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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2013; 15(3):18-27



Artigos Originais

É possível conhecer o modelo de mente implícito em nosso trabalho clínico?*

Is it possible to know the implicit mind model in our clinical work?*

Eneida Iankilevich

Resumo

INTRODUÇAO: Nossas convicçoes teóricas e técnicas influenciarao, estejamos conscientes disso ou nao, nosso parecer sobre a pessoa que busca nosso atendimento. Sendo assim, estarmos atentos às possibilidades, mas também aos limites inevitavelmente impostos pela posiçao a partir da qual pensamos nossos pacientes, pode contribuir para uma aproximaçao mais abrangente de seu sofrimento. Essa constataçao levou a autora a pensar em como conhecer ou conhecer melhor o modelo de mente, o paradigma a partir do qual escutamos os pacientes.
OBJETIVOS: Conhecer o modelo de mente com que nos aproximamos dos pacientes em nosso meio. A autora acredita que, conhecendo melhor nosso paradigma estruturante, estaremos mais alertas para possíveis erros em nossa escuta.
MATERIAL E MÉTODO: Foi encaminhada a 28 psiquiatras uma questao, via e-mail: "qual é sua concepçao de mente em psiquiatria?".
RESULTADO/CONCLUSOES: Na maioria dos textos dos colegas, de qualquer formaçao e momento do desenvolvimento profissional, há referência à necessidade de escutar o paciente e atendê-lo buscando aliviar seu sofrimento, levando em conta a complexidade do encontro com esse ser humano que nos busca. Evidencia-se uma concordância quanto à centralidade da questao mente/cérebro na aproximaçao do tema. Nas respostas verifica-se o predomínio de uma noçao de modelo "plural", "complexo", "múltiplo", "da relaçao mente/cérebro", "nao excludente". Encontram-se divergências e invariâncias nos posicionamentos dos sujeitos. As invariâncias dizem respeito à interaçao, multiplicidade, desenvolvimento, incompletude como inevitáveis em nossa prática e teorizaçoes a partir desta.

Descritores: Teoria da mente; Psicoterapia; Ética.

Abstract

INTRODUCTION: Our theories and techniques theoretical and technical convictions will structure our evaluation of the person who comes for help. This will happen whether we are being us aware of it or not. So it is important to try to be as much aware as possible of these inner factors. as possible.
OBJECTIVES: To understand the mind model model of mind by with which we approach the patients in our environment. The author believes that the more aware we are of our structuring paradigm the more capable we are of perceiving possible errors in our listening to the patient.
MATERIAL AND METHODS: A question was sent via email to 28 psychiatrists, "what is your model of mind model in psychiatry?".
RESULTS/CONCLUSIONS In all the answers, whatever the colleague's formation or moment of professional development, there is a reference to the necessity of listening to the patient and treating him for the relief of his suffering, taking into consideration the complexity of the meeting with this human being that is searching seeking for us. In the answers there is an agreement about the centrality of the issue mind/brain in approaching the theme. In the answers prevails a notion of a "plural", "complex", "multiple", "of the mind/brain relation", "not excluding" model. Divergences and invariables appear in the ideas of the subjects. The invariables points to the interaction, multiplicity, development, uncompleted, as inevitable in our practice and theorization from that practice.

Keywords: Theory of Mind; Psychotherapy; Ethics.

 

 

INTRODUÇAO

Uma menina de sete anos de idade entra em meu consultório em seu jeito habitual. Traz uma máquina fotográfica na mao. Coloca-a, com aparente displicência, de lado, e começa a preparaçao de um jogo. Comento que notei ela ter trazido uma máquina fotográfica. "Ah, a câmara!", exclama. E me explica ser um trabalho para o colégio. Pega uma folha de papel, lápis, e vai desenhando, enquanto fala: "sabe quando pedem que a gente desenhe uma casa, o que a gente sempre faz? A gente desenha um chao (vai desenhando o que diz), uma árvore e uma casa, que pode ser assim (telhado, duas partes, com porta em uma e janela na outra), assim (parecido, mas janela e porta na mesma parte), assim (telhado algo diferente, mais pontudo), sol, nuvens. Sempre igual. A profe entao pediu que a gente saísse pelas ruas, olhando outras formas de casa. Vou tirar fotos, por isso trouxe a câmara".

