ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2013; 15(3):42-52



Artigos Originais

Que segredos guardam seus olhos: a questao do olhar em Freud

What secrets do her eyes keep: the question of the look in Freud

Cibele Denise Weide Acosta

Resumo

Vários sao os olhares sobre um determinado fato. O presente trabalho é um olhar possível sobre o filme "O Segredo dos Seus Olhos", do cineasta argentino Juan José Campanela. A partir da leitura de textos clássicos de Freud sao abordados temas como estruturas psíquicas, mecanismos de defesa, formaçao de sintomas, cena primária, trauma e tratamento. A descriçao dos personagens e cenas do filme permite que se ilustrem, associem e referenciem conceitos básicos de Psicodinâmica de alguma maneira relacionados ao olhar. Dessa forma, é possível acompanhar o personagem central na busca da resoluçao de seu conflito, uma equaçao pessoal que envolve o temido e o amado.

Descritores: Cinema; Teoria Freudiana; Mecanismos de Defesa.

Abstract

Many are the views on a certain fact. This work is one possible view on the film The Secret of her Eyes, by the Argentinean director Juan José Campanela. Based on classical texts by Freud, themes such as psychic structures, defense mechanisms, symptom formation, primal scene, trauma, and treatment are addressed. The description of the characters and scenes in the film allow the depiction, association, and reference of basic concepts in Psychodynamics somewhat related to the theme of the view. Therefore, it is possible to follow the main character in search of a resolution for his conflict, a personal equation involving the feared and the loved.

Keywords: Cinema; Freudian Theory; Defense Mechanisms.

 

 

INTRODUÇAO

A arte imita a vida, ou a vida imita a arte? Independente de quem for o sujeito, a açao envolvida é a de imitar, que significa "reproduzir à semelhança de", "copiar", segundo o dicionário Houaiss1. Quando a arte imita a vida, ela brinca com a liberdade poética do "como se". Ela é como se fosse a vida, mas nao é, da mesma forma que a menina coloca o sapato da mae e age como se fosse a mae, sem ser a mae. Esse espaço que se forma entre o eu e o nao eu é o que Winnicott2 chamou de espaço transicional, um espaço criativo que permite que se experimente o mundo de uma forma lúdica, favorecendo a aprendizagem. Nesse espaço, em parte real e em parte ilusório, o indivíduo testa, de forma prazerosa e num ambiente protegido, as novas percepçoes e conhecimentos adquiridos.

O objetivo deste trabalho é ilustrar, associar e referenciar conceitos básicos de Psicodinâmica a partir de uma análise do filme O Segredo dos Seus Olhos, de Juan José Campanella. Entremeando descriçoes de personagens e cenas do filme, serao tratados temas como estruturas psíquicas, mecanismos de defesa, formaçao de sintomas, cena primária, trauma e desenvolvimento da libido infantil, entre outros, sob a perspectiva da teoria freudiana. Visa-se, com isso, a realizar um exercício lúdico, criativo, sem a pretensao de esgotar o assunto, mas buscando novas associaçoes e hipóteses.


SINGULARIDADES: O OLHAR MATIZADO PELO MUNDO INTERNO

A sabedoria popular diz que "os olhos sao as janelas da alma". Podemos entender essa sentença de várias maneiras. Uma possível leitura seria a de que os olhos, sendo janelas, sao uma conexao entre o interno e o externo, o dentro e o fora, o eu e o outro, o mundo interno e o mundo externo; através deles, os estímulos externos se transformam em internos.

