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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2012; 14(2):60-74



Artigos Originais

O Ensino de psicoterapia psicanalítica no departamento de psiquiatria da escola paulista de medicina - Universidade Federal de Sao Paulo - UNIFESP

Psychoanalytic Psychotherapy Teaching in the Department of Psychiatry of the School of Medicine - Universidade Federal de Sao Paulo- UNIFESP

Julieta F. Ramalho da Silva*; Maria Luiza Fiore**; Geraldo C. Galender***

Resumo

Este artigo apresenta o ensino de psicoterapia no Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina - UNIFESP, referindo-se às psicoterapias de base psicanalítica e salientando sua importância na formaçao de residentes de psiquiatria. Apresenta-se, por meio de seu histórico, a herança psicodinâmica deste departamento e intrínseca ligaçao com o programa de residência médica. Sao descritos o conteúdo teórico do curso, o modelo de funcionamento de assistência a pacientes previdenciários e o processo de avaliaçao do ensino nos últimos anos. Esta avaliaçao constitui-se em objeto de pesquisa sobre o ensino de psicoterapia para residentes e estagiários de primeiro e segundo anos, cuja metodologia incluiu a realizaçao de questionário de autoavaliaçao e cadernos de registros de sessoes produzidos por todos os alunos-terapeutas no período de dois anos. Sao apresentadas algumas respostas e trechos de sessoes com reflexoes dos supervisores que mostram o desenvolvimento da dupla psicoterapeuta-paciente. Por fim, comentam-se as limitaçoes e dificuldades dessa tarefa tanto no âmbito das demandas da medicina baseada em evidências, da psiquiatria contemporânea como das diferenças entre ensino e formaçao de psicoterapeutas.

Descritores: psicoterapia psicanalítica, ensino, psicoterapia, avaliaçao de ensino de psicoterapia, residência médica, psiquiatria

Abstract

This study presents the teaching of psychotherapy in the Department of Psychiatry of the Universidade Federal de Sao Paulo - UNIFESP, referring to psychoanalytical psychotherapies and reinforcing its significance in the formation of the psychiatry resident. Through its history, the psychodynamic heritage of this department is presented as well as its underlying connection with the medical residency program. The theoretical content of the course, the government funded health care model and the evaluation process of teaching over the last years are described. This evaluation is a research subject in itself, one about teaching psychotherapy to first and second year medical residents and Psychology trainees using a methodology that includes a selfassessment questionnaire fulfilled and session notes taken by each studenttherapist during a two year period. Some answers and session extracts with reflections by the supervisor are presented to demonstrate the development of the psychotherapist-patient dyad. Finally, limits and difficulties of this task are commented on, both in terms of evidence-based medicine and contemporary psychiatry demands and of differences between teaching and formation of psychotherapists.

Keywords: psychoanalytic psychotherapy, teaching, psychotherapy, psychotherapy teaching evaluation, psychotherapy in psychiatry medical residency

 

 

INTRODUÇAO

O ensino da psicoterapia psicanalítica na universidade é uma forma de divulgaçao e aplicaçao da psicanálise que enfatiza seu vértice terapêutico.

Kernberg propoe uma diferenciaçao rigorosa entre psicanálise clássica, psicoterapia psicanalítica e psicoterapia de apoio fundamentada na psicanálise ao considerar seus objetivos e principalmente as técnicas empregadas em seu processo terapêutico1. Este autor acredita que as técnicas diferenciam realmente as modalidades de tratamento, uma vez que a teoria subjacente é a mesma, incluindo o conceito de inconsciente, as pulsoes agressivas e libido, conflito, mecanismos de defesa, relaçoes objetais internalizadas e organizaçao estrutural e topográfica do aparelho psíquico. O autor diz que, para explorar a questao da relaçao da psicanálise em si com as psicoterapias analíticas, é necessário considerar os planos conceitual, clínico, pedagógico e político1.

A aplicaçao de psicoterapia em programas de residência médica em psiquiatria tem sido tema de discussoes em universidades norte-americanas, canadenses e latino-americanas. No encontro anual da American Psychiatric Association2, foi reconhecida a existência de uma "pressao de mercado" para o treino em farmacologia, para reduzir o tratamento ao uso de uma pílula em detrimento da investigaçao diagnóstica e tratamento mais aprofundado que leva em consideraçao a relaçao médico-paciente em psiquiatria.

