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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2013; 15(3):99-108



Artigos Especiais

A história "fática"*

The "factual" history*

Eneida Iankilevich

Resumo

O que o paciente conta é a versao do fato vivenciado que lhe é acessível, a resultante da complexa vivência de um acontecimento e das emoçoes desencadeadas por essa vivência, inevitavelmente tecidas de acordo com as características de personalidade do paciente, sua história pessoal e o momento em que o fato é contado. A partir dessa concepçao, a autora procura refletir sobre a difícil questao da realidade ("fática") na história do indivíduo e na prática da clínica psicanalítica e psicoterápica de orientaçao psicanalítica. A autora buscou publicaçoes da produçao local sobre o tema. Os conceitos relativos à "história" sao examinados à luz de noçoes do historiador Ignacio Lewkowicz. A autora utiliza algumas situaçoes de sua prática clínica como eixos organizadores de seu pensamento. O que é estudado aqui nao sao aspectos específicos de cada paciente, mas acontecimentos do campo psicoterápico que permitem pensar a questao do objetivo/subjetivo em tratamentos psicodinâmicos. Aspecto essencial do "fato" em psicoterapia de orientaçao analítica e em psicanálise diz respeito ao que acontece no encontro, no campo, na relaçao paciente/terapeuta. Do entretecer e articular dos "fatos" vai sendo construída a história do indivíduo. O tratamento psicodinamicamente orientado visa a ampliar a capacidade do indivíduo de perceber suas limitaçoes em relaçao a essas possibilidades infinitas de articulaçoes que o tornam um ser único, com uma história própria. É nesse encontro terapêutico que as versoes imobilizadoras, resultantes de versoes únicas, excludentes, podem ser reconhecidas e questionadas. O trabalho psicodinâmico pode se constituir em um segundo momento, compartilhado, que age sobre as versoes impeditivas, abrindo possibilidades de pensar de outra maneira os "fatos" antes inquestionáveis para, com isso, construir a possibilidade de acontecer história onde acontecia repetiçao.

Descritores: Psicoterapia psicanalítica; Psicanálise; História; Fato.

Abstract

What the patient tells is the version of the fact lived through, accessible to him, the result of the complex experience of an event and the emotions triggered by this experience, inevitably woven according to the characteristics of the patient's personality, his personal history and the moment the fact is told. Based on this concept, the author seeks to reflect on the difficult question of reality ("factual") of the history of the individual and the practice of psychoanalytic clinic and psychoanalytically oriented psychotherapy. The author sough for publications of the local production on the topic. The concepts relating to "history" are examined in the light of notions of the historian Ignacio Lewkowicz. The author uses some situations of her clinical practice as organizer axes of her thought. What is studied here are not specific aspects of each patient, but events of the psychotherapeutic field for considering the question of the objective / subjective in psychodynamic treatments. Essential aspect of the "fact" in psychoanalytic psychotherapy and psychoanalysis with regard to what happens at the meeting, in the field, in the patient / therapist relationship. From the interweaving and articulating of the "facts" the history of the individual begins to be constructed. The psycho-dynamically oriented approach aims to increase the individual's ability to perceive his limitations in relation to those infinite possibilities of articulation that make him an unique being with his own history. It is in this therapeutic encounter that the immobilizing versions, resulting from single, excluding versions, can be recognized and challenged. The psychodynamic work may constitute, in a second stage, shared, that acts on impeditive versions, opening up possibilities for thinking in another way "facts", that before were unquestionable, to thereby construct the possibility of history taking place, where repetition took place.

Keywords: Psychoanalytic Psychotherapy; Psychoanalysis; History; Fact.

 

 

INTRODUÇAO: A QUESTAO DO FATO

O que será a "história fática" sobre a qual devo falar neste simpósio? Isso existe, quando se pensa a história subjetiva, específica daquele sujeito, que, afinal, é a que buscamos escutar em psicanálise e psicoterapia de orientaçao analítica? Estamos nos perguntando sobre a realidade, com suas inevitáveis implicaçoes filosóficas? Essas sao algumas das perguntas que logo me fiz. Os questionamentos e reflexoes desencadeados por um convite para participar de um evento como este sao, certamente, uma das razoes do interesse que temos em participar e do apreço pela convocaçao recebida.

