhecimento11. Ao tomar o phármakon de Derrida como uma metáfora, Le Poulichet6 propoe e explora as nuances de uma operaçao psíquica - a qual denominou "operaçao de phármakon" - que atua ao revés do narcisismo positivo ou trófico. Assim, essa operaçao de phármakon refere-se à tentativa por parte do sujeito de criar um "aparelho psíquico autônomo, que confunde todo o processo de castraçao"6 (p. 105).
Segundo Conte1, o valor da teorizaçao sobre a operaçao de phármakon reside em três aspectos. Primeiramente, permite analisar o uso de drogas da perspectiva de veneno e de remédio. Em segundo lugar, nao utiliza parâmetros biológicos para a análise da drogadiçao; ao contrário, considera a extensao e o objetivo do uso de drogas na vida psíquica do sujeito. Por fim, destaca a autora que a operaçao de phármakon denuncia a transformaçao da substância droga em tóxico, "que cria um campo psíquico alterado, onde os aspectos singulares tornam-se difíceis de serem identificados, pois ficam subsumidos"1 (p. 56). Isso nao significa, porém, que a toxicomania deva ser reduzida à consideraçao da dificuldade de controle do impulso; afinal, os aspectos singulares seguem presentes, mesmo que difíceis de serem identificados.
Percebe-se, entao, que Le Poulichet6 se ocupa do tóxico. Alinhada, justamente, com a proposiçao de Derrida de que o phármakon nao é a simples substância, Le Poulichet6 considera que a toxicomania está para além da(s) substância(s) química(s) utilizada(s) e de sua frequência de uso. Pode-se, assim, referendar a afirmativa da autora de que o tóxico é, sim, a tentativa de estabelecer uma relaçao de exclusividade com a droga12; daí ser fundamental considerar a funçao da substância na vida psíquica do sujeito1. Impoe-se, entao, a necessidade de buscar os elementos próprios a uma montagem psíquica que aprisiona o sujeito em sua "dependência", uma dependência que extrapola a materialidade da droga e desafia ao evidenciar um mais-além cujo sentido nao está dado a priori.
Logo, a operaçao de phármakon é, para Le Poulichet6, uma operaçao de defesa que conserva e protege uma forma de narcisismo. Nela, estabelecem-se as condiçoes necessárias para a satisfaçao dos sujeitos na medida em que produz um cancelamento tóxico da dor ao dar continuidade e reversibilidade aos opostos remédio e veneno13. Como bem ressalta Conte1, as toxicomanias dizem respeito a formaçoes narcisistas, pois nelas se opera uma retirada dos investimentos do mundo, os quais retornam para o Eu, passando o psiquismo a ser considerado um órgao fantasma tratado pelo produto químico. A operaçao de phármakon destaca, também, o quanto, "quando a dor aparece, o toxicômano fica impedido de outros investimentos no mundo, inclusive da possibilidade de amar"1 (p. 59).
A partir de sua concepçao acerca da operaçao de phármakon e considerando a heterogeneidade presente nas toxicomanias, Le Poulichet6 propoe pensar em duas modalidades de toxicomanias, dois lugares distintos que o tóxico pode ocupar na vida psíquica do sujeito. Tais lógicas podem ser as de Suplência ou de Suplemento, posiçoes que nao sao estanques ou imutáveis. De fato, Conte1 ressalta que as lógicas nao sao estanques, "já que nas toxicomanias de suplência pode intervir uma dimensao de suplemento e vice-versa" (p. 62).
A lógica do consumo denominada Suplemento recebe esse nome porque diz respeito à tentativa de suprir uma falta. Como lembra Conte1, "suplemento" é aquilo que é acrescido para preencher as lacunas existentes, sendo um complemento a algo que deixa um espaço de falta, que nao supre totalmente. Por isso, as toxicomanias de Suplemento estao relacionadas à constituiçao de próteses narcísicas que têm a funçao de dar sustentaçao ao si mesmo. Tais formaçoes estao a serviço de suprir a falta, auxiliando o sujeito no enfrentamento das dissonâncias entre o que é real e o que é ideal frente a sua imagem narcísica14. Assim, pode-se considerar essa lógica como uma maneira de nao se submeter à castraçao, preservando uma posiçao fálica e sustentando uma imagem de perfeiçao na qual real e ideal se aproximam1.