O modo de funcionamento desse portal constituía um mistério nos primórdios da humanidade, e várias hipóteses foram formuladas a esse respeito de acordo com o nível de conhecimento e com a tecnologia de cada época. Na Grécia antiga, período em que os filósofos questionavam o universo e tudo que o constituía, principalmente o homem, acreditava-se que a visao era formada a partir de raios emitidos pelo olho: os raios projetavam-se, iluminavam o objeto e, na volta, eram decodificados pelo cérebro. Já no Renascimento, período posterior à Idade Média e no qual a ciência evoluiu muito, Maurolycus e Leonardo da Vinci, pesquisando e desenvolvendo a câmera escura, constataram que a luz dos objetos iluminados pelo sol entrava por um orifício lateral da câmera, formando-se uma imagem invertida ao fundo. Kepler, comparando o olho humano com a câmera escura, concluiu que a retina funcionava como receptor da imagem, e a lente e a córnea, como meios de refraçao. Nos dias de hoje, podemos ler no site da Sociedade Brasileira de Oftalmologia que a funçao básica do olho é "captar a luz originada nos objetos que nos cercam, fazendo-a ser focalizada no plano posterior do globo. Aí é transformada em impulsos eletromagnéticos, transmitidos pelo nervo óptico e vias ópticas, até os centros visuais cerebrais. Nestes centros, se dá a percepçao visual, com o reconhecimento da imagem e a localizaçao do objeto focalizado"3.

Dado que as pessoas de visao normal formam a imagem nos centros visuais cerebrais da mesma maneira referida acima, por que, entao, os relatos de pessoas que presenciaram uma mesma cena sao diferentes ainda que o processo da visao e os objetos sejam os mesmos?

Talvez a resposta para essa pergunta seja: porque as pessoas nao sao as mesmas. Nao basta ver, ter o sentido da visao: é necessário dar um significado ao que se vê, e os variados relatos representam os diferentes significados que pessoas distintas dao aos mesmos fatos. O olho pode ser o mesmo, mas o olhar nao. Iniciou-se falando dos olhos como janelas da alma, como um portal entre o mundo interno e o externo. Entao, se todos de certa forma compartilham o mesmo mundo externo, a diferença e a singularidade do olhar devem residir no mundo interno.

Vários pensadores importantes pensaram de diferentes formas o funcionamento psíquico do indivíduo. Como seria ver o filme O Segredo dos Seus Olhos pela visao de conceitos clássicos desenvolvidos pelo olhar pioneiro de Freud?


O SEGREDO DOS SEUS OLHOS: NECESSITANDO ENXERGAR PARA DECIFRAR

No filme de Campanella, O Segredo dos Seus Olhos, um mesmo fato marca de forma distinta a vida de três personagens masculinos: um estupro seguido de morte. O funcionário público Benjamín Espósito passa a investigá-lo e entra em contato com o marido da vítima e também com o assassino.

Ao chegar à cena do crime, Benjamín fica impactado com o que vê. A cama, a mulher nua, o sangue por todo lado indicavam a brutalidade do ato. Por um tempo fica paralisado, como que identificando e reconhecendo cada aspecto da situaçao. É como se a visao dessa cena abrisse uma janela que permitisse ao personagem contemplar sem necessariamente fazer par te dela. Se, num primeiro momento, nao queria acompanhar o caso, agora ele necessita investigá-lo.

A associaçao entre olhos e janelas também pode ser encontrada no caso do homem dos lobos, de Freud4. Nesse caso, um jovem paciente relata a Freud um sonho que tivera antes do quarto aniversário, no período em que ocorrera uma primeira crise na forma de uma histeria de angústia, que, mais tarde, transformou-se numa neurose obsessiva de conteúdo religioso e que perdurou até os dez anos, quando desapareceu espontaneamente. Aos 18 anos, a saúde do paciente tinha sofrido um abalo como consequência gonorreia infecciosa, deixando o jovem inteiramente incapacitado e dependente de outras pessoas. Algum tempo depois disso, ele entrou em análise com Freud.