O que logo me ocorreu, a respeito dessas questoes, foi um ensinamento de um professor, Flavio Rotta Correa1, durante um seminário que ele coordenava quando eu estava em formaçao analítica. Contou esse professor que lhe fora solicitada uma palestra para profissionais da polícia que trabalhavam com ocorrências. Flavio levou uma foto ampliada (um pôster) de uma cena de rua. Deixou que os participantes observassem aquele quadro durante alguns minutos, findos os quais o retirou. Pediu, entao, que lhe descrevessem, um a um, o que haviam visto. As respostas foram todas diferentes em alguma medida, o que possibilitou ao palestrante chamar a atençao dos presentes para a subjetividade da lembrança de uma cena observada, destacando, ainda, que a cena que lhes fora apresentada era uma cena estática, que se mantinha idêntica, e que eles puderam observar por alguns minutos. Era uma foto e, portanto, menos capaz de desencadear emoçoes muito fortes. As ocorrências com que os policiais efetivamente trabalhavam eram de acontecimentos muito intensos, desencadeadores de reaçoes emocionais de grande magnitude, e que aconteciam em fraçoes de minutos, em situaçoes dinâmicas que nunca se mantinham iguais. Com essa abordagem, o professor Flavio pretendia alertar aqueles profissionais quanto às dificuldades dos testemunhos e para que pudessem pensar que as pessoas talvez relatassem o que lhes era acessível.

Esse ensinamento, que nunca esqueci relato de memória, sendo inevitável que seja o relato (testemunho) de minha versao sobre um "fato" que me marcou durante minha trajetória como aluna de seminários na SPPA, de 1988 a 1991, e, portanto, inexato. Tendo essa restriçao em mente, acredito poder utilizar a experiência relatada pelo meu professor e minha concepçao a partir desse relato como guia nestas minhas reflexoes. Em outras palavras, penso estar afirmando meu vértice de observaçao até onde possa conhecê-lo no momento: o fato que nos conta o paciente é a versao que lhe é acessível, a resultante da complexa vivência de um acontecimento e as emoçoes desencadeadas por essa vivência, inevitavelmente tecidas de acordo com suas características de personalidade, sua história pessoal e do momento em que nos contam.

Pretendo, nesta apresentaçao, refletir, a partir desse vértice que privilegio, sobre a difícil questao da realidade na história do indivíduo e na prática clínica psicanalítica e psicoterápica de orientaçao psicanalítica. Para fins deste trabalho, portanto, nao me deterei nas diferenças dessas abordagens, por considerar que a escuta dos fatos a partir da subjetividade do sujeito é comum a ambas e as diferenças técnicas extrapolam o alcance do presente texto.


EM BUSCA DE REFERENCIAS

Acredito ser uma das funçoes e utilidades maiores da psicanálise e da psicoterapia de orientaçao analítica justamente a de procurar tornar reconhecível para o paciente sua tendência a construir um tipo específico de entendimento ante qualquer experiência. Se o conseguirmos - e isso só será possível num trabalho conjunto com nosso paciente -, contribuiremos para que amplie sua capacidade de pensar e se conhecer, admitindo experiências e acontecimentos diversificados e podendo reconhecer em si condiçoes de viver o novo e, portanto, viver mais rica e criativamente. Assim os fatos tornam-se experiência construtora da história que dá sentido a nossas vidas, tornando-nos indivíduos.