Para Torossian12, nessa lógica de Suplemento, a utilizaçao da droga é provocada pela dificuldade de significaçao de outras questoes da vida e, logo, essa utilizaçao está inserida em uma cadeia metafórica. Nessa perspectiva, segundo a autora, na lógica do Suplemento,
"o sintoma se organiza como uma demanda que solicita o olhar de um outro. O tóxico tem aqui a funçao de cativar o olhar do(s) outros(s), num processo de significaçao dos acontecimentos de vida"13 (p. 126).
É justamente por considerar a noçao de Suplemento como aquilo que é um acréscimo que Torossian13 pontua o quanto, nesta lógica toxicômana, o sujeito se oferece para ser lido e significado pelo Outro. Para a autora, o tóxico, aqui, pode assemelhar-se ao carretel do fort-da, utilizado como recurso para o enfrentamento da ausência do Outro. Na associaçao do tóxico com o carretel deve-se resguardar, porém, a diferença existente entre uma situaçao própria ao momento infantil de constituiçao da noçao do Eu e do nao-Eu e aquela que já denuncia a impossibilidade de o Eu fazer tramitar a angústia que o assola diante da castraçao. Ainda, no jogo entram em cena recursos da criatividade do Eu, sendo que, no uso do tóxico, a dor gerada precisa ser anestesiada.
Nessa lógica, a consequência é um estado de suspensao do desejo a partir do anestesiamento. Como destaca Conte1, "o indizível serve para que nao haja palavras e assim o sofrimento é anestesiado. O toxicômano buscaria um plus fálico, um objeto plus para evitar o sofrimento do qual padece" (p. 70). Afinal, é fundamental que ele compreenda que sofrer é equivalente a ser castrado, a deparar-se de alguma forma com a castraçao.
Ainda que nao possam ser estabelecidas ligaçoes rígidas entre as lógicas das toxicomanias e as estruturaçoes psíquicas, Conte1 argumenta que, na lógica do Suplemento, é comum encontrar-se as neuroses - e, nesse caso, a problemática é basicamente fálica - e as perversoes. Quando a lógica do Suplemento serve a essa última estruturaçao psíquica, afirma a autora, a problemática do tóxico diz respeito ao exercício de um saber que afirma e desmente a Lei. Ressalta Le Poulichet6, ainda, que, quando as toxicomanias têm como base a perversao, o phármakon nao está no lugar do objeto fetiche, mas, sim, na funçao de "agente de controle e de conservaçao de um falo imaginário"1 (p. 71). Assim, a droga acaba por desempenhar a funçao de sustentar o Outro como se nao castrado fosse.
Já quando se trata do consumo regido pela lógica da Suplência, o sujeito encontra-se excluído de uma cadeia simbólica, e o ato de consumir o tóxico é descrito pela autora como uma paradoxal tentativa de autoconservaçao. Conte1 avalia que "suplência" refere-se a "suplente", isto é, àquilo que supre a falta de outro, substituindo-o, tomando seu lugar em relaçao a seus direitos e deveres.
Nas toxicomanias de Suplência, opera-se uma suplência narcísica radical, o que, conforme Conte14 denuncia o desfalecimento do Outro em sua funçao de terceiro. Assim, enquanto a droga opera como sustentáculo narcísico para o sujeito consumidor, a subjetividade deste último desaparece diante do objeto droga, o qual passa a ocupar um lugar totalizante. Nessa montagem dessubjetivante nao se trata de recorrer à prótese: está em risco, radicalmente, a condiçao de existir do sujeito além do cenário do corpo real.
De fato, a inexistência da castraçao simbólica, organizadora do psiquismo, produz a ameaça de invasao por parte do Outro nao castrado, que colocaria o sujeito numa condiçao de entrega total ao gozo desse Outro. Frente à ausência de recursos simbólicos de enfrentamento, resta ao sujeito à construçao de um "corpo-máquina" que o proteja.