O sonho dos lobos foi descrito da seguinte forma:

"Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama... De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas, e orelhas empinadas, como caes quando prestam atençao a algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei" (p. 45).
Durante o tratamento, Freud e seu paciente trabalharam esse sonho até que, certo dia, o jovem disse que achava que a parte de seu relato "de repente a janela abriu-se sozinha" deveria significar "meus olhos abriram-se de repente". O processo de inversao havia transformado olhos em janelas. Na sequência da análise, eles foram identificando que um violento movimento havia acordado o menino e chegaram à hipótese de que, na idade de um ano e meio, quando, por estar sofrendo de malária, estava dormindo no quarto dos pais, ele teria visto a cópula vis a tergo dos pais. Como um bebê dessa idade nao tem maturidade sexual para entender o que vê, essa cena ficou guardada até que, com a idade de quatro anos, devido à sua excitaçao e pesquisas sexuais, o paciente fora capaz de compreender o que havia observado em tao tenra idade. O coito fora entao entendido como uma agressao do pai numa relaçao sadomasoquista, e presenciar o ato havia provocado uma excitaçao sexual na criança que a levara à angústia de castraçao. O menino, que estava se encaminhando para a fase genital de desenvolvimento, regrediu ao estágio mais primitivo da organizaçao anal-sádica à que corresponde propósito masoquista de ser espancado ou castigado.

Freud tratou esse relato de observaçao da cena primária como um fato acontecido na realidade que só pôde ser compreendido e tratado pela paciente a posteriori, mas, nos seus trabalhos seguintes, ele já admitiu a possibilidade de relatos de visualizaçao da cena primária corresponderem a fantasias inconscientes. De qualquer maneira, ele mostrou que fatos ocorridos numa época podem ser ressignificados por acontecimentos posteriores.

Assim como aconteceu com o homem dos lobos, podemos pensar que Benjamín, ao chegar à cena do crime, viu ou reviu uma cena brutal que já tinha registro no seu mundo interno. Essa cena do presente traz do passado e reativa o trauma da cena primária, independente de essa cena ser real ou fantasiosa. A imobilidade presente no sonho do paciente de Freud, representada pelos lobos da árvore, é sentida pelo personagem e percebida em outros momentos do filme. Em certa passagem, ele confidencia ao seu colega que imagina coisas bonitas para dizer para a chefe, pela qual nutre um amor secreto, mas que, na presença dela, nao consegue dizê-las. Benjamín demonstra sentir inveja da facilidade com que seu colega se dirige à chefe, como se assistisse impotente ao prazer do outro. Para ele, o acesso ao feminino é negado, como se a excitaçao fosse perigosa. Nao é à toa que sua máquina de escrever no trabalho apresenta defeito no registro da letra "A", letra que, em português, corresponde ao artigo feminino, símbolo da feminilidade, e ao mesmo tempo um prefixo de negaçao. É essa mesma a letra que falta a Benjamín quando, ainda sonolento ao acordar no meio da noite, escreve "TEMO" num caderninho; somente mais tarde, ele consegue completar com o "A" a frase, transformando "TEMO" em "TE AMO". O amado é temido, por isso precisa ser proibido, recalcado. Em razao disso, Benjamín vive uma vida contemplativa, sem acesso ao prazer do encontro com o feminino, e, assim, desperdiça parte da própria vida.

Quando se depara com a cena do crime, Benjamín identifica uma oportunidade de resolver nao só o caso, mas também seu conflito. Necessita saber como vivem os outros dois personagens que ousaram fazer o que ele nao se permite: aquele que assumiu o risco de viver um amor e que acabou perdendo-o de uma forma tao violenta, sendo castrado, e aquele a quem, sendo-lhe negado esse amor, consumara-o à força, aceitando o risco de destruir o objeto.

Freud5 talvez dissesse que Benjamín possui características neuróticas e que seu conflito é o resultado do embate entre o superego e as pulsoes, no interior do ego. A angústia sentida por ele nao diria respeito ao perigo de fragmentaçao, mas, antes, à ameaça de castraçao. O neurótico tem como defesa característica o recalcamento, e, mesmo que outros mecanismos também se façam presentes, jamais apela para a negaçao da realidade. Bergeret6 ressalta que, em caso de acidente mórbido, a regressao neurótica diz mais respeito à libido do que ao ego e que jamais atinge o nível das regressoes pré-genitais das estruturas psicóticas. Diz ainda que "a fantasmatizaçao e os sonhos neuróticos correspondem às satisfaçoes pulsionais alucinatórias proibidas pelo superego e portam traços do conflito e das defesas".

