Rev. bras. psicoter. 2013; 15(3):42-52
Acosta CDW. Que segredos guardam seus olhos: a questao do olhar em Freud. Rev. bras. psicoter. 2013;15(3):42-52
Artigos Originais
Que segredos guardam seus olhos: a questao do olhar em Freud
What secrets do her eyes keep: the question of the look in Freud
Cibele Denise Weide Acosta
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A arte imita a vida, ou a vida imita a arte? Independente de quem for o sujeito, a açao envolvida é a de imitar, que significa "reproduzir à semelhança de", "copiar", segundo o dicionário Houaiss1. Quando a arte imita a vida, ela brinca com a liberdade poética do "como se". Ela é como se fosse a vida, mas nao é, da mesma forma que a menina coloca o sapato da mae e age como se fosse a mae, sem ser a mae. Esse espaço que se forma entre o eu e o nao eu é o que Winnicott2 chamou de espaço transicional, um espaço criativo que permite que se experimente o mundo de uma forma lúdica, favorecendo a aprendizagem. Nesse espaço, em parte real e em parte ilusório, o indivíduo testa, de forma prazerosa e num ambiente protegido, as novas percepçoes e conhecimentos adquiridos.
O objetivo deste trabalho é ilustrar, associar e referenciar conceitos básicos de Psicodinâmica a partir de uma análise do filme O Segredo dos Seus Olhos, de Juan José Campanella. Entremeando descriçoes de personagens e cenas do filme, serao tratados temas como estruturas psíquicas, mecanismos de defesa, formaçao de sintomas, cena primária, trauma e desenvolvimento da libido infantil, entre outros, sob a perspectiva da teoria freudiana. Visa-se, com isso, a realizar um exercício lúdico, criativo, sem a pretensao de esgotar o assunto, mas buscando novas associaçoes e hipóteses.
SINGULARIDADES: O OLHAR MATIZADO PELO MUNDO INTERNO
A sabedoria popular diz que "os olhos sao as janelas da alma". Podemos entender essa sentença de várias maneiras. Uma possível leitura seria a de que os olhos, sendo janelas, sao uma conexao entre o interno e o externo, o dentro e o fora, o eu e o outro, o mundo interno e o mundo externo; através deles, os estímulos externos se transformam em internos.
O modo de funcionamento desse portal constituía um mistério nos primórdios da humanidade, e várias hipóteses foram formuladas a esse respeito de acordo com o nível de conhecimento e com a tecnologia de cada época. Na Grécia antiga, período em que os filósofos questionavam o universo e tudo que o constituía, principalmente o homem, acreditava-se que a visao era formada a partir de raios emitidos pelo olho: os raios projetavam-se, iluminavam o objeto e, na volta, eram decodificados pelo cérebro. Já no Renascimento, período posterior à Idade Média e no qual a ciência evoluiu muito, Maurolycus e Leonardo da Vinci, pesquisando e desenvolvendo a câmera escura, constataram que a luz dos objetos iluminados pelo sol entrava por um orifício lateral da câmera, formando-se uma imagem invertida ao fundo. Kepler, comparando o olho humano com a câmera escura, concluiu que a retina funcionava como receptor da imagem, e a lente e a córnea, como meios de refraçao. Nos dias de hoje, podemos ler no site da Sociedade Brasileira de Oftalmologia que a funçao básica do olho é "captar a luz originada nos objetos que nos cercam, fazendo-a ser focalizada no plano posterior do globo. Aí é transformada em impulsos eletromagnéticos, transmitidos pelo nervo óptico e vias ópticas, até os centros visuais cerebrais. Nestes centros, se dá a percepçao visual, com o reconhecimento da imagem e a localizaçao do objeto focalizado"3.
Dado que as pessoas de visao normal formam a imagem nos centros visuais cerebrais da mesma maneira referida acima, por que, entao, os relatos de pessoas que presenciaram uma mesma cena sao diferentes ainda que o processo da visao e os objetos sejam os mesmos?
Talvez a resposta para essa pergunta seja: porque as pessoas nao sao as mesmas. Nao basta ver, ter o sentido da visao: é necessário dar um significado ao que se vê, e os variados relatos representam os diferentes significados que pessoas distintas dao aos mesmos fatos. O olho pode ser o mesmo, mas o olhar nao. Iniciou-se falando dos olhos como janelas da alma, como um portal entre o mundo interno e o externo. Entao, se todos de certa forma compartilham o mesmo mundo externo, a diferença e a singularidade do olhar devem residir no mundo interno.