Logo, destaca Conte1 que, se a palavra nao é instrumento, se o corpo nao está representado, tem-se na toxicomania de Suplência a existência única do corpo real (isto é, nao simbólico). Ao ter a si mesmo como um corpo, resta ao sujeito tratá-lo da dor existente mediante o uso da droga. De qualquer forma, "colocar-se no lugar de quem trata um corpo, como faz o toxicômano, confirma a debilidade de outro que pudesse ser referência, cuidar e orientar"1 (p. 60). Todavia, ao tratar seu corpo real, o sujeito exila-se de seu desejo.
Neste cenário de Suplência, visualizam-se sujeitos que buscam, no encontro com o tóxico, um gozo na completude, ou seja, um atalho referente ao trajeto pulsional no sentido de exclusao do outro e de sua ida e vinda, aderindo a um único objeto que cumpre uma funçao vital7. Por isso, a relaçao passa a ser dual e exclusiva. Para esse sujeito, nao há possibilidade de mediaçao entre ele e a droga, uma vez que se instalou um circuito mortífero sustentado no registro de nao deixar faltar ao corpo a homeostase proporcionada pelo objeto droga. Rassial5, em suas consideraçoes sobre a toxicomania, também descreve essa relaçao mortífera ao referir que essa experiência tóxica se caracteriza muito rapidamente por renúncias: "por um lado, a toda atividade em geral, em prol desse gozo outro que nao sexual; por outro lado, a toda procura de um saber regido pelo significante" (p. 120).
A consideraçao acerca do circuito mortífero estabelecido entre o sujeito e o objeto droga nao deve ser confundido, contudo, com a utilizaçao da droga em uma escolha por morrer. Ao contrário. Destaca Le Poulichet6 que a operaçao de phármakon se refere, nas toxicomanias de Suplência, à transformaçao do corpo em máquina em uma tentativa de controlar o gozo do Outro e, assim, manter-se vivo. Por isso, a estratégia defensiva deve ser considerada como tentativa de manutençao - a um altíssimo custo - de um narcisismo.
Percebe-se, entao, que, se, na lógica do Suplemento, o sujeito está demandando proteçao; na lógica de Suplência o sujeito está à mercê da invasao do Outro. No primeiro caso, o corpo é tomado como objeto que acalma e limita o gozo do Outro; e, no segundo, precisa ser transformado em máquina para sobreviver.
Seja na lógica do Suplemento, seja na lógica da Suplência, é inegável o curto-circuito estabelecido entre as demandas ao psíquico e as condiçoes do sujeito de administrar os efeitos sobre o si mesmo. Exatamente por essa consideraçao, passa a ser primordial, no campo da toxicomania, acessar a singular condiçao do sujeito nesse padecimento.
OS SINGULARES ENCONTROS COM O OBJETO DROGA
A partir das narrativas de dois jovens toxicômanos, é possível problematizar as especificidades dos posicionamentos subjetivos em relaçao à droga. Por razoes éticas, é fundamental destacar que todos os dados que poderiam conduzir à identificaçao desses sujeitos foram omitidos e/ou deformados. Além disso, eles assinaram Termos de Consentimento Livre e Esclarecido nos quais autorizam a publicaçao de suas histórias e narrativas.
Maria é uma jovem de 20 anos que é escutada por um intenso uso de maconha e cocaína. A diferença do que se verifica com outros usuários de drogas, sua fala nao é guiada pelas peripécias das situaçoes de uso, mas por uma conflitiva que converge com a realidade do vício: uma confusao relativa ao desejo do outro primordial. Ela é a primeira dos sete filhos de sua mae e a única que fora abandonada ao nascer. Passou, entao, a ser cuidada pela avó e, quando contava com sete anos, retomou o convívio com a mae, o qual desde entao tem estado marcado por intensas desavenças e brigas.
Sobre o desejo da mae, Maria explicita: "ela falou que nao me amava, que nao queria me cuidar e que nao queria ter me ganhado. Eu acho que ela poderia ao menos ter me visto e nao ter voltado só depois de sete anos". As palavras seguintes de Maria apontam a montagem do si mesmo que ela pôde construir frente ao traumático: "eu sou a ovelha negra da família".
