Rev. bras. psicoter. 2013; 15(3):18-27
Iankilevich E. É possível conhecer o modelo de mente implícito em nosso trabalho clínico?. Rev. bras. psicoter. 2013;15(3):18-27
Artigos Originais
É possível conhecer o modelo de mente implícito em nosso trabalho clínico?*
Is it possible to know the implicit mind model in our clinical work?*
Eneida Iankilevich
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Uma menina de sete anos de idade entra em meu consultório em seu jeito habitual. Traz uma máquina fotográfica na mao. Coloca-a, com aparente displicência, de lado, e começa a preparaçao de um jogo. Comento que notei ela ter trazido uma máquina fotográfica. "Ah, a câmara!", exclama. E me explica ser um trabalho para o colégio. Pega uma folha de papel, lápis, e vai desenhando, enquanto fala: "sabe quando pedem que a gente desenhe uma casa, o que a gente sempre faz? A gente desenha um chao (vai desenhando o que diz), uma árvore e uma casa, que pode ser assim (telhado, duas partes, com porta em uma e janela na outra), assim (parecido, mas janela e porta na mesma parte), assim (telhado algo diferente, mais pontudo), sol, nuvens. Sempre igual. A profe entao pediu que a gente saísse pelas ruas, olhando outras formas de casa. Vou tirar fotos, por isso trouxe a câmara".
Cabe salientar que essa menina mora em apartamento na cidade. O que seria essa estereotipia, um paradigma, um arquétipo, um modelo? O que minha paciente me ensinou ilustra o que o filósofo Edgar Morin1afirma: vemos o que o paradigma nos permite ver, nao vemos o que o paradigma nao nos permite ver. Além das possibilidades que essa comunicaçao abriu no trabalho psicoterápico específico com essa menina (o que nao estaríamos vendo, o que era preciso olhar de outra maneira, que versoes de sua/nossa história estariam obstruídas pela versao "de sempre", para citar algumas reflexoes necessárias), fez-me pensar no paradigma que orienta "o que vemos", em outras palavras, nossa escuta, e é determinante na conduta que tomamos com os pacientes que nos procuram. Nossas convicçoes teóricas e técnicas influenciarao, estejamos conscientes disso ou nao, nosso parecer sobre a pessoa que busca nosso atendimento. Sendo assim, estarmos atentos às possibilidades, mas também aos limites inevitavelmente impostos pela posiçao a partir da qual pensamos nossos pacientes, pode contribuir para uma aproximaçao mais abrangente de seu sofrimento. O reconhecimento dos riscos impostos por "nao vermos" aquilo que nosso paradigma nao nos permite ver, que aprendi com minha paciente, fez-me pensar em como conhecer ou conhecer melhor o modelo de mente, o paradigma a partir do qual escutamos os pacientes. Essa noçao de que é preciso olhar com cuidado para poder ver o que nao vemos habitualmente foi construindo um eixo a partir do qual se organizaram minhas reflexoes.