Vários pensadores importantes pensaram de diferentes formas o funcionamento psíquico do indivíduo. Como seria ver o filme O Segredo dos Seus Olhos pela visao de conceitos clássicos desenvolvidos pelo olhar pioneiro de Freud?
O SEGREDO DOS SEUS OLHOS: NECESSITANDO ENXERGAR PARA DECIFRAR
No filme de Campanella, O Segredo dos Seus Olhos, um mesmo fato marca de forma distinta a vida de três personagens masculinos: um estupro seguido de morte. O funcionário público Benjamín Espósito passa a investigá-lo e entra em contato com o marido da vítima e também com o assassino.
Ao chegar à cena do crime, Benjamín fica impactado com o que vê. A cama, a mulher nua, o sangue por todo lado indicavam a brutalidade do ato. Por um tempo fica paralisado, como que identificando e reconhecendo cada aspecto da situaçao. É como se a visao dessa cena abrisse uma janela que permitisse ao personagem contemplar sem necessariamente fazer par te dela. Se, num primeiro momento, nao queria acompanhar o caso, agora ele necessita investigá-lo.
A associaçao entre olhos e janelas também pode ser encontrada no caso do homem dos lobos, de Freud4. Nesse caso, um jovem paciente relata a Freud um sonho que tivera antes do quarto aniversário, no período em que ocorrera uma primeira crise na forma de uma histeria de angústia, que, mais tarde, transformou-se numa neurose obsessiva de conteúdo religioso e que perdurou até os dez anos, quando desapareceu espontaneamente. Aos 18 anos, a saúde do paciente tinha sofrido um abalo como consequência gonorreia infecciosa, deixando o jovem inteiramente incapacitado e dependente de outras pessoas. Algum tempo depois disso, ele entrou em análise com Freud.
O sonho dos lobos foi descrito da seguinte forma:
"Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama... De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas, e orelhas empinadas, como caes quando prestam atençao a algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei" (p. 45).Durante o tratamento, Freud e seu paciente trabalharam esse sonho até que, certo dia, o jovem disse que achava que a parte de seu relato "de repente a janela abriu-se sozinha" deveria significar "meus olhos abriram-se de repente". O processo de inversao havia transformado olhos em janelas. Na sequência da análise, eles foram identificando que um violento movimento havia acordado o menino e chegaram à hipótese de que, na idade de um ano e meio, quando, por estar sofrendo de malária, estava dormindo no quarto dos pais, ele teria visto a cópula vis a tergo dos pais. Como um bebê dessa idade nao tem maturidade sexual para entender o que vê, essa cena ficou guardada até que, com a idade de quatro anos, devido à sua excitaçao e pesquisas sexuais, o paciente fora capaz de compreender o que havia observado em tao tenra idade. O coito fora entao entendido como uma agressao do pai numa relaçao sadomasoquista, e presenciar o ato havia provocado uma excitaçao sexual na criança que a levara à angústia de castraçao. O menino, que estava se encaminhando para a fase genital de desenvolvimento, regrediu ao estágio mais primitivo da organizaçao anal-sádica à que corresponde propósito masoquista de ser espancado ou castigado.
"Que ganho se der quatro tiros nele? Eu iria para a prisao pelo resto da minha vida. Gómez cairia no chao e estaria livre de tudo isso e eu passaria cinquenta anos preso com inveja da sorte dele. Nao, para mim a prisao perpétua estaria bem."Após a prisao do assassino, tudo volta a uma aparente normalidade, até que Gómez é visto na televisao nao somente livre, mas gozando de posiçao privilegiada. Frente a isso, Benjamín decide enfrentar o responsável por libertar o prisioneiro: um antigo desafeto seu que agora goza de posiçao influente no governo. Nesse encontro, Benjamín é humilhado na frente de sua amada, escuta que é um zé-ninguém, um simples funcionário público sem berço e sem poder nenhum. Para completar, ao descer pelo elevador, Gómez se junta a eles e exibe todo o seu poder, a sua "nao castraçao", manuseando a sua arma como se estivesse acariciando o próprio falo. Deixa bem claro quem estava no comando. Mais uma vez, Benjamín paralisa frente ao poder e gozo do outro.
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