Ao conhecer Ricardo Morales, marido da vítima, Benjamín fica impressionado com o amor dele pela esposa. Ao contar como haviam se conhecido, Morales diz que tinha tido dificuldade em falar com ela por se tratar de uma mulher tao linda, expressando uma inibiçao muito familiar para Benjamín. Em seu relato do posterior casamento e da vida de casal ("bastante tranquila"), Ricardo realça aspectos bastante infantilizados da relaçao. Por exemplo, o marido voltava para casa todos os dias ao meio-dia, mesmo percorrendo uma certa distância do trabalho, porque o casal tinha um costume, uma rotina: assistirem juntos na TV ao programa "Os três patetas". A última lembrança do marido era da preocupaçao da esposa com a saúde dele, pois na noite anterior ao assassinato, havia tossido sem parar; a esposa, entao, tinha preparado um chá para ele. Sao relatos de um amor puro, como identificou posteriormente Benjamín, entre um bancário e uma professora de 24 anos, que foi brutalmente interrompido por um ato extremamente violento de estupro seguido de morte, cometido por "amor" por um personagem do passado.

Freud talvez também dissesse que Morales era um neurótico, mas que, devido a algumas características, apresentaria um quadro de neurose obsessiva. Dentre essas características, podemos citar a tendência a repetir rígidos rituais obsessivos, como vir para casa todos os dias para fazer a mesma atividade (no dia em que nao foi, a esposa foi morta), a escala elaborada para vigiar as estaçoes de trem à procura do assassino e a forma de catalogar as fotografias da esposa, que facilitou a identificaçao do assassino por parte de Benjamín, assim como a recusa a dever algo, nem que seja um cafezinho oferecido por Benjamín.

A estrutura obsessiva é, no plano libidinal, a mais regressiva das neuroses. Para Freud7, as neuroses se devem a um conflito entre o ego e a sexualidade, e, na neurose obsessiva, é a própria regressao da libido ao estádio preliminar da organizaçao sádico-anal o fato mais marcante e decisivo para aquilo que se manifesta nos sintomas. A pulsao de amor é obrigada a disfarçar-se em pulsao sádica. O ego regride do ato ao pensamento, e a angústia de castraçao diz respeito ao medo da descoberta dos pensamentos e desejos, tanto eróticos quanto agressivos. A defesa predominante continua sendo o recalcamento, mas que, sobretudo nas pulsoes agressivas, acaba falhando, sendo necessário lançar mao de outros mecanismos como o isolamento, o deslocamento e a anulaçao, assim como de importantes formaçoes reativas. Bergeret6 ressalta que "no plano de representaçoes fantasmáticas, os afetos constrangedores sao destacados, depois secundariamente ligados a situaçoes protetoras".

Como referido anteriormente, na busca do assassino, Benjamín entra na intimidade do apartamento do casal e lá se depara com um álbum de fotografias da vítima devidamente legendado de acordo com um método ensinado pelo esposo. Nas fotos, Benjamín repara em um sujeito que aparece repetidas vezes com o olhar direcionado para a vítima. Identifica um olhar de desejo e cobiça que passara despercebido para todos, mas nao para ele. Vê semelhança com o olhar de desejo que ele mesmo dirige à amada, mas o homem das fotos tem no olhar um quê de cobiça que Benjamin nao ousa mostrar no seu.