Cabe salientar que essa menina mora em apartamento na cidade. O que seria essa estereotipia, um paradigma, um arquétipo, um modelo? O que minha paciente me ensinou ilustra o que o filósofo Edgar Morin1afirma: vemos o que o paradigma nos permite ver, nao vemos o que o paradigma nao nos permite ver. Além das possibilidades que essa comunicaçao abriu no trabalho psicoterápico específico com essa menina (o que nao estaríamos vendo, o que era preciso olhar de outra maneira, que versoes de sua/nossa história estariam obstruídas pela versao "de sempre", para citar algumas reflexoes necessárias), fez-me pensar no paradigma que orienta "o que vemos", em outras palavras, nossa escuta, e é determinante na conduta que tomamos com os pacientes que nos procuram. Nossas convicçoes teóricas e técnicas influenciarao, estejamos conscientes disso ou nao, nosso parecer sobre a pessoa que busca nosso atendimento. Sendo assim, estarmos atentos às possibilidades, mas também aos limites inevitavelmente impostos pela posiçao a partir da qual pensamos nossos pacientes, pode contribuir para uma aproximaçao mais abrangente de seu sofrimento. O reconhecimento dos riscos impostos por "nao vermos" aquilo que nosso paradigma nao nos permite ver, que aprendi com minha paciente, fez-me pensar em como conhecer ou conhecer melhor o modelo de mente, o paradigma a partir do qual escutamos os pacientes. Essa noçao de que é preciso olhar com cuidado para poder ver o que nao vemos habitualmente foi construindo um eixo a partir do qual se organizaram minhas reflexoes.

"Paradigmas" sao "realizaçoes científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluçoes modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência". Essa afirmaçao de Kuhn2 (p. 12), estudioso da história e filosofia da ciência, destaca o inevitável limite de um conhecimento à medida que novos dados podem ser reconhecidos, inclusive a partir dos paradigmas anteriormente vigentes. Dessa forma ("por inclusao de dados significativos e exclusao de dados nao significativos", diz Morin1, p.14) o conhecimento progride, a ciência (e, em nossos termos, a mente) se desenvolve. O aprisionamento em paradigmas impede que se perceba o novo, o diferente, daí a importância de procurarmos conhecer nossos paradigmas: eis o ensinamento/aprendizado da menina e a possibilidade aberta pela proposta de refletir sobre nosso modelo de mente, implícito3, mas direcionando nossa escuta dos pacientes. Canestri3 e colegas da Associaçao Psicanalítica Europeia, em importante esforço de pesquisa em psicanálise, afirmam que trabalhamos com teorias implícitas, privadas e pré-conscientes. Um dos objetivos do trabalho que seu grupo empreende é a busca por mostrar o valor de identificar as teorias implícitas que guiam o que o analista efetivamente faz em seu trabalho clínico. Segundo esse autor, o psicanalista, à medida que se torna mais experiente, vai construindo uma versao privada a partir da "teoria oficial" que aprendeu. Distingue três componentes em constante interaçao na "teoria" do analista: pensamento baseado na teoria pública; pensamento teórico privado; e a interaçao do pensamento privado com o explícito (o uso implícito da teoria explícita). O trabalho clínico "real" seria determinado por esse complexo construto, implícito porque, "sem ter sido formalmente enunciado, está, entretanto, contido, por inferência, em outro julgamento ou conceito ou fato" (p. 16). A teoria privada, implícita, do psicanalista torna-se o modelo a partir do qual ele trabalha. Canestri3 também enfatiza que nossa avaliaçao do paciente é influenciada por múltiplas fontes, nem todas reconhecíveis por nós enquanto as usamos. O trabalho citado diz respeito, especificamente, à clínica psicanalítica, mas acredito que esse fenômeno (a construçao de uma teoria própria, implícita, que se torna um modelo que orienta nossa escuta e, portanto, conduta com o paciente) acontece inevitavelmente à medida que nos tornamos mais experientes, seja qual for nossa orientaçao teórica, e, portanto, técnica, predominante.

Assim, pensei que seria útil procurar conhecer o modelo, o paradigma a partir do qual exercemos nossa escuta, nossa aproximaçao das pessoas que nos procuram, para nao ficarmos, sem o saber, "desenhando sempre as mesmas casas", talvez orientados por arquétipos nao questionáveis porque nao conhecidos, portanto ofuscantes, impeditivos do desenvolvimento. Essa concepçao coincide com a meta do trabalho psicoterápico de orientaçao analítica, assim como da psicanálise, que pretendem possibilitar aos pacientes crescimento, desenvolvimento mental, para que possam desenhar sua vida desde múltiplas próprias, perspectivas. Nesse sentido, conhecerem suas teorias implícitas, a partir das quais percebem suas vivências e, dessa forma, tornarem-se capazes de questioná-las, abrindo a possibilidade do novo acontecer, com toda a abertura que entao se cria.