Com isso em mente, pensei em buscar o que existe, em nossa produçao local, sobre o tema. Pesquisando na Revista Brasileira de Psicoterapia, que considero representativa do pensamento de nosso grupo, encontrei vários trabalhos. Em 2000, Clarice Kowacs2, a partir de um conto de Cortázar, estuda a literatura como forma de expressar conflitos na tentativa de elaborá-los. Ao fazê-lo, reflete sobre a questao do "fato", da necessária luta pela conquista da possibilidade de encontro e reconhecimento do que é objetivo, alheio ao indivíduo, talvez na linha do que Winnicott3 descreve como o caminho do objeto subjetivo ao objetivamente percebido. Dal Zot4, em 2002, escreve sobre a doença física do terapeuta. Em 2003, Schestatski et al.5 pesquisam a vulnerabilidade do terapeuta (situaçoes traumáticas no campo terapêutico). Arruda e Carneiro6, em 2006, pensam sobre crianças e terapeutas que adormecem na psicoterapia. Vários trabalhos referentes ao tema sao encontrados na Revista de 2007: Schneider7 escreve sobre as especificidades do trabalho psicoterápico em cidades pequenas; Schestatski8, sobre o setting com pacientes difíceis; Escobar9, sobre pacientes que apresentam doenças somáticas graves; Vasconcellos10, sobre situaçoes especiais na vida do terapeuta; Saffer e Isolan11, sobre a questao dos honorários; Iankilevich12, sobre a realidade invadindo o campo psicoterápico. Mondrzak13, sobre neutralidade, conta do aparecimento de uma barata no consultório durante uma sessao. Em 2008, Eizirik14 refere o impacto da cultura na psicoterapia. Bornholdt15 escreve sobre a questao do seguro saúde no pagamento de psicoterapia. Em 2010, Tietzmann16 trata de crianças superdotadas.

Dessa breve e limitada revisao pode-se depreender que, ao referirmos "fatos", podemos estar enfocando fatos externos ao campo psicoterápico (cidades pequenas; gravidez -de paciente ou de terapeuta; superdotaçao; tragédias familiares; trabalho com pais; , para dar alguns exemplos); internos, aspectos do campo (adormecimento, atrasos, formas de pagamento...); do paciente (doença física, superdotaçao...); do terapeuta (momento da vida, doença física...); do campo (cultura...). Todos esses acontecimentos passam a ter significado quando se tornam experiências do e no campo psicoterápico. A barata que se fez presente no consultório poderia ter sido apenas um encontro inconveniente, mas se tornou possibilidade de aprendizado e desenvolvimento quando consideradas as reaçoes desencadeadas por seu aparecimento em paciente, terapeuta, na dupla.


FATO E HISTORIA

A especificidade do encontro psicoterápico de orientaçao analítica e da psicanálise, a meu ver, reside justamente na busca do significado dos "fatos" à luz da subjetividade de cada um. A vivência dos "fatos" no campo psicoterápico e psicanalítico, a busca de transformaçao dessas vivências em compreensao, conhecimento, conta da história, possibilita a construçao da história individual. O que é o fato? O que é a história? Sao perguntas que naturalmente aparecem a partir do que está sendo dito.

Em um trabalho de minha autoria12 publicado em nossa revista apresento aspectos do atendimento psicoterápico de um menino de sete anos que presenciou o próprio pai assassinar a mae e a avó e, a seguir, suicidar-se com a mesma arma. Talvez tenha sido a situaçao real externa mais trágica que já atendi. Foi um processo muito difícil: o menino nao me olhava, nao falava comigo, nao brincava nas sessoes. Ficava ali, sentado diante de mim, olhos baixos, sem se mover. Nao é difícil imaginar como eu me sentia. Impactada pela violência do acontecimento que me fora relatado pelos tios que passaram a ser cuidadores da criança, sentia profundamente o horror que ele devia viver. Perguntava-me como sobrevivia, continuava indo à aula, convivendo, dormindo, comendo. Acredito que o relato de sua história foi traumático também para mim. E havia toda a situaçao atual: os tios que o abrigaram, irmao e cunhada da mae, tinham seus próprios filhos e haviam sido atingidos diretamente pelos assassinatos. O tio perdera mae e irma. Inevitavelmente, meu paciente era o filho do assassino e, contra todo o desejo e esforço desses admiráveis tios que modificaram suas vidas e a de seus filhos para receber o menino e seus irmaos, identificavam-no com o pai assassino. Até porque a atitude do menino, reservado, fechado em si mesmo, oposicionista, contribuía para tal. Nas sessoes, nao me parecia estar conseguindo contato com ele. A atitude descrita nao se modificava. Estou falando de meses. Ele estava, porém, sempre presente e era muito pontual. Certo dia, dirigi-me à porta para buscá-lo, e ele nao estava. Surpreendeu-me a força de minha surpresa e da emoçao desencadeada em mim. Nesse estado emocional deixei a porta entreaberta** e fiquei na sala, acredito que esperando por ele. Algum tempo depois ouvi um som, como que um gemido abafado. Levantei, fui até a sala de espera, aí encontrando meu paciente, chorando baixinho encostado ao marco da porta.