Maria sustenta nessa conflitiva sua construçao subjetiva. Precisa encontrar recursos para enfrentar o abandono da mae, sua fala que afirma o nao desejo pela filha, mas, também, por outro lado, seu retorno, a retomada de um laço que nao se perdeu pra sempre, porque, mesmo com o abandono, Maria permaneceu na família (e por isso pode ser a ovelha negra, o que evidencia um lugar). Qual será a versao na qual pode se apoiar e se construir como sujeito?
Sente-se abandonada, e o uso de drogas surge como um endereçamento ao outro, pois a mae também é usuária de cocaína. "A gente estava se drogando junto e daí, claro, para mim foi uma forma que eu tinha de atençao dela. No fundo eu sei que eu odeio ela em algumas coisas, mas claro que eu sei que faz falta, sou filha dela, eu nasci dela".
Percebe-se a ambivalência em relaçao ao seu lugar diante do desejo materno: se esforça para ser amada pela mae, mas, quando se sente fracassada nesse objetivo, odeia a mae e a agride. Consumir o tóxico é tentar proteger seu Eu da angústia diante do desamparo. As fraturas narcísicas decorrentes de uma ligaçao primordial tao instável e fragmentária precisam ser remediadas pela droga, além de ser ela - a droga - um vínculo e um eixo identificatório com a mae.
Pode-se pensar, assim, o quanto o consumo de drogas está dirigido, justamente, ao olhar da mae. Aquilo que Maria parece buscar diz respeito à significaçao do seu lugar no desejo da mae e, consequentemente, à busca por pontos de sustentaçao de seu próprio narcisismo. Será que Maria recorre à droga justamente por nao poder reconhecer e se apropriar de um lugar seu nessa trama familiar? É fundamental que ela possa fazer o questionamento de quem afinal é a ovelha negra da família, pois, caso siga reconhecendo-se como o motivo do abandono materno, nunca poderá ver o valor que tem. O conflito da mae fica recaído sobre ela e, assim, Maria fica sem alternativas para seu devir.
Maria conta de uma lógica toxicômana de Suplemento. Seu consumo a mantém inserida no laço social e é endereçado ao outro: constitui uma tentativa de ser alvo do desejo materno, de ser investida. Consome cocaína como uma proteçao narcísica, pois vê nesse consumo o recurso para ser desejada. Todavia, a cocaína nao configura seu objeto exclusivo de investimento; ao contrário, é mais um objeto que lhe permite adquirir competências consideradas ausentes em si mesma e tidas por ela como essenciais para poder conquistar o olhar da mae.
Conte1 entende que na clínica das toxicomanias de Suplemento é fundamental o trabalho de traduçao do uso compulsivo de substâncias tóxicas. Deve-se empreender uma leitura do consumo como algo da ordem do sintoma atual para que se possa transformá-lo em outro tipo de sintoma, no campo transferencial. É preciso, pois, operar uma troca de objeto: da substância para o analista. Para a autora, a direçao do tratamento nessas toxicomanias está fundamentada em um trabalho de luto do "tóxico", com o intuito de propiciar a construçao de representaçoes distintas do objeto para sempre perdido. Nessa perspectiva, a autora entende que "as bordas e as marcas que escrevem uma história singular estavam apenas encobertas, por isso, é preciso desnudá-las para que o paciente passe a reconhecê-las e a contá-las em sua historizaçao"1 (p. 58).
Joao é filho adotivo e afirma ter sempre tido tudo do bom e do melhor. De fato, chama a atençao por marcadamente acreditar que sempre teve tudo. É o filho mais velho de uma mae que, inicialmente (época da adoçao de Joao) foi diagnosticada como infértil e que encontrou na adoçao a forma de realizar seu desejo pela maternidade. Apesar de fisicamente ser impossível sustentar uma filiaçao biológica - Joao e a mae sao, inclusive, de raças diferentes -, ao menino nunca foi explicada a diferença; ao contrário, ela sempre foi desmentida.