Pretendo, neste espaço, descrever um experimento e pensar a partir dele uma forma de conhecer esse modelo em nosso meio.


MÉTODO DO EXPERIMENTO

Nas palavras da menina que ilumina estas minhas reflexoes, "vamos fazer esse trabalho para saber ver coisas diferentes para desenhar ". Como "ver" o que é implícito? Seria suficiente tentar conhecer o meu modelo? Existo separada do meio em que "sou"? Sou capaz de "ver" sozinha? Questoes como essas motivaram o planejamento de um experimento que me ajudasse a conhecer, um experimento que nao se pretende, obviamente, pesquisa, nem qualitativa e nem quantitativa. Trata-se de uma consulta a colegas, buscando aproximar-me de "saber ver", uma curiosidade pessoal que, espero, também seja dos leitores. Encaminhei a 28 psiquiatras uma questao, via e-mail: "qual é sua concepçao de mente em psiquiatria?" Responderam-me vinte e dois colegas (78,6 %). Organizando-os em termos de experiência profissional, é possível determinar três grupos:

I. menos experientes (de três a dez anos como psiquiatras): 9 colegas, dos quais 8 responderam;
II. experientes (de dez a vinte e cinco anos como psiquiatras): 4 colegas, dos quais todos responderam;
III. mais experientes (mais de vinte e cinco anos como psiquiatras): 15 colegas, dos quais 10 responderam.
Dos 22 colegas que puderam participar do experimento, 6 sao psicanalistas ou estao em formaçao psicanalítica (27,27 %), sendo 4 do grupo III (40 %) e 2 do grupo I (25 %).


RESULTADOS

Estudando as respostas recebidas, o que primeiro me chamou a atençao foram os termos que os colegas usaram para expressar sua concepçao de mente em psiquiatria. Assim, nas vinte e duas respostas, o termo "mente" é utilizado por seis colegas (27,27 %), dos quais dois utilizam "mente/ambiente". Oito colegas (36,36%) referem-se a "mente/cérebro" em suas consideraçoes. Os oito colegas (36,36%) restantes falam de "mente/cérebro/ambiente". Em todas as manifestaçoes, há um entendimento de fatores genéticos envolvidos na constituiçao da mente. Penso que esse achado está de acordo com o desenvolvimento da ciência, que assinala fortemente a interaçao entre fatores como estruturante da realidade4.

Nas respostas, encontra-se uma concordância quanto à centralidade da questao mente/cérebro na aproximaçao do tema. "O cérebro possui uma existência física, é um órgao de extrema complexidade e é nele que ocorrem fenômenos elétricos, químicos e biológicos. Já a mente é fundamentalmente subjetiva, sem existência física, embora processos mentais possam acarretar fenômenos físico-químicos no cérebro e mesmo em outros órgaos." "Entendo a mente como uma entidade abstrata que, através de múltiplas funçoes coordenadas pelo cérebro (...) rege a quase totalidade do comportamento humano." "Para sentir, para costurar os retalhos e fazer uma colcha com as informaçoes que o cérebro recebe, temos algo que chamamos de mente."

Na maioria dos textos dos colegas, de qualquer formaçao e momento do desenvolvimento profissional, há referência à necessidade de escutar o paciente e atendê-lo buscando aliviar seu sofrimento, levando em conta a complexidade do encontro com esse ser humano que nos busca. "Ao escutarmos o paciente, demonstramos que suas questoes sao suportáveis e que é possível lidar com elas."

Em todas as respostas verifica-se o predomínio de uma noçao de modelo "plural", "complexo", "múltiplo", "da relaçao mente/cérebro", "nao excludente", na mesma linha nao reducionista. Nesse sentido, aparecem referências à interaçao (inclusive paciente/terapeuta) como eixo construtor do modelo de mente do psiquiatra.