Seu detalhado escrutínio das fotos leva Benjamin à figura de Isidoro Gómez, um conterrâneo da vítima. Trata-se de um sujeito que morava com a mae numa cidade do interior e com quem compartilha uma paixao pelo time do coraçao, o Racing. Sobre essa paixao apresenta é mencionada uma máxima no filme: "Pode-se trocar tudo na vida: de nome, de sexo, de mulher, de emprego, mas nunca se troca de paixao, paixao pelo time". Seguindo essa lógica, foi possível prender Gómez no estádio de futebol durante um jogo do seu time do coraçao. Durante o interrogatório, a chefe de Benjamín percebe o olhar lançado por Gómez para seu decote e o provoca até ele sair de seu disfarce de inocente. Provoca-o na sua masculinidade, desqualificando sua virilidade e a potência do pênis. Frente a isso, o sujeito se vê obrigado a mostrar concretamente que nao é castrado.

Identifica-se nesse personagem um comportamento peculiar, entre o neurótico e o psicótico, que poderia ser chamado de perverso. Freud8, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, explica de que forma a pulsao está relacionada à sexualidade do sujeito: como um desvio relativo ao objeto da pulsao sexual, ou como um desvio relativo a seu objetivo. As perversoes entram no capítulo dos desvios que se relacionam ao objetivo sexual, e ele as classifica em duas ordens: transgressoes anatômicas, relacionadas às partes destinadas a realizar a uniao sexual; e paradas em certas relaçoes intermediárias que deveriam ser transpostas rapidamente para atingir o objetivo sexual final. Freud descreve a perversidade polimorfa infantil como um estágio no desenvolvimento normal do sujeito, tanto que se identificam traços perversos em praticamente todas as estruturas da personalidade, inclusive nas que atingiram o estágio genital. Mabilde9 destaca que "aquilo que é considerado perverso ilumina a compreensao da própria sexualidade". As perversoes seriam o resultado de uma regressao a um estágio anterior da evoluçao libidinal no qual o sujeito permaneceria eletivamente fixado10. Dessa forma, chega-se ao conhecido aforismo de Freud segundo o qual a neurose seria o negativo da perversao.

Em 1915, em Os instintos e suas vicissitudes, Freud11 menciona quatro destinos pulsionais: recalcamento, sublimaçao, transformaçao no seu contrário e o retorno sobre a própria pessoa. Em Benjamín e Morales, como representantes da estrutura neurótica, é possível identificar açoes que respondem predominantemente aos dois primeiros destinos. Já o comportamento de Gómez ilustra os dois últimos tipos de destino pulsional; seria o caso, por exemplo, do amor transformado em ódio e a mudança da posiçao de quem observa nas fotos (voyeurismo) para a de quem se exibe no estupro (exibicionismo).

Desenvolvendo conceitos de Freud, Bergeret6 identifica que o ordenamento perverso se dá no caminho para o genital, onde o indivíduo se depara com a excitaçao parental (geralmente materna), que o leva a "bancar o genital" sem ter atingido um nível de organizaçao realmente genital. "O narcisismo primário encontra-se, assim, mal integrado e fixado ao nível da atraçao por um objeto parcial cheio de mistério, em uma evoluçao afetiva que permaneceu indecisa entre um autoerotismo ainda nao completamente superado e um estágio objetal apenas alucinado, que jamais foi realmente atingido. A precocidade da excitaçao libidinal foi tal que a pulsao e o objeto parcial soldaram-se cedo demais e o objeto total nao pôde constituir-se". O sujeito acaba ficando numa situaçao em que nega a castraçao, pois ele é o falo materno, mas, ao mesmo tempo, vive essa fantasmática. Como o Complexo de Édipo nao foi elaborado de forma satisfatória, o superego ficou incompleto, mais permissivo, nao produzindo o sentimento de culpa característico dos neuróticos.

Dessa forma, o personagem Gómez consegue fazer, colocar em ato, o que Morales e Benjamín nao conseguem por medo de reeditar a culpa. O temor do perverso nao é a culpa, mas sim a castraçao. Ele tem que estar constantemente provando a si mesmo e aos outros que nao é castrado. Por essa razao, Gómez teve de sair de sua cidade no interior e mostrar ao objeto de desejo de sua adolescência que nao era castrado, exibir toda a potência de que era capaz, levando-a a um limite que ninguém mais poderia superar, o da morte. Essa negaçao também aparece no interrogatório: é mais angustiante para Gómez a possibilidade de ser visto como um ser incompleto, incapaz de satisfazer uma mulher, do que a de ser preso.