Ao ver-me, abraçou-se em mim (na altura da cintura, onde alcançava) murmurou1: "achei que nao estavas!", sempre chorando baixinho. Ficamos assim algum tempo. A emoçao que me invadiu ainda sou capaz de sentir. Lentamente pude compreender que se atrasara e, ao chegar, imaginara nao me encontrar. O trabalho com o menino seguiu por longo tempo, sem grandes modificaçoes aparentes. Mas algo acontecera: acredito que a realidade da vivência impossível de ser sentida se tornou presente na ameaça de nao acontecer nosso encontro na sessao. E essa ameaça foi vivida com uma violência que remetia à violência do trauma que o atingira (e que ainda considero inapreensível) numa dimensao diferente, abrindo, assim, a possibilidade de um sentido, algum sentido, ser construído. E, com isso, começar a sair da imobilidade que o protegia, mas impedia a vida.

Quando a realidade invadiu o campo? Quando eu conheci a história? Quando o silêncio imperava e eu me desesperava? Quando meu paciente achou que eu nao estava e, ao me encontrar esperando por ele, pôde me abraçar e chorar?

O que é fato? O que é história? Penso que, talvez, o fato do atraso, desencadeador da vivência de perda, começou a tornar história o que era até entao apenas trauma, impedimento. História construída na relaçao terapêutica, história que criou sentido para o trauma, história que permitiu pensasse seu lugar na tragédia, pudesse iniciar o doloroso processo de discriminaçao do que se passara, com todos os desdobramentos decorrentes. História que lhe devolveu a humanidade.


O FATO (E O "NAO FATO") NO PROCESSO PSICOTERAPICO

O campo construído no encontro psicanalítico e psicoterápico (desta orientaçao) utiliza os fatos para pensar o indivíduo em sua história. Os fatos tornam-se "outros fatos". Ilustrarei essa afirmaçao através da vivência do que passamos a chamar "o fato do nao fato", que muito ensinou a mim e à paciente a que me referirei. Essa era uma moça extremamente perfeccionista e exigente, constantemente insatisfeita e brigando com os que lhe eram próximos, impedida de estabelecer relaçoes duradouras ou mais profundas. Consigo mesma, a exigência era impeditiva de qualquer bem-estar. Numa ocasiao, diferentemente do que me é habitual, atrasei-me em torno de dez a quinze minutos. Fernanda, como a chamarei, nao fez qualquer referência a isso e iniciou a sessao contando mais um desentendimento no trabalho. A chefe "mais uma vez" fora despótica, e errada, insistindo numa conduta prejudicial. Fora ela, "mais uma vez", quem tivera de intervir, pois os colegas nao diziam nada, etc., etc. Depois de ouvi-la por algum tempo, assinalei estranhar que nada falara do meu atraso. Fernanda aparentemente desconsiderou o que eu dissera e, quando insisti, "encerrou o assunto" afirmando ter sido tao pequeno o meu atraso que nem deveria ser considerado, voltou, entao, ao que dizia. Afirmei nao ser isso verdade, eu efetivamente me atrasara, ao que ela repetiu ter sido um tempo tao pequeno que nao poderia ser considerado. Mostrei sua impossibilidade de admitir a realidade de meu atraso, que de fato acontecera. "O que sao quinze minutos?", disse a paciente, tentando retomar o fio daquilo que vinha contando. Perguntei se nao estaria nos contando seu receio de, ao admitir meu erro (afinal, eu me atrasara efetivamente, o que nao deixa de ser um erro), sentir que eu me tornava alguém como a chefe, nao confiável e, com isso, tornar inviável nossa relaçao. Depois de um silêncio, Fernanda pareceu surpresa e perguntou (pareceu-me estar quase "exclamando") se isso nao fazia pensar ser possível haver "erros e erros". As reflexoes desencadeadas levaram ao reconhecimento de sua necessidade de um mundo sem frustraçoes e ao questionamento disso, contribuindo para uma nova concepçao de sua história, com isso promovendo desenvolvimento, mudança, abertura para uma "outra" história de vida.