Vários colegas fazem referência a estar sempre em construçao seu modelo de mente, da mesma forma que afirmam pensar a mente em constante desenvolvimento, alcançando maiores possibilidades de atribuir significados a partir das experiências externas e internas que a atingem ("como um processador", diz um colega). Em sua maioria, apontam para o "material clínico", o "paciente", o "trabalho conjunto", como fatores determinantes na construçao de seus modelos. É possível encontrar, nesses assinalamentos, ecos da tradiçao psiquiátrica e psicanalítica, em que a clínica constrói a teoria que possibilita novos entendimentos da clínica, que, entao, interferem nas concepçoes teóricas, num entretecer5 que afirma o interesse principal de nosso trabalho, seja qual for o vértice de aproximaçao: a busca pelo melhor atendimento das pessoas que nos procuram. Isso também se expressa no dado de que nas descriçoes de mente de todos os colegas há referências a "dor", "disfunçao", "alteraçao", "prejuízo", "sintomas", "patologia" no desenvolvimento mental do paciente, em geral assinalando que devemos usar nosso modelo de mente em busca de construir uma técnica adequada à necessidade do paciente. Pode-se pensar que se manifesta uma postura ética nessa concepçao de mente em psiquiatria, um ideal de ajudar os pacientes a sofrer menos, viver melhor.

Muitas respostas enfatizaram ser seu modelo de mente construído a partir das concepçoes teóricas aprendidas no encontro com o paciente de acordo com as características próprias (de personalidade) do terapeuta, enfatizando o que é essencial: o encontro com o paciente, fonte de aprendizagem, construçao e reordenamento de teorias, razao de ser de nosso trabalho.

A seguir, cito algumas afirmaçoes feitas sobre o modelo de mente que, acredito, falam de invariâncias no grupo consultado:

"O meu modelo de mente, penso, é, em primeiríssima ordem, o resultado de minhas experiências."

"(...) nao um único modelo, mas um conjunto de fatores que influenciam emoçoes e comportamentos, protegem, ou predispoem à doença."

"(...) uma questao para a qual nao tenho resposta (...) e (...) nenhum dos modelos que conheço ou com os quais tive contato me satisfaz ou me parece suficientemente abrangente para abarcar a diversidade do comportamento e das emoçoes humanas."

"(...) uma nova versao para a velha equaçao etiológica do Dr. Sig."

"(...) com a equaçao etiológica em mente..."

"(...) nem tudo é entendido e nem tudo tem somente um ponto de vista."

"(...) um modelo que nunca está pronto..."

Pode-se conjeturar que as invariâncias dizem respeito à interaçao, multiplicidade, desenvolvimento, incompletude como inevitáveis em nossa prática e teorizaçoes a partir desta. Como já foi mencionado, isso fala de uma postura ética que possibilita a escuta cuidadosa de nossos pacientes.

Numa tentativa de verificar dissonâncias, procurei cruzar os achados entre os grupos organizados a partir do momento do desenvolvimento profissional. Um dado marcante é que todos os colegas "mais experientes" fazem referência a sua experiência como fator da construçao de seu modelo de mente; dos "experientes", a metade fala disso, e, entre os "menos experientes", nenhum faz mençao a isso (um sujeito desse grupo especifica seu tempo de formaçao como psiquiatra, mas como possível fator limitante).

Todos os "menos experientes" referem, de alguma maneira, o desejo de chegar a construir uma concepçao pessoal de mente. Nesse sentido, tanto em nosso desenvolvimento profissional como em nosso desenvolvimento humano, almejamos viver a individualidade que permite trocas que vao construindo conhecimento.

Uma leitura atenta dos textos que recebi assinala uma tensao entre o que seria um "modelo psicanalítico" e o que seria um "modelo bioquímico", algo que corresponde ao que pode ser observado naturalmente em nosso meio. Essa tensao, que pode ser percebida na leitura das respostas de todos os grupos, adquire uma característica específica nos textos dos "menos experientes". Estes, unanimemente, especificam o desejo de encontrar uma maneira de integrar modelos (um modelo "integrativo biopsicanalítico", sugere um colega) e, nessa integraçao, encontrar indicadores para uma melhor aproximaçao dos pacientes.

Esse ideal está bem descrito nestas palavras de um colega: "Pensei como um mecânico que é chamado a realizar um reparo e deve levar em sua caixa de ferramentas várias chaves. Quem determina qual chave ele vai usar é o parafuso e nao o mecânico. Mas, para isso, ele precisa de uma caixa bem equipada. Portanto, penso que somos o mecânico, e o paciente é o nosso parafuso. Devemos ter nossa 'caixa de ferramentas', nosso arcabouço teórico o mais completo possível para nos adequarmos à necessidade do paciente/parafuso que se apresenta para a gente".