Chegou, porém, o momento em que a mae adotiva de Joao engravidou de sua primeira filha biológica. Nessa época, Joao tinha 8 anos de idade. Quando da época do nascimento da irma, um tio bêbado contou a verdade ao menino. Finalmente, Joao passou a entender a "brincadeira" que era feita com ele: "Te encontraram na lata do lixo", diziam os primos.
Qual é o efeito de tantos anos preso ao desmentido? Considera-se o quanto a conduta da mae, de camuflar a realidade da história de origem de Joao, produziu a ele uma impossibilidade de falar sobre o assunto e um persistente mandato de alteraçao de suas percepçoes. Para além de ser um segredo, o silêncio diante de uma realidade facilmente observável gerou nele, por exemplo, uma incapacidade de aprendizagem que determinou que estudasse apenas até a sétima série.
Joao nunca ficou sequer chateado com a mae. O que ficou impossível de ser tramitado psiquicamente? E, também, o que denuncia essa ilusao de acreditar ter recebido tudo?
Antes de buscar tratamento, Joao foi usuário, traficante e morador de rua. Perdeu casa, relaçoes amorosas, família, trabalho, e todos seus investimentos se restringiram a um único objeto: a droga ("Eu já estava entregue para ela"). Nao será que nesse encontro totalizante com a droga Joao estava repetindo a ligaçao totalmente alienada que estabeleceu com a mae, operadora do desmentido?
Joao denuncia uma lógica distinta de encontro com a droga. Tem com ela uma ligaçao que passa a ser vital, tanto que paulatinamente vai desinvestindo outros objetos em prol de sua ligaçao com o tóxico. Na companhia do crack, seu Eu gozava de uma completude que o fazia considerar desnecessário outro investimento. Evidencia-se a aboliçao do objeto perdido, sua onipresença numa modalidade de relaçao que nao prevê mediaçoes. Na ilusória completude do seu vício, abdica do laço social, colocando-se à margem de leis que o incluam num código compartilhado. Perde-se de seu desejo, assim como de seus direitos de cidadao, por apresentar uma montagem que o obriga a representar no corpo a intensidade nao processada pela ordem simbólica.
Estar totalmente entregue à droga remete à entrega que Le Poulichet6 descreve do Eu à morte, que tenta se defender da dor insuportável, o que caracteriza a lógica da Suplência. Joao nao foi investido na alteridade; ao contrário, ficou capturado numa ligaçao que o impediu de reconhecer suas próprias percepçoes e significá-las: nao podia ver a diferença das cores de sua pele e da pele da mae e, consequentemente, também nao podia aprender nada na escola.
Conforme vai falando de suas vontades, passa a contar sonhos em que faz uso de crack. Após uma recaída, que durou uma semana, retornou ao tratamento e ainda segue tentando encontrar sentido para o uso da droga. Já consegue formular o que espera de seu processo de cura, deixando transparecer marcas do que seria o início da apropriaçao simbólica de sua formaçao sintomática expressa e representada pelo corpo: "ficar sem usar qualquer um fica, é só me trancar nove meses numa fazenda que eu nao tenho o que fazer. A questao nao é essa, porque quando me soltar, a primeira coisa que eu vou querer fazer é voltar a usar. Eu preciso é aprender o que mais eu posso fazer da minha vida além de usar droga, deve ter alguma coisa que eu possa fazer. Gastronomia eu gosto, mas também poderia ser motorista".
O caráter pueril de seus desejos - sonha com uma profissao como as crianças na terceira infância o fazem - denuncia o longo caminho que Joao ainda tem pela frente em seu espaço de escuta. Há algo, porém, que Joao ilustra em sua fala de forma ímpar: a retomada de seu corpo como um corpo erógeno e nao mais um corpo-máquina que só precisa da substância. Quando afirma que nao basta deixar de usar, mas, sim, que precisa saber o que fazer de sua vida, Joao abre espaço para a esfera do desejo. Seu corpo é seu instrumento para ser e estar no mundo e deve estar de acordo com o que deseja: pode cozinhar, pode dirigir, nao importa. O que importa mesmo é que a açao esteja em consonância com algo que queira e que tenha um sentido.