A interaçao desses três personagens faz com que a história se desenrole mostrando os aspectos funcionais de cada um.

Benjamín, parcialmente identificado com Morales, dedica-se a encontrar o assassino. Para tanto, usa de expedientes pouco ortodoxos, inclusive burlando regras de investigaçao, o que acarreta puniçao e advertência por parte de seus superiores. Morales, por sua vez, busca refúgio em seu caráter obsessivo: espera pacientemente o assassino passar pelas plataformas de embarque e desembarque dos trens metropolitanos, seguindo uma rígida tabela de dias e horários.

Em um diálogo entre os dois sobre a puniçao esperada para o criminoso, Morales diz ficar satisfeito com prisao perpétua. Diz ser contra a pena de morte, pois seria uma injeçao letal que poria Gómez a dormir sem sentir nada e que era disso que ele, Morales, gostaria para si mesmo. Queria que o assassino vivesse por muitos anos para que soubesse o que é ter uma vida cheia de "nada". Nesse depoimento identificam-se aspectos sádicos do obsessivo sob o manto da justiça: o outro deve sofrer para que assim diminua o seu próprio sofrimento. O obsessivo se esconde atrás de regras, normas e leis, por medo da retaliaçao. Dessa forma, apresenta a puniçao, nao como um desejo seu, mas como um dever. Em outro trecho do filme, Morales diz:
"Que ganho se der quatro tiros nele? Eu iria para a prisao pelo resto da minha vida. Gómez cairia no chao e estaria livre de tudo isso e eu passaria cinquenta anos preso com inveja da sorte dele. Nao, para mim a prisao perpétua estaria bem."
Após a prisao do assassino, tudo volta a uma aparente normalidade, até que Gómez é visto na televisao nao somente livre, mas gozando de posiçao privilegiada. Frente a isso, Benjamín decide enfrentar o responsável por libertar o prisioneiro: um antigo desafeto seu que agora goza de posiçao influente no governo. Nesse encontro, Benjamín é humilhado na frente de sua amada, escuta que é um zé-ninguém, um simples funcionário público sem berço e sem poder nenhum. Para completar, ao descer pelo elevador, Gómez se junta a eles e exibe todo o seu poder, a sua "nao castraçao", manuseando a sua arma como se estivesse acariciando o próprio falo. Deixa bem claro quem estava no comando. Mais uma vez, Benjamín paralisa frente ao poder e gozo do outro.

Esse sentimento de impotência, seguido do assassinato do melhor amigo em seu lugar, leva Benjamín a fugir, deixar a cidade e abrir mao de viver uma relaçao verdadeira com a mulher amada. Muitos anos depois volta com o objetivo de escrever um livro baseado nesse caso que afetou de forma tao intensa sua vida. Como nesses anos de reclusao, Benjamín teve uma vida superficial, casado com uma mulher que nao amava e trabalhando em algo que nao o realizava, quer agora saber como os outros personagens haviam levado adiante suas vidas.

Procura Morales interessado em saber como o viúvo havia conseguido viver uma vida cheia de nada, sem o objeto de seu desejo. Morales, por sua vez, lhe dá duas versoes de como poderia ter preenchido esse vazio, mas Benjamín acaba descobrindo que, na realidade, ele havia sequestrado Gomes e cumprido o que considerava justo: prisao perpétua para o assassino. A cena de Morales alimentando Gomes em seu cativeiro privado impacta o espectador e faz surgir a questao: prisao perpétua para quem? Ambos estao com suas vidas aprisionadas.


O TRAUMA: QUANDO O OLHAR NAO PODE SER SIGNIFICADO

O estupro seguido de morte de Liliana, que fez com que esses três personagens soubessem da existência dos outros, foi um evento traumático que despertou sentimentos e reaçoes distintas em cada um, mas com uma intensidade capaz de mudar o rumo da vida de todos.