DISCUSSAO

O levantamento das respostas recebidas mostrou aspectos invariantes e dissonantes, que, acredito, propiciam uma reflexao rica e falam do grupo profissional que formamos. Tenho consciência de ter perguntado a colegas que compartilham parte importante de suas formaçoes, mesmo que se diferenciem em suas áreas de preferência e açao clínica. A questao que propus ("qual é sua concepçao de mente em psiquiatria?") é inespecífica e propiciou respostas múltiplas, difíceis de comparar. O estudo dessas respostas, mesmo tendo em mente as limitaçoes descritas, pode contribuir para ampliar o conhecimento da noçao de mente que utilizamos.

A maioria dos colegas falou da dificuldade da tarefa, de como "nao se pensa nisso" habitualmente. Funcionamos, poderíamos dizer, com um modelo de mente implícito que norteia nossas açoes. As colocaçoes de Canestri3 encontram confirmaçao nesses depoimentos, reforçando o interesse em estudarse o assunto. Quanto mais possamos reconhecer aquilo que norteia nossa conduta com o paciente, maior será a possibilidade de atendê-lo melhor (menos possibilidades de "nao ver" outras casas).

Nosso modelo de mente orienta nossa aproximaçao dos pacientes. É construído a partir das teorias que fazem sentido para nós, da interaçao com nossos pares, de nossa experiência clínica e de vida, de nossa personalidade e do momento de desenvolvimento profissional e pessoal. Está, ou deveria estar, em constante construçao, e é importante que busquemos conhecê-lo, para nao funcionarmos ofuscados por esse modelo implícito que, se nao conhecido, pode nos cegar para o novo, o aprendizado, o desenvolvimento e, acima de tudo, o encontro com esse outro que é nosso paciente.

A experiência que descrevo levou-me a pensar minha própria posiçao. Certamente minha concepçao de mente neste momento já foi modificada pelo estudo das respostas de meus pares à minha provocaçao, um resultado que considero enriquecedor.

Penso que mente/cérebro/ambiente sao sistemas em constante interaçao e com influências recíprocas.

Percebo entender a mente como propriedade emergente do cérebro vivo e em interaçao com o outro, com o ambiente. Aliás, seguindo Varela6, diria que penso hoje a mente como propriedade emergente do corpo vivo e em interaçao, constantemente dando sentido à experiência que vive o indivíduo, possibilitando que as vivências, a memória, se tornem história pessoal, que a individuaçao aconteça, possibilitando a construçao da vida de relaçoes, da capacidade de amar e trabalhar7. A funçao da mente como atribuidora de significado às experiências individuais foi destacada no experimento por alguns colegas, especialmente pelos que têm ou estao em formaçao analítica, com isso evidenciando a sua convicçao na teoria aprendida (ou buscada).

Acredito que a interaçao pela comunicaçao, com ou sem palavras, é determinante na estruturaçao da mente e que escutar e falar com o paciente é indispensável para encontrar o indivíduo ali onde nos guiamos pelas teorias, pela experiência genérica. A meu ver, a aproximaçao desde um vértice psicanalítico, em constante oscilaçao com outros8, possibilita que esse encontro se torne terapêutico, contribuindo para o conhecimento da singularidade daquele paciente, daquele ser específico que nos procura e, portanto, para o conhecimento da forma pela qual ele utilizará o que lhe propusermos, seja qual for a orientaçao teórica/técnica de nossa conduta.

Acredito que o encontro com a subjetividade, com a especificidade do sujeito que nos procura, é determinante do resultado de qualquer tratamento, assim como contribui para a abordagem do humano em cada um de nós. Penso, portanto, que um modelo integrador, como desejam os colegas, explicitamente os "menos experientes", efetivamente beneficiaria nosso encontro com os pacientes, contribuindo para melhor atendê-los. O que fala a favor de esforços realizados para levar adiante essa busca por um modelo mais abrangente de escuta do paciente.