"Paradigmas" sao "realizaçoes científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluçoes modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência". Essa afirmaçao de Kuhn2 (p. 12), estudioso da história e filosofia da ciência, destaca o inevitável limite de um conhecimento à medida que novos dados podem ser reconhecidos, inclusive a partir dos paradigmas anteriormente vigentes. Dessa forma ("por inclusao de dados significativos e exclusao de dados nao significativos", diz Morin1, p.14) o conhecimento progride, a ciência (e, em nossos termos, a mente) se desenvolve. O aprisionamento em paradigmas impede que se perceba o novo, o diferente, daí a importância de procurarmos conhecer nossos paradigmas: eis o ensinamento/aprendizado da menina e a possibilidade aberta pela proposta de refletir sobre nosso modelo de mente, implícito3, mas direcionando nossa escuta dos pacientes. Canestri3 e colegas da Associaçao Psicanalítica Europeia, em importante esforço de pesquisa em psicanálise, afirmam que trabalhamos com teorias implícitas, privadas e pré-conscientes. Um dos objetivos do trabalho que seu grupo empreende é a busca por mostrar o valor de identificar as teorias implícitas que guiam o que o analista efetivamente faz em seu trabalho clínico. Segundo esse autor, o psicanalista, à medida que se torna mais experiente, vai construindo uma versao privada a partir da "teoria oficial" que aprendeu. Distingue três componentes em constante interaçao na "teoria" do analista: pensamento baseado na teoria pública; pensamento teórico privado; e a interaçao do pensamento privado com o explícito (o uso implícito da teoria explícita). O trabalho clínico "real" seria determinado por esse complexo construto, implícito porque, "sem ter sido formalmente enunciado, está, entretanto, contido, por inferência, em outro julgamento ou conceito ou fato" (p. 16). A teoria privada, implícita, do psicanalista torna-se o modelo a partir do qual ele trabalha. Canestri3 também enfatiza que nossa avaliaçao do paciente é influenciada por múltiplas fontes, nem todas reconhecíveis por nós enquanto as usamos. O trabalho citado diz respeito, especificamente, à clínica psicanalítica, mas acredito que esse fenômeno (a construçao de uma teoria própria, implícita, que se torna um modelo que orienta nossa escuta e, portanto, conduta com o paciente) acontece inevitavelmente à medida que nos tornamos mais experientes, seja qual for nossa orientaçao teórica, e, portanto, técnica, predominante.
Assim, pensei que seria útil procurar conhecer o modelo, o paradigma a partir do qual exercemos nossa escuta, nossa aproximaçao das pessoas que nos procuram, para nao ficarmos, sem o saber, "desenhando sempre as mesmas casas", talvez orientados por arquétipos nao questionáveis porque nao conhecidos, portanto ofuscantes, impeditivos do desenvolvimento. Essa concepçao coincide com a meta do trabalho psicoterápico de orientaçao analítica, assim como da psicanálise, que pretendem possibilitar aos pacientes crescimento, desenvolvimento mental, para que possam desenhar sua vida desde múltiplas próprias, perspectivas. Nesse sentido, conhecerem suas teorias implícitas, a partir das quais percebem suas vivências e, dessa forma, tornarem-se capazes de questioná-las, abrindo a possibilidade do novo acontecer, com toda a abertura que entao se cria.
Pretendo, neste espaço, descrever um experimento e pensar a partir dele uma forma de conhecer esse modelo em nosso meio.
MÉTODO DO EXPERIMENTO
Nas palavras da menina que ilumina estas minhas reflexoes, "vamos fazer esse trabalho para saber ver coisas diferentes para desenhar ". Como "ver" o que é implícito? Seria suficiente tentar conhecer o meu modelo? Existo separada do meio em que "sou"? Sou capaz de "ver" sozinha? Questoes como essas motivaram o planejamento de um experimento que me ajudasse a conhecer, um experimento que nao se pretende, obviamente, pesquisa, nem qualitativa e nem quantitativa. Trata-se de uma consulta a colegas, buscando aproximar-me de "saber ver", uma curiosidade pessoal que, espero, também seja dos leitores. Encaminhei a 28 psiquiatras uma questao, via e-mail: "qual é sua concepçao de mente em psiquiatria?" Responderam-me vinte e dois colegas (78,6 %). Organizando-os em termos de experiência profissional, é possível determinar três grupos:
I. menos experientes (de três a dez anos como psiquiatras): 9 colegas, dos quais 8 responderam;Dos 22 colegas que puderam participar do experimento, 6 sao psicanalistas ou estao em formaçao psicanalítica (27,27 %), sendo 4 do grupo III (40 %) e 2 do grupo I (25 %).
II. experientes (de dez a vinte e cinco anos como psiquiatras): 4 colegas, dos quais todos responderam;
III. mais experientes (mais de vinte e cinco anos como psiquiatras): 15 colegas, dos quais 10 responderam.
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