Conforme Conte14, o trabalho clínico com as toxicomanias de Suplência se dá a partir da constituiçao de um objeto de desejo que sustente a castraçao no plano simbólico e nao mais no real. Frente a um sujeito que nao possui identificaçao com "quase nada" - o que é apenas a outra face do tudo que Joao afirma ter tido -, faz-se necessário buscar uma ilusao viável, alguma evidência de desejo que marque o início de um trabalho clínico. De fato, percebe-se em Joao uma tentativa de mudança subjetiva quando começa a imaginar que pode se arriscar na instabilidade do mundo adulto, sem garantias do ter tudo. Esse movimento psíquico é efeito de ser escutado para além do objeto que consome e, portanto, inaugura espaços de falta e de construçao de projetos próprios. No processo de escuta, inaugura-se a condiçao de acessar as condiçoes de perceber e nao precisar recorrer ao desmentido. O acesso à palavra e à escuta pode inaugurar um circuito que autorize a Joao a existir e a aprender sobre si mesmo.
CONSIDERAÇOES FINAIS
Abordar a temática da toxicomania ao partir do olhar da Psicanálise significa lançar mao de ferramentas que priorizam o cuidado à condiçao de sujeito. Por meio da proposiçao de duas diferentes lógicas que podem reger o encontro do sujeito com o objeto droga, busca-se evidenciar a imperiosa necessidade de ir além de uma leitura que se limite a retratar esse fenômeno de forma homogênea, perdendo de vista, assim, os pontos de abertura à intervençao nesse campo de dor psíquica que residem exatamente nos diferentes relevos do terreno.
Ao restringir a leitura da toxicomania a uma condiçao de dependência química, reforça-se a importância do objeto em detrimento do sujeito que se lança nesse circuito também pela fragilidade e precariedade dos lugares ocupados em sua história. Joao e Maria apontam, desde lugares distintos, a necessidade premente do combate e da intervençao no mundo da adiçao às drogas. Destaca Torossian3 que, se o foco estiver na droga, a cura nao existe e o projeto terapêutico se restringirá somente à abstinência; todavia, se o foco estiver no sujeito que se droga, entao, torna-se premente escutar a singularidade desse sujeito. O melhor exemplo disso é a fala de Joao sobre nao bastar parar de usar; é preciso aprender a existir como sujeito psíquico.
As contribuiçoes de Le Poulichet6 quanto às lógicas da toxicomania fornecem ferramentas para que se possa problematizar a funçao do objeto tóxico eleito pelo sujeito. A consideraçao acerca da relaçao sujeito-objeto é, sem dúvida, um caminho fundamental para que se possam construir vias de escuta e intervençao que tenham mais êxito no enfrentamento da atual epidemia de drogadiçao. Certamente, essa é uma escuta que a Psicanálise pode e deve oferecer.
REFERENCIAS
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a. Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica. Doutora em Psicologia pelo Programa de Pósgraduaçao em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Supervisora do Serviço de Atendimento e Pesquisa em Psicologia da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Membro da Sigmund Freud Associaçao Psicanalítica. Porto Alegre/Rio Grande do Sul. Brasil
b. Psicóloga, psicanalista, Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora Titular da Graduaçao e do Programa de Pós-Graduaçao da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Porto Alegre/Rio Grande do Sul. Brasil.
c. Psicóloga, psicanalista em formaçao pela Sigmund Freud Associaçao Psicanalítica, mestranda em Psicologia Clínica no Grupo de Pesquisa Fundamentos e Intervençoes em Psicanálise do Programa de Pós- Graduaçao da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Porto Alegre/Rio Grande do Sul. Brasil
Instituiçao: Programa de Pós-Graduaçao da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil.
Correspondência
Mônica Medeiros Kother Macedo
Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 11, 9º Andar. Partenon
90619-900 - Porto Alegre, RS
monicakm@pucrs.br
Submetido em 12/07/2013
Devolvido aos autores em 31/10/2013
Retorno dos autores em 18/11/2013
Aceito em 29/11/2013
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