Freud, em A ansiedade e a vida instintual12, diz que nao é o fato em si que causa um trauma, mas sim a excitaçao intensa, sentida como desprazer e impossível de dominar, que a situaçao de perigo imprime à experiência mental. "É apenas a magnitude da soma de excitaçao que transforma uma impressao em um momento traumático, paralisa a funçao do princípio de prazer e confere à situaçao de perigo a sua importância". Assim, esse evento provocou uma quantidade de excitaçao que dois dos personagens nao conseguiram descarregar, mas que o agressor, apresentado como perverso, descarregou plenamente. Talvez por essa razao Morales nao tenha suportado a visao de Gómez livre, gozando de prestígio, enquanto ele continuava preso a essa intensa excitaçao sem permitir-se prazer.

Freud13 utiliza a metáfora do cristal para exemplificar o efeito do trauma no indivíduo. O bloco mineral cuja forma é cristalizada possui, dentro de si, linhas invisíveis no estado de equilíbrio normal, mas que determinam o padrao de fragmentaçao caso seja submetido a algum impacto significativo. Essas linhas de clivagem originais e imutáveis definem a estrutura interna do mineral. Da mesma forma, o indivíduo, quando submetido a fortes pressoes, vai reagir conforme a singularidade da sua estrutura de personalidade.

No caso do homem dos lobos, os sintomas fóbicos e obsessivos apareceram quando, aos quatro anos, a excitaçao que o menino estava vivendo se somou à de ter visto a cópula dos pais quando ainda era um bebê. No filme, a excitaçao provocada nos personagens pela cena do crime pode ter se somado às fantasias sadomasoquistas da cena primária.

Em funçao do excesso de excitaçao decorrente do estupro associado à cena primária cada personagem apresenta sintomas diferentes. Benjamín fica paralisado, reprimindo a excitaçao, sem reaçao. Morales a canaliza na tentativa de prender "o pai", que nao pode ficar solto enquanto ele tem de reprimir os seus desejos sádicos. Gómez, por sua vez, ocupa o lugar do "pai" e mata a "mae", gozando a descarga dessa excitaçao num prazer intenso que o liberta. Por inveja dessa liberdade Morales necessita aprisionar Gómez, pois, como descreve Bergeret6, "a relaçao de objeto do modo obsessivo consiste em manter o outro em uma situaçao em que se encontre dominado e esterilizado, nem perto (perigo que ele domine), nem longe demais (perigo de perdê-lo)".


A COMPREENSAO DINAMICA COMO FORMA DE SIGNIFICAR O OLHAR

Ao encontrar o cativeiro criado por Morales, Benjamín presencia a cena em que o viúvo, silenciosamente, alimenta o prisioneiro. Gómez, ao perceber a presença de Benjamín, em vez de pedir que o liberte, implora que fale com ele, pois durante todos esses anos seu carcereiro o privou da palavra. Gómez estava, mais do que privado da liberdade, preso pelo olhar do outro.

Para Freud5, em O ego e o id, as percepçoes sensórias seriam mediadoras entre o mundo interno e o externo. Ele entende que "todas as percepçoes que sao recebidas de fora (percepçoes sensórias) e de dentro - o que chamamos de emoçoes e sentimentos - sao conscientes desde o início". Entretanto, ele observa que mecanismos de defesa como a repressao poderiam torná-las inconscientes. Já os processos internos, chamados de processos de pensamento, seriam inconscientes e desconhecidos. Na medida em que os processos internos e as percepçoes reprimidas fossem se ligando a representaçoes verbais correspondentes, tornar-se-iam conscientes. Essas representaçoes verbais seriam resíduos mnêmicos principalmente de percepçoes auditivas e, secundariamente, de percepçoes visuais, como a leitura. Os resíduos mnêmicos ópticos também sao importantes, pois permitem que os processos de pensamento se tornem conscientes através de uma reversao a resíduos visuais. Os sonhos sao um exemplo desse processo, mas pensar em figuras é um modo incompleto de tornar consciente um pensamento, pois as figuras expressam apenas o tema geral concreto. A revelaçao das relaçoes entre as imagens só pode ser feita através de representaçoes verbais.