Beigel e Santiago3 propoem uma distribuiçao equilibrada entre o ensino de psicoterapia e o de outras práticas, como avaliaçao diagnóstica de pacientes com transtornos físicos e mentais complexos, avaliaçao e manejo de medicamentos, intervençoes em crise e interconsultas. Para os autores, a psicoterapia breve instrumenta o psiquiatra em seu trabalho clínico - garantindo aceitaçao ao medicamento e adesao ao tratamento por parte do paciente -, bem como na assistência à reabilitaçao psicossocial; enquanto a psicoterapia de longo prazo é mais efetiva no ensino do contato psicoterápico. Dentro dessa mesma linha de pensamento, a Associaçao Brasileira de Psiquiatria recomenda que todos os programas de residência em psiquiatria tenham um curso que inclua introduçao à teoria e técnica das principais linhas de psicoterapia e um aprofundamento em uma dessas linhas, incluindo modalidades individuais e grupais, de longo ou curto prazo4.

Gabbard comenta a importância do treinamento dos residentes de psiquiatria em psicoterapia psicodinâmica5. Em 2002, o Comitê de Revisao da Residência em Psiquiatria nos Estados Unidos listou cinco tipos de psicoterapia recomendadas como necessárias no treinamento de todos os participantes dos programas de residência em psiquiatria. Em 2010, esse número diminuiu para três, incluindo a psicoterapia psicodinâmica, cuja eficácia foi confirmada por muitas pesquisas rigorosas surgidas nesse intervalo de tempo. Entre elas, podemos citar os estudos dea) Leichsenring e Rabung6, metanálise atualizada sobre psicoterapia psicodinâmica de longo prazo em transtornos mentais complexos como transtornos depressivos, transtornos de ansiedade, transtorno de personalidade borderline e anorexia nervosa, b) Shedler7, sobre a eficácia da psicoterapia psicodinâmica; e c) Harvard Mental Health Letter8, sobre os méritos da psicoterapia psicodinâmica em que se ressaltao valor das pesquisasmostrando que os benefícios desta psicoterapia aumentam com o passar do tempo.

No Departamento de Psiquiatria da Unifesp o ensino de psicoterapia tem uma longa tradiçao e está intrinsecamente ligado à residência médica em psiquiatria desde os anos de 1970, tendo como referência o método e a teoria psicanalítica.


HISTORICO

A história da psicoterapia em nosso departamento vem acompanhada pela própria história deste. Em 1964, o professor Darcy de Mendonça Uchoa, psicanalista formado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Sao Paulo, foi escolhido para a cátedra de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina e acrescentou ao programa de ensino do curso de graduaçao a teoria do inconsciente. Junto a ele colaboravam vários psiquiatras e psicanalistas que foram responsáveis pela presença da herança psicanalítica em nosso departamento.

Quando foi criada a residência médica em psiquiatria na Escola Paulista de Medicina, no ano de 1973, foi incorporado ao programa o ensino e assistência em psicoterapia. No início, os residentes tinham um curso teórico que versava sobre teoria do funcionamento mental, sonhos, aparelho psíquico, id, ego superego, mecanismos de defesa, ou seja, os fundamentos da psicanálise. A prática ocorria em atendimentos ambulatoriais na modalidade de psicoterapia breve de base psicanalítica tanto para pacientes previdenciáriosquanto para os originários do convênio com a Secretaria de Saúde do Estado de Sao Paulo9.

Em 1984, o programa de residência médica em psiquiatria coordenado pelo Prof. Dr. Ladislau Ungar Glauciusz trouxe uma importante inovaçao, as denominadas "manhas de psicoterapia". Neste programa longitudinal foi possível aos residentes acompanharem seus pacientes por um período de dois anos, em 1 ou 2 sessoes de 50 minutos de psicoterapia de base psicanalítica, supervisionados pelos docentes. Essa mudança atingia dois objetivos, a saber, o ensino da psicoterapia e a constituiçao da identidade do psiquiatra em formaçao. A partir da psicanálise, o que se pretendia era oferecer a possibilidade de o residente experimentar um campo epistemológico diferente do modelo médico positivista; a possibilidade do pensamento psicodinâmico alcançava toda a prática psiquiátrica dos residentes na medida em que valorizava a singularidade e subjetividade dos pacientes10.

Em 1993, foi criado o Setor de Psicoterapia do Departamento de Psiquiatria, que agregava todas as atividades de ensino e assistência em psicoterapia, tanto individual como em grupo, permanecendo o referencial de base psicanalítica. Coordenaram este setor a professora Dra. Julieta Freitas Ramalho da Silva e o Dr. Geraldo Galender. Um grande passo em direçao ao reconhecimento da importância do grupo de psicoterapeutas do departamento foi a criaçao da disciplina de Psicoterapia e Psicodinâmica em 1996.

A partir de 2000 inicia-se a elaboraçao de um projeto de pesquisa temático - Pesquisa em Psicoterapia Psicanalítica: Aplicaçao clínica no atendimento de pacientes e ensino em programas de residência em psiquiatria e especializaçao em psicologia da saúde, - coordenado pela professora Latife Yazigi, Dra. Julieta Freitas Ramalho da Silva, Dra. Norma Lottenberg Semer e Dra. Maria Luiza de Mattos Fiore. Esse programa foi aprovado pela FAPESP em 2002 e, no ano seguinte, o departamento recebeu um espaço próprio na reitoria da Unifesp. Lá foi possível estabelecer-se um ambiente externo acolhedor e personalizado para pacientes, com salas de atendimento individualizadas, com poltronas e divas. Assim, constituiu-se o Centro Clínico e de Pesquisa em Psicoterapia com a missao de desenvolver a assistência, o ensino e a pesquisa em psicoterapia psicanalítica para a comunidade.

Além desse projeto, foram criados no departamento outros programas de ensino e assistência de base psicanalítica como:

1. PAES - Programa de Atendimento e de Estudos de Somatizaçao

2. NAPPED - Núcleo de Atendimento e Pesquisa em Psicanálise e Dor

3. AMBORDER - Ambulatório para pacientes com Transtornos da Personalidade

4. CAPS - Centro de Atençao Psicossocial - UNIFESP

5. LASM - Liga Acadêmica de Saúde Mental



DESCRIÇAO DO PROGRAMA DE ENSINO E ASSISTENCIA DE PSICOTERAPIA PARA RESIDENTES - PROPSIC

Atualmente, o programa de psicoterapia faz parte da grade curricular da residência em psiquiatria e do programa de especializaçao em psicologia da saúde, seguindo a concepçao de multidisciplinaridade do ensino e do trabalho profissional. Comporta carga horária teórica de 72 horas no 1º ano e no 3º ano. A prática de supervisao em grupo, de quatro a sete alunos, ocupa 160 horas em cada um dos dois anos iniciais e mais 80 horas no terceiro ano.

O curso teórico tem como proposta oferecer fundamentos para o manejo da relaçao profissional-paciente e para as intervençoes psicoterápicas. Desenvolve-se, durante o primeiro ano, sob a forma de seminários coordenados por dois professores da disciplina e é constituído por três módulos: noçoes de psicoterapia e psicanálise, de aparelho psíquico e de técnica psicoterápica. No 3º ano, o programa de seminários procura manter o mesmo espírito com dois módulos de ensino: um ligado ao estudo das psicoses e outro, ao manejo de grupos psicoterápicos.

Quanto às noçoes de psicoterapia e psicanálise, enfatiza-se, a partir de uma visao histórica, a importância do cuidado com o manejo das relaçoes terapeuta-paciente e as diversas modalidades de intervençoes psicoterápicas. Estas sao contextualizadas no conjunto das psicoterapias psicodinâmicasdisponíveis no momento: psicanálise, psicoterapias de orientaçao analítica, modalidades expressivas de apoio e psicoterapias breves dinâmicas.

No que se refere ao aparelho psíquico e ao funcionamento mental sao desenvolvidas noçoes acerca de consciente, inconsciente, id, ego, superego, repressao, conflito, formaçao de sintomas e outros.

Quanto às noçoes de técnica psicoterápica utilizam-se as experiências clínicas que ocorrem ao longo dos diversos estágios, discutindo-se os conceitos de aliança terapêutica, transferência, contratransferência, identificaçao projetiva, resistência, intervençoes do psicoterapeuta, reaçao terapêutica negativa, acting-out, insight, elaboraçao e mudança psíquica.

Este curso nasceu da necessidade de clarificar conceitos e intervençoes frequentes em setores psicodinâmicos, mas que usados no dia a dia perdiam precisao e se tornavam confusos para os residentes e especializandos. Essa mesma preocupaçao e rigor foram encontrados na obra de Sandler11O paciente e o analista, dedicada a jovens psiquiatras e pós-graduandos, sobre conceitos básicos psicanalíticos que podem também ser utilizados em outros enquadres, como atendimentos nos hospitais psiquiátricos, pronto-socorro e hospital-dia, o que enriquece e instrumenta o residente na prática e na relaçao com seu paciente. Além desse livro, compoem a bibliografia do curso textos clássicos de Freud, Klein, Bion e outros, de autores e pesquisadores contemporâneos.

A atividade prática envolve o atendimento de no mínimo dois pacientes em psicoterapia individual, de longo prazo, com frequência de uma a duas sessoes semanais de 50 minutos cada, por um período de dois anos com a possibilidade de se estender por um terceiro ano, totalizando cerca de 640 horas nos dois anos. Os pacientes que desistem sao substituídos por outros.

Os pacientes sao encaminhados de outros setores do Departamento de Psiquiatria e passam por uma triagem do setor de psicoterapia, que procura identificar aqueles com condiçoes para um melhor aproveitamento do trabalho psicoterápico. Sao selecionadas pessoas com motivaçao, interesse e disponibilidade efetiva para frequentar as sessoes, e excluídas aquelas com transtornos esquizofrênicos, demências e retardos mentais. Esses pacientes podem também frequentar o Ambulatório Geral de Psiquiatria ou um dos programas de assistência do departamento: Transtornos Afetivos, Transtornos Alimentares, Transtornos Obsessivo-Compulsivos e outros. A decisao final sobre a inclusao do paciente no programa é do terapeuta. Nesse sentido, a indicaçao está mais ancorada na disponibilidade interna para um trabalho psicoterápico do que no diagnóstico psiquiátrico.

Todos os atendimentos sao supervisionados em grupos, em encontros semanais, um em cada dia da semana. As supervisoes sao pautadas no material de sessoes, relatado oralmente ou trazido por escrito. Os supervisores sao profissionais da equipe fixa do setor, médicos e psicólogos com formaçao e experiência em psicanálise. Nos dois primeiros anos mantém-se o mesmo supervisor, que é substituído por outro no terceiro ano.

A técnica adotada, de orientaçao psicanalítica, focaliza os seguintes aspectos da relaçao do supervisionando com seu paciente: movimentos transferenciais-contratransferenciais, tipo de vínculo que o paciente está realizando, organizaçao psíquica e intervençoes possíveis. A ênfase é no aprimoramento de uma escuta de entrelinhas que privilegia o latente e nao a queixa, o sintoma. A neutralidade do terapeuta é sempre estimulada, procurando fazer com que o "desejo de curar" seja acolhido e transformado em capacidade de observaçao da realidade psíquica do paciente. Em vez de estimular a "busca de cura", tao presente nas instituiçoes universitárias médicas, tenta-se encorajar a experiência de apreensao dos fenômenos psíquicos, da percepçao de si mesmo, do desenvolvimento mental e de mudanças psíquicas.

No decorrer dessa prática e à medida que o supervisionando vai se dando conta do que pode estar acontecendo na relaçao e no mundo interno do paciente, ele vai fazendo assinalamentos e interpretaçoes que promovem no paciente o mesmo "dar-se conta", resultando em mudanças. A percepçao e a compreensao do que se passa com o paciente sao atos de acolhimento e continência.

A proposta do programa nao é formar psicoterapeutas, mas sim instrumentar psiquiatras e psicólogos em seu trabalho clínico e contribuir para sua formaçao profissional.


AVALIAÇAO DO ENSINO

A partir do projeto temático acima citado, em 2005 iniciou-se um estudo sobre o ensino de psicoterapia. O objetivo era avaliar o desenvolvimento das capacidades afetivo-cognitivas de apreensao da realidade psíquica e dos espaços mentais dos profissionais em treinamento no desempenho de suas tarefas enquanto psicoterapeutas. Foi aplicado um questionário de autoavaliaçao e analisados "cadernos de registros de sessoes", onde o aluno-terapeuta registrava as sessoes com cada um de seus pacientes. Esses cadernos foram compostos de pelo menos oito sessoes anotadas e supervisionadas pelo período de dois anos de cada dupla.

O questionário tinha a intençao de avaliar aspectos de habilidade, atitude e conhecimento na área psicoterápica. Todo o material produzido por escrito pelos alunos-terapeutas foi depois analisado pelo grupo de supervisores.

Quanto aos questionários, observamos:

1. a condiçao do aluno-terapeuta exposta na escrita do questionário;

2. a maneira como ele se envolve na tarefa terapêutica;

3. as angústias, resistências e frustraçoes diante das dificuldades e vicissitudes da nova tarefa;

4. a importância da experiência prévia de psicoterapia pessoal no manejo com o paciente, no sentido de facilitar ou dificultar a tarefa.


Em seguida apresentamos exemplos de respostas dos itens pesquisados:

a) Atitude impessoal e distante do aluno-terapeuta, como se estivesse respondendo a perguntas de um exame

Tentar entender a dinâmica do processo e ajudar o próprio paciente a entender onde ele se situa e conhecer sua subjetividade. A atuaçao se deve a partir de recortes, analogias e interpretaçoes baseados na linguagem do paciente e procedimento para diminuir defesas e desfazer resistências; um ponto fundamental é a transferência e contratransferência, condiçoes necessárias: setting terapêutico, continência, tolerância em alguns níveis, entendimento, empatia. A paciente x trazia fatos e era incapaz de abstrair sobre os mesmos; atualmente, vem utilizando uma linguagem simbólica e em busca do autoconhecimento... Ela diz que agora se conhece melhor, nao tem mais "pitis" e que consegue perceber o que constitui certo do errado para ela própria, o processo ainda está engatinhando (aluna-terapeuta no início do 2º ano).

b) Atitude de maior envolvimento, o aluno-terapeuta escreve na primeira pessoa, denotando participar de uma experiência.

Antes do primeiro contato, fico ansioso, nao sei como será o paciente. No decorrer dos atendimentos, tento manter a disposiçao de ajudar, sem deixar de observar os princípios teóricos da linha que sigo. Sem dúvida há momentos em que sinto cansaço, raiva, desesperança, alegria, dependendo de como sinto a sessao. Tento perceber tais sentimentos e usá-los para entender melhor a relaçao (aluno-terapeuta início do 2.º ano).


Quanto aos "cadernos de sessoes" observamos:

No processo de leitura do conjunto de sessoes pela equipe de supervisores, o foco foi a formaçao do vínculo terapeuta-paciente e como este se desenvolveu, seus alcances e vicissitudes. Três tópicos foram discriminados:

a) Informaçao: qual o tema selecionado pelo aluno-terapeuta e como ele o descreve

b) Envolvimento: quando o aluno-terapeuta aparece no texto na primeira pessoa do singular

c) Tipo de intervençao: se na conversa o aluno-terapeuta responde concretamente ao paciente ou consegue escutá-lo no registro da metáfora


Seguem recortes de sessoes de uma dupla terapeuta-paciente em diferentes momentos como ilustraçao da evoluçao da funçao terapêutica. Paciente atendido uma vez por semana e terapeuta sem experiência prévia de psicoterapia pessoal.

6ª sessao

A paciente chega com uma imobilizaçao na perna esquerda. Queixa-se da dificuldade de andar, pois ainda sente dores. Os primeiros momentos da consulta sao sobre a torçao no tornozelo esquerdo... Diz que nao está fazendo nada da sua vida. Está em licença no trabalho, quase nao sai de casa para nao contrariar as recomendaçoes médicas porque ela obedece ao que o médico determina... Parou o antidepressivo porque acha ter sido a causa de seu aumento de peso. Nao conversou com seu psiquiatra sobre o assunto, sabe que ele vai ficar bravo... Foi acompanhada por uma terapeuta por vários anos, ela era também sua psiquiatra e ligava para remarcar consultas quando faltava. Uma vez ela faltou à sessao e essa psiquiatra ligou para sua casa a fim de remarcar, como nao a encontrou, pegou o telefone do trabalho com a empregada e ligou. Dona S. diz ter se sentido invadida porque nunca permitiu que ela ligasse para o seu trabalho; se nao tinha dado esse número, é porque nao queria que ligasse... uma vez que seus colegas de trabalho nao sabem dos seus problemas. Teve uma grande discussao com essa terapeuta que no final pediu-lhe desculpas... Começou a dizer que nao estava contando essas coisas para me criticar, se ela me deu o número de seu celular, é porque nao se importaria se eu ligasse. Acha importante a minha preocupaçao em fazê-la vir à terapia. Sabe que precisa... Eu pergunto se a única coisa que a estava imobilizando era o gesso, se as dificuldades de relacionamento que tinha com o chefe nao poderiam estar influenciando. Ela responde que, depois que a transferiram para esse setor, nao consegue fazer nada.


Observa-se na fala do aluno-terapeuta um estilo de relato mais "médico", em que predomina o entendimento concreto e o pensamento causal. Sua atitude é mais distante e defendida. Entretanto, consegue perceber que a paciente já lhe avisa do perigo de ser invadida e de que nao aceita influências.

14ª sessao

A paciente chega cerca de 20 minutos atrasada. Ao entrar na sala, queixa-se de ter passado o dia com dor de cabeça e tontura... Conta que almoçou com uma colega mais jovem e magra que discordou quando disse ser obesa. As pessoas nao a consideram obesa, mas ela se considera. Nao desce mais por trás no ônibus, senta-se nas cadeiras da frente destinadas a idosos, gestantes e pessoas especiais. Se alguém lhe pergunta o motivo de estar sentada nesses bancos, diz que está grávida para nao admitir que está ali por ser obesa...

T: Será que esse tipo de atitude te recompensa de alguma forma?

P: Eu me julgo uma pessoa especial. Nao um especial bom, melhor que outras pessoas. Eu me sinto obesa... Por que você está anotando essa sessao e nao anotou a anterior que foi tao importante?

Eu explico que nao depende de mim qual sessao eu vou supervisionar, pois é uma sequência que depende também de outras pessoas, mas antes de apresentar tento fazer um resumo das sessoes anteriores.

T: Mas por que a sessao anterior foi importante para você?

P: Eu consegui falar sobre coisas que eu nao conseguia. Nao vi melhora, mas me senti mais aliviada...

Começa a falar sobre as vezes que se sente perseguida no trabalho ou mesmo na rua...

T: Mas por que você estaria sendo perseguida?

P: Talvez porque estivessem falando de minha doença, dos meus problemas psiquiátricos, da minha LER, da minha obesidade.

T: E você, como você encara esses seus problemas?

P: Muito mal... LER, eu nao aceito. Fibromialgia, eu nao aceito. Obesidade, eu nao aceito.

T: Como você reage a tantas coisas que você nao aceita?

P: Um sentimento de invalidez que me deixa muito triste, muito triste. (Chora)...

T: O que representaria viver sem doenças?

P: Libertaçao (chora)... Uma possibilidade de retomar...


Nesta sessao, o aluno-terapeuta já se mostra mais implicado no clima emocional. Já nao se encontra como um observador externo que apresenta uma anamnese, embora ainda tenha que se defender ao fazer anotaçoes e referir-se a seu supervisor. Por outro lado, essa franqueza apaziguou o clima persecutório e surge o diálogo, com o terapeuta se colocando na primeira pessoa.

30ª sessao

P: Você lembra que eu falei daquele colega de trabalho que só fala abobrinha? Ele tem uns dez anos a menos que eu e está fazendo faculdade de direito agora, mas já tem um apartamento próprio. Ele faz todo mundo rir. Ele nao faz meu tipo, quer chamar muito a atençao... Quando eu cuido da minha aparência nao é para eles, é porque eu me sinto bem. Apesar de gorda, eu tenho algum charme. Eu sinto os meninos se interessarem por mim. Eles ficam se protegendo.

T: E você nao acha que se sente atraída por eles?

P: Eu tenho muitos sonhos. Semana passada eu sonhei com um soldadinho de brinquedo, tipo aqueles da rainha da Inglaterra e eu dou corda no bonequinho. Esse colega de trabalho se veste bem, mas ele é grosseiro, nao é um homem fino. Nao que os outros fossem grosseiros, mas eram pessoas mais simples que eu.

T: Se você nao se sente atraída, porque você passa tanto tempo como se estivesse se justificando?

P: Deixa eu concluir o pensamento sobre o meu namorado. Eu sou uma mulher diferente, eu nao gosto de vulgaridades. A minha vida particular eu nao exponho.Eu enxergo o lado malicioso das pessoas. As pessoas nao têm ideia da perversidade dos seus atos. As mulheres têm ciúmes de mim porque eu tenho algo que atrai os homens, aliás nao só os homens. Graças à terapia tenho me voltado para as coisas mais simples. A vida está me ensinando a ter piedade.


O clima ameaçador das primeiras sessoes passa a ser de maior intimidade, a paciente se mostra mais e deixa transparecer aspectos grandiosos, de poder e seduçao. O aluno-terapeuta consegue estar mais próximo, mantém sua postura de escuta e de tentar apreender os movimentos no campo transferencial, conseguindo fazer uma confrontaçao.

57ª sessao

P: Desculpa pelo atraso, mas eu peguei um engarrafamento terrível vindo para cá. O trânsito em SP é horrível, nao se pode planejar nada. Por isso é bom morar em cidade do interior. Nao tem engarrafamento, poluiçao... Se bem que as pessoas perguntam mais...

T: Numa cidade pequena as pessoas sao mais próximas, é difícil ficar anônimo. Por outro lado, é fácil passar despercebido numa cidade como SP e você resolveu morar aqui. Você tem medo do julgamento das outras pessoas?

P: Sim. Detesto ser julgada.

Na época da faculdade eu tinha muitos amigos homens. A gente saía da aula e ia a barzinhos, bebia junto. Alguns me abraçavam, paqueravam comigo, mas eu nao queria nada. Com o tempo, nao sei, depois dos meus namoros, eu nao consigo mais me aproximar dos homens. Deixa eu pegar na sua mao.

T: (ela se senta na ponta da cadeira e estende a mao para mim)

P: Me dê a sua mao.

T: (Hesito mais um pouco e estendo a mao. Ela segura brevemente e solta.) P: Tenho muita dificuldade de manter minhas amizades com homens. Eu me sinto muito presa às regras de convivência, você nao pode chegar perto, nao pode abraçar.

T: Mas se você está num ambiente de trabalho, se está lá com um objetivo, faz um certo sentido que a convivência seja pautada por princípios que resguardem esse objetivo. Eu tenho a impressao de que como você vive em funçao do trabalho e da terapia, você busca essas amizades nesses ambientes. Se você tem amigos no trabalho, pode sair com eles para um bar e ninguém vai estranhar um abraço.

P: Pode ser.

T: Outra coisa. Aqui no espaço da terapia, nao é uma relaçao de amizade. Uma vez que é uma relaçao que se limita a esse espaço da terapia e tem um objetivo.

P: Eu sei que aqui é diferente, racionalmente eu sei que nao somos amigos. Mas, na minha religiao, o espiritismo, eu nao tenho como deixar de perceber o quanto você está me ajudando e te ver como espírito irmao.


O aluno-terapeuta apreende a metáfora da cidade e utiliza-a como campo de comunicaçao. Parece que existe uma sintonia inconsciente na dupla. O terapeuta entra no universo moral da paciente, mas nao fica aprisionado, se permite ser tocado, apesar do receio. Suas dúvidas entre ser tocado ou nao refletem maior contato com seus aspectos contratransferenciais.

Percebe-se o percurso do aluno-terapeuta a partir de uma posiçao médica, para esforços de aproximaçao, ficando cada vez mais dentro da sessao, utilizando-se de confrontaçoes e assinalamentos. Trabalha na transferência, embora nao a interprete. Seria esta uma postura mais suportiva do terapeuta, ou implicaria um alcance maior em termos de mudança psíquica da paciente? Esta é uma questao relevante. De qualquer modo, houve um desenvolvimento da funçao terapêutica.

Outro aspecto que emergiu durante a experiência dos dois anos foi a questao sobre o método de supervisao do grupo, quanto a forma de tra-balhar em supervisao pode favorecer, dar continência e sustentaçao à referida abertura emocional no aluno-terapeuta. Na medida em que a investigaçao foi desenvolvida como pesquisa-açao, a equipe de supervisoresinvestigadores se apercebeu da importância do estabelecimento de critérios de observaçao como experiência emocional, dialética da aprendizagem supervisor-supervisionando, captaçao da realidade psíquica a partir da autoobservaçao do psicoterapeuta e cuidado com influência das experiências normativas, superegoicas na evoluçao da aprendizagem com a experiência.


DIFICULDADES E LIMITAÇOES ENFRENTADAS

Nos dias atuais, a psiquiatria acompanha a tendência da medicina baseada em evidências. Somos chamados a provar o que funciona e para quê. Isto envolve uma dificuldade particular para a psicoterapia psicodinâmica, pois tem sua origem na psicanálise, outro referencial epistemológico. Assim, nos vemos diante da difícil tarefa de demonstrar uma eficácia terapêutica objetiva em um procedimento que privilegia a subjetividade.

A pesquisa em psicoterapia de base psicanalítica apresenta desafios metodológicos. Há controvérsias quanto à possibilidade de apreensao do objeto psicanalítico, o inconsciente. Segundo Herrmann12 pesquisas com o método psicanalítico favorecem o conhecimento do cotidiano da prática clínica, enquanto aquelas que se utilizam dos métodos empíricos falam sobre o processo terapêutico. Esses diferentes pontos de vista sao importantes na produçao de conhecimento em psicoterapia.

No nosso serviço os alunos-terapeutas nao escolhem o método psicoterapêutico que desejam aprender, muito menos escolhem a área de especializaçao, pois estao vinculados a um programa geral de formaçao psiquiátrica. A universidade nao pode ir além da teoria e prática clínica supervisionada por no máximo três anos e nao pode exigir que seus alunos se submetam a psicoterapia psicanalítica ou psicanálise. Tal tarefa diz respeito às associaçoes psicanalíticas, pois há uma diferença entre ensino e formaçao em psicoterapia ou psicanálise. O que é possível é sensibilizar o alunoterapeuta para os aspectos dinâmicos da relaçao terapeuta-paciente e, caso haja interesse, posterior desenvolvimento e aprofundamento.

Green13 afirma que um dos problemas mais importantes da clínica contemporânea é que por muito tempo as psicoterapias foram consideradas uma atividade marginal dentro das sociedades psicanalíticas e propoe que falemos em "relaçaopsicanalítica com enquadre reformulado". Considera questoes materiais e geográficas da populaçao atendida para a proposta de um tratamento psicoterápico no lugar do psicanalítico. Esta é a nossa realidade no atendimento a pacientes usuários do Sistema Unico de Saúde (SUS).

Como fazemos parte de um departamento de psiquiatria, sao encaminhados ao nosso serviço pacientes com transtornos psiquiátricos graves que exigem um novo enquadre, diferente de outros núcleos de assistência em psicoterapia.


CONSIDERAÇOES FINAIS

Temos uma árdua tarefa: a de ensinar psicoterapia psicanalítica na universidade e continuar demonstrando sua efetividade e importância clínica por meio de pesquisas. Acreditamos que os pacientes podem se beneficiar muito com essa abordagem terapêutica que valoriza o individual, o particular, o mundo interno, diferente da cultura das aparências e superficialidades.


AGRADECIMENTOS

Agradecemos à equipe de supervisao do programa de ensino em psicoterapia: Dra. Norma Semer, Dr. Salvador Bianco, Dr. Milton Dela Nina e Dr. Jair Fuks.


REFERENCIAS

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13. Green A. O trabalho de psicanálise- as psicoterapias praticadas pelos psicanalistas. In: Green A. Orientaçoes para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago; 2008.










* Professora Adjunta do Departamento de Psiquiatria da EPM/UNIFESP e membro associado da SBPSP.
** Médica, Doutora pelo do Departamento de Psiquiatria da EPM/UNIFESP e membro associado da SBPSP.
***Médico do Departamento de Psiquiatria da EPM/UNIFESP e membro afiliado da SBPSP.

Correspondência
Professora Dra. Julieta Freitas Ramalho da Silva
Departamento de Psiquiatria
Rua Borges Lagoa, 570, 1.o andar Vila Clementino
Sao Paulo, SP CEP: 04038-020
E-mail: julieta@psiquiatria.epm.br ou julietafrs@hotmail.com

 

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