De acordo com Ignacio Lewkowicz17, historiador argentino, na noçao tradicional, "história" é o desdobramento do que estava contido nos começos, é passagem ao ato ou atualizaçao do que está em potência nos começos. Trabalha a noçao de historizaçao, um processo ligado à história da subjetividade.

Para compreender esse conceito faz-se necessário pensar dois instantes, 1 e 2. Na noçao tradicional de história, o instante 2 sucede ao instante 1, colocando em açao o que estava em potência. Na concepçao pós-moderna, há um tempo de substituiçao: o instante 1 nao detém mais as chaves do instante 2. Teríamos sempre instante 1, cada instante sendo um novo instante, porque nunca "historiza", no sentido de que há sempre uma só marca. Observe-se que, num certo sentido, na posiçao 1 também acaba havendo apenas instante 1, na medida em que a marca 2 é apenas desdobramento da marca 1.

Para esse historiador, a segunda marca historiza somente se é inscrita depois (em sucessao a) de uma primeira, mas alterando-a: "Quer dizer, nao vem a repetir nem a eliminar, mas vem alterar a primeira. O que aparece aqui nao é a realizaçao do que em 1 era potência, mas sim que algo ocorre em 2 que faz com que 1 perca sua onipotência, perca sua capacidade de totalizaçao, perca sua hegemonia, perca sua capacidade integral de significar tudo. Distintas maneiras de dizer que 2 tem sua eficácia crítica sobre 1, ou que suplementa 1, nao complementa, nao vem agregar o que faltava, mas vem introduzir um termo complementar, quer dizer, vem a introduzir algo que destotaliza, indo mais além do que era: somente aqui haveria historizaçao" (1999, grifos meus).

Utilizando esses conceitos com alguma liberdade de transposiçao, mesmo levando em conta os inevitáveis erros decorrentes, podemos pensar que Fernanda, quando reconheceu sua recusa em admitir meu erro (instante 2) pôde questionar sua posiçao (instante 1), "historizando" suas dificuldades. Assim também podemos entender que o atraso de meu paciente menino, com o terror de nao me encontrar (me perder), pode ser considerado o instante 2 que faz com que o instante 1 "perca sua hegemonia, perca sua capacidade integral de significar tudo", abrindo caminho a uma dura, mas necessária, historizaçao que o obriga a enfrentar um horror inimaginável, mas abre caminho para existir além do sentimento de culpa, além do aprisionamento em identificaçoes alienantes, abre caminho a que possa viver.

E, nessa concepçao, também podemos redescobrir Freud18, que descreveu o mecanismo que denominou nachträglichkeit (a posteriori) e que, segundo Laplanche e Pontalis19, "começa por impossibilitar uma interpretaçao sumária que reduzisse a concepçao psicanalítica da história do indivíduo a um determinismo linear que considere apenas a açao do passado sobre o presente" (p. 442). Preocupaçao que, desde Freud, leva em conta a complexidade da tarefa psicoterápica.


CONCLUSOES: FATO E HISTORIA EM PSICANALISE E EM PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇAO ANALITICA

Um aspecto essencial do "fato" em psicoterapia de orientaçao analítica e em psicanálise é que acontece no encontro, no campo, na relaçao paciente/terapeuta somente nesse contexto podendo ser instante 2 que age sobre o instante 1, construindo história.

Aprendi isso na prática clínica, especificamente no trabalho com Maria. O tratamento de Maria foi muito longo e difícil, exigindo de nós duas coragem, persistência, tolerância a frustraçoes. Quando chegou, a paciente, entao uma adolescente de uns 15 anos, quase nao tinha vida social. Costumava ficar em casa, em geral no seu quarto, em silêncio. Nao gostava de ler ou ouvir música, via pouca televisao, quase nao usava recursos tecnológicos, que lhe eram acessíveis. A investigaçao diagnóstica afastou doença psiquiátrica (pedi também a um colega de outra orientaçao teórico-técnica que a avaliasse, temendo ser perturbada por minha escuta predominantemente psicanalítica. Houve coincidência em nossos diagnósticos). Filha única, vivia com seus pais, "muito ligada a eles". Nao faziam as refeiçoes juntos, sempre fora assim. Os pais trabalhavam muito, e Maria ficando a maior parte do tempo só. Uma preocupaçao dos pais era a independência da filha: temiam que se tornasse "incapaz". Da mesma forma, acreditavam que o casal deveria manter a uniao. Assim, desde que Maria completara um mês, deixavam-na com os avós maternos nas sextas-feiras, buscando-a nas segundas. Isso durou até os oito anos da menina, quando ela começou a recusar-se a ficar nos avós. Em funçao disso, começaram a deixá-la sozinha em casa, estimulavam a solidao, considerada por eles prova de capacidade. Muito tempo foi necessário para começarmos a encontrar Maria, o indivíduo, a moça assustada e infeliz, impossibilitada de saber de si mesma. Ao longo desse longo e difícil processo, muito mudou na vida da paciente. Em determinado momento, as brigas com os pais, que começaram a acontecer, fez com que eles exigissem a suspensao do tratamento. Maria enfrentou-os, aceitando usar sua própria mesada para poder continuar. Com o passar do tempo, foi possível fazer os pais compreenderem como o que lhes parecia sinal de ruptura era sinal de aproximaçao. Muitos momentos difíceis, dos quais esse é um modelo, aconteceram. E sempre pudemos manter o setting e prosseguir com o trabalho. Entao, um dia, muitos anos passados, abri a porta e encontrei Maria desorganizada como estivera em suas primeiras sessoes, mal podendo falar comigo. Muito abalada e sem saber o que fazer, como entender o que se passava, tentei falar com ela, que se recusava até a entrar na sala de atendimento. Na sala de espera, pude compreender que me perguntava se o nome da paciente que acabara de sair era o que dizia. Em grande agitaçao, insistia que a conhecia precisava saber se era ela. Sem compreender o que acontecia, consegui entrar na sala de consultas com Maria. Ela mal sentava, agitando as maos, retorcendo-se. Insistia em que eu dissesse o nome da paciente que saíra. Diante disso, perguntei-lhe porque, já que afirmava saber precisava que eu confirmasse isso. Maria, entao, contou ser a moça que saíra "uma pessoa que detestava", que o fato de ela sair do consultório me tornava nao confiável, que nao conseguiria ficar, mesmo sabendo que eu nao tinha como saber disso antes. Tentei, em meio ao impacto e a intensos sentimentos de incompreensao, impotência, raiva, injustiça, medo, preocupaçao, mostrar-lhe que eu continuava a mesma, que tínhamos de entender o que se passava. Maria, cada vez mais agitada, dizia saber de tudo isso, mas repetia que "nao ia conseguir". Levantou-se e saiu. Para sempre. Desde entao, tenho procurado alguma compreensao para o que aconteceu. Sou capaz de tecer algumas hipóteses, atribuir algum sentido ao acontecimento. Mas sei que sao apenas conjeturas, tentativas minhas de encontrar algum consolo, talvez. Porque Maria nao está comigo para que essas ideias se tornem verdades ou encaminhem o encontro de verdades.

Maria interrompeu o tratamento: fica um fato, nao acontece história.


REFERENCIAS

1. Rotta Correa, F. Comunicaçao pessoal, 1988.

2. Kowacs C. (2000) Queremos tanto a Glenda: um zoom kleiniano em um conto de Julio Cortázar. Revista Brasileira de Psicoterapia, v. 2 (1), p. 105-119, 2000.

3. Winnicott D. W. (1963) Comunicaçao e falta de comunicaçao levando ao estudo de certos opostos. In: _____ O Ambiente e os Processos de Maturaçao. Porto Alegre, Artes Médicas, 1982.

4. Dal Zot J. Doença física do terapeuta e as dificuldades do seu manejo na relaçao terapêutica. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2002; v. 4 (3), p. 209-214.

5. Schestatsky et al. A vulnerabilidade do terapeuta e seu impacto sobre a funçao terapêutica. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2003; v. 5 (2)

6. Arruda S. L. S.; Carneiro, G. R. da S. Criança e terapeuta adormecem na psicoterapia: relato de casos. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2006; v. 8 (2-3), p. 226-40.

7. Schneider F. M. Neutralidade na prática da psicoterapia de orientaçao analítica em uma comunidade pequena. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2007; v. 9 (3), p. 316-321.

8. Shestatsky S. S. Neutralidade, setting e o paciente difícil. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2007; v. 9 (3), p. 322-331.

9. Escobar J. Repercussoes na neutralidade quando os pacientes apresentam doenças graves. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2007, v. 9 (3), p. 332-340.

10. Vasconcellos M. C. A neutralidade em situaçoes especiais da vida do terapeuta. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2007; v. 9 (3), p.341-349.

11. Saffer P.; Isolan L. R..Honorários em Psicoterapia de orientaçao analítica: uma revisao. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2007; v. 9 (1), p. 59-72.

12. Iankilevich E. A questao da realidade objetiva no tratamento de crianças: reflexoes a partir de um caso. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2007; v. 9 (1), p. 94-105.

13. Mondrzak V. S. Consideraçoes sobre neutralidade. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2007; v. 9 (3), p. 308-315.

14. Eizirik C. L. Distintos cenários, a mesma psicoterapia? Revista Brasileira de Psicoterapia, 2008; v. 10 (2), p. 153-158.

15. Bornholdt I. Idioma, prazo e seguro saúde: mudanças no enquadre. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2008; v. 10 (2), p. 200-208.

16. Tietzmann A. C. A psicoterapia e a construçao do self em crianças superdotadas: retomando o caso Dibbs. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2010; v. 12 (1), p. 71-84.

17. Lewkowicz I. Historización en la adolescencia. Cuadernos de APdeBA, 1999; n. 1, p. 109-126.

18. Freud S. (1919) O Estranho. Ediçao Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.

19. Laplanche J. ; Pontalis J. B. Vocabulário da psicanálise. Lisboa, Moraes Editores, 1976; 3 ed.










Psiquiatra (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS); psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre - SPPA, Associaçao Psicanalítica Internacional - IPA), psicanalista de crianças e adolescentes (SPPA); professora e supervisora do CEPOA e do CAPIA (Centro de Estudos Luís Guedes - CELG)

Instituiçao: Centro de Estudos Luís Guedes (CELG), Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

Correspondência
Eneida Iankilevich
Av. Taquara, 564 sala 206 - Bairro Petrópolis
90460-210 - Porto Alegre, RS
eianki@terra.com.br

Submetido em 26/01/2014
Devolvido ao autor em 12/03/2014
Retorno do autor em 16/03/2014
Aceito em 17/03/2014

*Este artigo é derivado de apresentaçao no XIX Simpósio Interno de Psicoterapia de Orientaçao Analítica, realizado no dia 9 de novembro de 2013 na sede da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

**Quando da apresentaçao desta minha participaçao no simpósio, os colegas chamaram minha atençao para meu movimento de deixar a porta entreaberta. Perguntaram-me se eu costumo agir assim (ao que respondi negativamente), ou se eu fizera de propósito ou me dera conta do ato (o que naquele momento também nao acontecera, até onde posso reconhecer). Sugeriram que já haveria, ali, algum contato estabelecido com o menino sem que eu me desse conta. Penso que essas consideraçoes dos colegas contribuem para a compreensao do caso, enfatizando a construçao inequívoca de um campo do qual nao temos como estar de todo conscientes e de sua influência no trabalho e, por isso, as transcrevo.

 

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