Reconhecer que, ao escutarmos nossos pacientes, o fazemos a partir de um modelo de mente do qual nem sempre estamos conscientes, pode nos ajudar na constante busca por ouvir esse outro que nos fala a partir de sua especificidade e necessidades, busca por nao ficarmos impedidos de, por maior domínio de alguma técnica, atender a outras necessidades de nossos pacientes. A subjetividade característica dos seres humanos está implicada em qualquer relaçao. Nessa relaçao tao específica paciente/terapeuta, nao poderia deixar de ser essencial e determinante esse encontro de subjetividades. Em qualquer técnica pode-se fazer necessário, em algum momento, o reconhecimento e abordagem de possíveis interaçoes dessa ordem interferindo no processo de tratamento.

Penso que as palavras de Kandel9 - ser a missao do século XXI desvendar essa "complexa unidade mente/cérebro" - indicam um caminho a seguir. Nesse sentido, a noçao de inconsciente, central em psicanálise e em minha prática, é um fato clínico que demanda estudo continuado e vem sendo levado em conta em outras áreas do conhecimento (memória10, por exemplo). Poder levar em consideraçao fatores inconscientes no encontro paciente/terapeuta também contribui para evitar-se, dentro do possível, riscos de estreitamento de nossa avaliaçao, riscos de enxergarmos apenas "a casa que nosso paradigma nos permite ver", com os inevitáveis erros decorrentes, como aprendi com minha paciente. Os colegas mostram preocupaçao semelhante ao enfatizarem a busca por um modelo integrador.

Penso que a questao do vértice de observaçao, mental ou cerebral, que orienta nossas abordagens práticas exige pesquisa para "aprendermos a ver" aquilo que nao podemos ver, isolados em nossos paradigmas. Para isso, colegas de diferentes orientaçoes teóricas poderiam dedicar-se às mesmas pesquisas, desde o projeto até a realizaçao e análise, para que questionamentos quanto à efetividade das abordagens possam ser realizados e ampliemos o conhecimento dessa "complexa unidade mente/cérebro"9 aprendendo uns com os outros. Essa seria uma maneira de contribuir ao esforço de compreender aquela pessoa que é o nosso paciente, aquilo que a traz a nós e, quem sabe, encontrar um caminho para multiplicar as possibilidades de aliviar seu sofrimento.

Conhecer o melhor possível nossa teoria implícita3 de mente nos ajuda a ver "mais de um tipo de casa", beneficiando com isso o desenvolvimento de nossos pacientes e de nossa ciência.


AGRADECIMENTOS

Agradeço ao colega Erico de Moura Silveira Junior pela leitura atenta e sugestoes valiosas.

Agradeço aos colegas que tornaram possíveis estas reflexoes e autorizaram o uso de seus depoimentos. Sem eles, esse trabalho nao teria acontecido.


REFERENCIAS

1. Morin E. (1990). Introduçao ao Pensamento Complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 2003.

2. Kuhn T. (1962) A Estrutura das Revoluçoes Científicas. Sao Paulo, editora Perspectiva S.A., 2007.

3. Canestri J. Psychoanalysis: from Pactice to Theory. Londres, Whurr Publishers Ltd, 2006.

4. Polanczyk G. Em busca das origens desenvolvimentais dos transtornos mentais. Rev Psiquiatr RS. 2009;31(1).

5. Leuzinger-Bohleber M, Fischmann T. What is conceptual research in psychoanalysis? Int J Psychoanal. 2006;87(Pt 5):1355-86.

6. Varela F.; Thompson E.; Rosch E. A Mente Corpórea. Portugal, Instituto Piaget, s/d.

7. Freud S. (1915) Reflexoes para os tempos de guerra e morte. In: Ediçao Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud v. XIV. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974.

8. Ferro A. (1995). A Técnica na Psicanálise Infantil. Rio de Janeiro: Imago Editora.

9. Kandell E. Biology and the future of Psychoanalysis: A New Intelectual Framework for Psychiatry Revisited. American Journal of Psychiatry 1999; 156-4 p.505-524.

10. Izquierdo I. Memória. Porto Alegre; Artmed, 2002.









Psiquiatra e psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Instituiçao: Centro de Estudos Luís Guedes e Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

Correspondência
Eneida Iankilevich
Av. Taquara, 564/206. Bairro Petrópolis
90460-210. Porto Alegre, RS
eianki@terra.com.br

Submetido em 04/08/2013
Devolvido ao autor em 16/10/2013
Retorno do autor em 24/11/2013
Aceito em 04/12/2013


*Versao modificada de trabalho apresentado na XXVI Jornada de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 2012, e no Colóquio do Curso de Extensao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica do Centro de Estudos Luís Guedes - CELG (CEPOA), em 01/12/2012.

 

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