Partindo dessas constataçoes, Freud desenvolveu um método terapêutico que favorecia que os aspectos inconscientes do aparelho psíquico encontrassem representantes verbais para que, em se tornando conscientes, pudessem ser compreendidos e elaborados. A psicanálise, pela associaçao livre do paciente e a atençao flutuante do terapeuta, proporcionaria o restabelecimento de um equilíbrio mental saudável. A resoluçao do conflito, operada pela superaçao das resistências, modificaria de forma permanente a vida mental do paciente, prevenindo novas possibilidades de adoecer14. Por meio da transferência, o conflito seria reeditado, permitindo que a libido, até entao reprimida no caso do neurótico, possa estar à disposiçao do ego para unir-se a novos objetos.

Assim como a visao da cena do estupro seguido da morte de Liliana reeditou a fantasia da cena primária para Benjamín, a cena do encontro com Gómez e Morales pode ter possibilitado o insight de seu conflito neurótico. Metaforicamente, Gómez representa as pulsoes submetidas à repressao por um superego sádico representado por Morales, conflito esse que, ocorrendo dentro do ego, paralisa Benjamín. Talvez o segredo dos olhos seja essa impotência da elaboraçao, ser vulnerável ao estímulo visual, mas sem a capacidade de compreender as relaçoes envolvidas nessa visao. O pedido de Gómez foi revelador e libertador: "Fale comigo". Benjamín pôde considerar outra relaçao com a pulsao reprimida que nao significasse torná-la real, libertá-la, mas, sim, torná-la passível de ser representada em palavras.

Essa compreensao permitiu que Benjamín nao mais temesse o amor (TEMO - TE AMO) e pudesse procurar a mulher amada.

A porta pôde entao ser fechada.


REFERENCIAS

1. Verbete. In: Houaiss A. Vilar, MS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. P.1576.

2. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

3. Site disponível em http://www.sboportal.org.br/glossário.aspx. Acesso em 03 de junho de 2014.

4. Freud S. História de uma neurose infantil e outros trabalhos (1918). v. 17

5. Freud S. O ego e o id (1923). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976. v. 19, p. 13-83.

6. Bergeret J. Personalidade normal e patológica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.

7. Freud S. Algumas ideias sobre desenvolvimento e regressao (1916). In: Ediçao standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976. v. 16, p. 397-417.

8. Freud S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Ediçao standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976 v. 7, p. 135-175.

9. Mabilde L. C. Três descobertas fundamentais sobre a sexualidade. In: Ferro A, Faria CG, Eizerik CL, Birksted-Breen D, Person ES, Nogueira JA,... et al. Psicanálise e Sexualidade: tributo ao centenário dos três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905-2005). Sao Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

10. Dor J. Estrutura e perversoes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

11. Freud S. O instinto e suas vicissitudes (1915). In: Ediçao standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976, v. 14, p. 137-162.

12. Freud S. A ansiedade e a vida instintual. (1933). In: Ediçao standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976, v. 22 p. 103-138.

13. Freud S. A dissecçao da personalidade psíquica (1932). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1979, p 75-102.

14. Freud S. Terapia analítica (1917) In: Ediçao standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v. 16, p. 523-539.










Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica pelo Centro de Estudos Luís Guedes (CELG) (psicóloga)

Instituiçao: CELG - Centro de Estudos Luís Guedes, Porto Alegre/RS

Correspondência
Cibele Denise Weide Acosta
Rua Ramiro Barcelos, 1853/122
90035-006. Porto Alegre, RS
cibele_acosta@hotmail.com

Submetido em 16/09/2013
Devolvido ao autor em 21/11/2013
Retorno do autor em 25/11/2013
Aceito em 29/11/2013

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo