Rev. bras. psicoter. 2012; 14(2):60-74
Silva JFR, Fiore ML, Galender GC. O Ensino de psicoterapia psicanalítica no departamento de psiquiatria da escola paulista de medicina - Universidade Federal de Sao Paulo - UNIFESP. Rev. bras. psicoter. 2012;14(2):60-74
Artigos Originais
O Ensino de psicoterapia psicanalítica no departamento de psiquiatria da escola paulista de medicina - Universidade Federal de Sao Paulo - UNIFESP
Psychoanalytic Psychotherapy Teaching in the Department of Psychiatry of the School of Medicine - Universidade Federal de Sao Paulo- UNIFESP
Julieta F. Ramalho da Silva*; Maria Luiza Fiore**; Geraldo C. Galender***
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O ensino da psicoterapia psicanalítica na universidade é uma forma de divulgaçao e aplicaçao da psicanálise que enfatiza seu vértice terapêutico.
Kernberg propoe uma diferenciaçao rigorosa entre psicanálise clássica, psicoterapia psicanalítica e psicoterapia de apoio fundamentada na psicanálise ao considerar seus objetivos e principalmente as técnicas empregadas em seu processo terapêutico1. Este autor acredita que as técnicas diferenciam realmente as modalidades de tratamento, uma vez que a teoria subjacente é a mesma, incluindo o conceito de inconsciente, as pulsoes agressivas e libido, conflito, mecanismos de defesa, relaçoes objetais internalizadas e organizaçao estrutural e topográfica do aparelho psíquico. O autor diz que, para explorar a questao da relaçao da psicanálise em si com as psicoterapias analíticas, é necessário considerar os planos conceitual, clínico, pedagógico e político1.
A aplicaçao de psicoterapia em programas de residência médica em psiquiatria tem sido tema de discussoes em universidades norte-americanas, canadenses e latino-americanas. No encontro anual da American Psychiatric Association2, foi reconhecida a existência de uma "pressao de mercado" para o treino em farmacologia, para reduzir o tratamento ao uso de uma pílula em detrimento da investigaçao diagnóstica e tratamento mais aprofundado que leva em consideraçao a relaçao médico-paciente em psiquiatria.
Beigel e Santiago3 propoem uma distribuiçao equilibrada entre o ensino de psicoterapia e o de outras práticas, como avaliaçao diagnóstica de pacientes com transtornos físicos e mentais complexos, avaliaçao e manejo de medicamentos, intervençoes em crise e interconsultas. Para os autores, a psicoterapia breve instrumenta o psiquiatra em seu trabalho clínico - garantindo aceitaçao ao medicamento e adesao ao tratamento por parte do paciente -, bem como na assistência à reabilitaçao psicossocial; enquanto a psicoterapia de longo prazo é mais efetiva no ensino do contato psicoterápico. Dentro dessa mesma linha de pensamento, a Associaçao Brasileira de Psiquiatria recomenda que todos os programas de residência em psiquiatria tenham um curso que inclua introduçao à teoria e técnica das principais linhas de psicoterapia e um aprofundamento em uma dessas linhas, incluindo modalidades individuais e grupais, de longo ou curto prazo4.
Gabbard comenta a importância do treinamento dos residentes de psiquiatria em psicoterapia psicodinâmica5. Em 2002, o Comitê de Revisao da Residência em Psiquiatria nos Estados Unidos listou cinco tipos de psicoterapia recomendadas como necessárias no treinamento de todos os participantes dos programas de residência em psiquiatria. Em 2010, esse número diminuiu para três, incluindo a psicoterapia psicodinâmica, cuja eficácia foi confirmada por muitas pesquisas rigorosas surgidas nesse intervalo de tempo. Entre elas, podemos citar os estudos dea) Leichsenring e Rabung6, metanálise atualizada sobre psicoterapia psicodinâmica de longo prazo em transtornos mentais complexos como transtornos depressivos, transtornos de ansiedade, transtorno de personalidade borderline e anorexia nervosa, b) Shedler7, sobre a eficácia da psicoterapia psicodinâmica; e c) Harvard Mental Health Letter8, sobre os méritos da psicoterapia psicodinâmica em que se ressaltao valor das pesquisasmostrando que os benefícios desta psicoterapia aumentam com o passar do tempo.
No Departamento de Psiquiatria da Unifesp o ensino de psicoterapia tem uma longa tradiçao e está intrinsecamente ligado à residência médica em psiquiatria desde os anos de 1970, tendo como referência o método e a teoria psicanalítica.
HISTORICO
A história da psicoterapia em nosso departamento vem acompanhada pela própria história deste. Em 1964, o professor Darcy de Mendonça Uchoa, psicanalista formado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Sao Paulo, foi escolhido para a cátedra de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina e acrescentou ao programa de ensino do curso de graduaçao a teoria do inconsciente. Junto a ele colaboravam vários psiquiatras e psicanalistas que foram responsáveis pela presença da herança psicanalítica em nosso departamento.
Quando foi criada a residência médica em psiquiatria na Escola Paulista de Medicina, no ano de 1973, foi incorporado ao programa o ensino e assistência em psicoterapia. No início, os residentes tinham um curso teórico que versava sobre teoria do funcionamento mental, sonhos, aparelho psíquico, id, ego superego, mecanismos de defesa, ou seja, os fundamentos da psicanálise. A prática ocorria em atendimentos ambulatoriais na modalidade de psicoterapia breve de base psicanalítica tanto para pacientes previdenciáriosquanto para os originários do convênio com a Secretaria de Saúde do Estado de Sao Paulo9.
Em 1984, o programa de residência médica em psiquiatria coordenado pelo Prof. Dr. Ladislau Ungar Glauciusz trouxe uma importante inovaçao, as denominadas "manhas de psicoterapia". Neste programa longitudinal foi possível aos residentes acompanharem seus pacientes por um período de dois anos, em 1 ou 2 sessoes de 50 minutos de psicoterapia de base psicanalítica, supervisionados pelos docentes. Essa mudança atingia dois objetivos, a saber, o ensino da psicoterapia e a constituiçao da identidade do psiquiatra em formaçao. A partir da psicanálise, o que se pretendia era oferecer a possibilidade de o residente experimentar um campo epistemológico diferente do modelo médico positivista; a possibilidade do pensamento psicodinâmico alcançava toda a prática psiquiátrica dos residentes na medida em que valorizava a singularidade e subjetividade dos pacientes10.
Em 1993, foi criado o Setor de Psicoterapia do Departamento de Psiquiatria, que agregava todas as atividades de ensino e assistência em psicoterapia, tanto individual como em grupo, permanecendo o referencial de base psicanalítica. Coordenaram este setor a professora Dra. Julieta Freitas Ramalho da Silva e o Dr. Geraldo Galender. Um grande passo em direçao ao reconhecimento da importância do grupo de psicoterapeutas do departamento foi a criaçao da disciplina de Psicoterapia e Psicodinâmica em 1996.
A partir de 2000 inicia-se a elaboraçao de um projeto de pesquisa temático - Pesquisa em Psicoterapia Psicanalítica: Aplicaçao clínica no atendimento de pacientes e ensino em programas de residência em psiquiatria e especializaçao em psicologia da saúde, - coordenado pela professora Latife Yazigi, Dra. Julieta Freitas Ramalho da Silva, Dra. Norma Lottenberg Semer e Dra. Maria Luiza de Mattos Fiore. Esse programa foi aprovado pela FAPESP em 2002 e, no ano seguinte, o departamento recebeu um espaço próprio na reitoria da Unifesp. Lá foi possível estabelecer-se um ambiente externo acolhedor e personalizado para pacientes, com salas de atendimento individualizadas, com poltronas e divas. Assim, constituiu-se o Centro Clínico e de Pesquisa em Psicoterapia com a missao de desenvolver a assistência, o ensino e a pesquisa em psicoterapia psicanalítica para a comunidade.
Além desse projeto, foram criados no departamento outros programas de ensino e assistência de base psicanalítica como:
1. PAES - Programa de Atendimento e de Estudos de Somatizaçao
2. NAPPED - Núcleo de Atendimento e Pesquisa em Psicanálise e Dor
3. AMBORDER - Ambulatório para pacientes com Transtornos da Personalidade
4. CAPS - Centro de Atençao Psicossocial - UNIFESP
5. LASM - Liga Acadêmica de Saúde Mental
1. a condiçao do aluno-terapeuta exposta na escrita do questionário;
2. a maneira como ele se envolve na tarefa terapêutica;
3. as angústias, resistências e frustraçoes diante das dificuldades e vicissitudes da nova tarefa;
4. a importância da experiência prévia de psicoterapia pessoal no manejo com o paciente, no sentido de facilitar ou dificultar a tarefa.
a) Atitude impessoal e distante do aluno-terapeuta, como se estivesse respondendo a perguntas de um exame
Tentar entender a dinâmica do processo e ajudar o próprio paciente a entender onde ele se situa e conhecer sua subjetividade. A atuaçao se deve a partir de recortes, analogias e interpretaçoes baseados na linguagem do paciente e procedimento para diminuir defesas e desfazer resistências; um ponto fundamental é a transferência e contratransferência, condiçoes necessárias: setting terapêutico, continência, tolerância em alguns níveis, entendimento, empatia. A paciente x trazia fatos e era incapaz de abstrair sobre os mesmos; atualmente, vem utilizando uma linguagem simbólica e em busca do autoconhecimento... Ela diz que agora se conhece melhor, nao tem mais "pitis" e que consegue perceber o que constitui certo do errado para ela própria, o processo ainda está engatinhando (aluna-terapeuta no início do 2º ano).
b) Atitude de maior envolvimento, o aluno-terapeuta escreve na primeira pessoa, denotando participar de uma experiência.
Antes do primeiro contato, fico ansioso, nao sei como será o paciente. No decorrer dos atendimentos, tento manter a disposiçao de ajudar, sem deixar de observar os princípios teóricos da linha que sigo. Sem dúvida há momentos em que sinto cansaço, raiva, desesperança, alegria, dependendo de como sinto a sessao. Tento perceber tais sentimentos e usá-los para entender melhor a relaçao (aluno-terapeuta início do 2.º ano).
a) Informaçao: qual o tema selecionado pelo aluno-terapeuta e como ele o descreve
b) Envolvimento: quando o aluno-terapeuta aparece no texto na primeira pessoa do singular
c) Tipo de intervençao: se na conversa o aluno-terapeuta responde concretamente ao paciente ou consegue escutá-lo no registro da metáfora
A paciente chega com uma imobilizaçao na perna esquerda. Queixa-se da dificuldade de andar, pois ainda sente dores. Os primeiros momentos da consulta sao sobre a torçao no tornozelo esquerdo... Diz que nao está fazendo nada da sua vida. Está em licença no trabalho, quase nao sai de casa para nao contrariar as recomendaçoes médicas porque ela obedece ao que o médico determina... Parou o antidepressivo porque acha ter sido a causa de seu aumento de peso. Nao conversou com seu psiquiatra sobre o assunto, sabe que ele vai ficar bravo... Foi acompanhada por uma terapeuta por vários anos, ela era também sua psiquiatra e ligava para remarcar consultas quando faltava. Uma vez ela faltou à sessao e essa psiquiatra ligou para sua casa a fim de remarcar, como nao a encontrou, pegou o telefone do trabalho com a empregada e ligou. Dona S. diz ter se sentido invadida porque nunca permitiu que ela ligasse para o seu trabalho; se nao tinha dado esse número, é porque nao queria que ligasse... uma vez que seus colegas de trabalho nao sabem dos seus problemas. Teve uma grande discussao com essa terapeuta que no final pediu-lhe desculpas... Começou a dizer que nao estava contando essas coisas para me criticar, se ela me deu o número de seu celular, é porque nao se importaria se eu ligasse. Acha importante a minha preocupaçao em fazê-la vir à terapia. Sabe que precisa... Eu pergunto se a única coisa que a estava imobilizando era o gesso, se as dificuldades de relacionamento que tinha com o chefe nao poderiam estar influenciando. Ela responde que, depois que a transferiram para esse setor, nao consegue fazer nada.
A paciente chega cerca de 20 minutos atrasada. Ao entrar na sala, queixa-se de ter passado o dia com dor de cabeça e tontura... Conta que almoçou com uma colega mais jovem e magra que discordou quando disse ser obesa. As pessoas nao a consideram obesa, mas ela se considera. Nao desce mais por trás no ônibus, senta-se nas cadeiras da frente destinadas a idosos, gestantes e pessoas especiais. Se alguém lhe pergunta o motivo de estar sentada nesses bancos, diz que está grávida para nao admitir que está ali por ser obesa...
T: Será que esse tipo de atitude te recompensa de alguma forma?
P: Eu me julgo uma pessoa especial. Nao um especial bom, melhor que outras pessoas. Eu me sinto obesa... Por que você está anotando essa sessao e nao anotou a anterior que foi tao importante?
Eu explico que nao depende de mim qual sessao eu vou supervisionar, pois é uma sequência que depende também de outras pessoas, mas antes de apresentar tento fazer um resumo das sessoes anteriores.
T: Mas por que a sessao anterior foi importante para você?
P: Eu consegui falar sobre coisas que eu nao conseguia. Nao vi melhora, mas me senti mais aliviada...
Começa a falar sobre as vezes que se sente perseguida no trabalho ou mesmo na rua...
T: Mas por que você estaria sendo perseguida?
P: Talvez porque estivessem falando de minha doença, dos meus problemas psiquiátricos, da minha LER, da minha obesidade.
T: E você, como você encara esses seus problemas?
P: Muito mal... LER, eu nao aceito. Fibromialgia, eu nao aceito. Obesidade, eu nao aceito.
T: Como você reage a tantas coisas que você nao aceita?
P: Um sentimento de invalidez que me deixa muito triste, muito triste. (Chora)...
T: O que representaria viver sem doenças?
P: Libertaçao (chora)... Uma possibilidade de retomar...
P: Você lembra que eu falei daquele colega de trabalho que só fala abobrinha? Ele tem uns dez anos a menos que eu e está fazendo faculdade de direito agora, mas já tem um apartamento próprio. Ele faz todo mundo rir. Ele nao faz meu tipo, quer chamar muito a atençao... Quando eu cuido da minha aparência nao é para eles, é porque eu me sinto bem. Apesar de gorda, eu tenho algum charme. Eu sinto os meninos se interessarem por mim. Eles ficam se protegendo.
T: E você nao acha que se sente atraída por eles?
P: Eu tenho muitos sonhos. Semana passada eu sonhei com um soldadinho de brinquedo, tipo aqueles da rainha da Inglaterra e eu dou corda no bonequinho. Esse colega de trabalho se veste bem, mas ele é grosseiro, nao é um homem fino. Nao que os outros fossem grosseiros, mas eram pessoas mais simples que eu.
T: Se você nao se sente atraída, porque você passa tanto tempo como se estivesse se justificando?
P: Deixa eu concluir o pensamento sobre o meu namorado. Eu sou uma mulher diferente, eu nao gosto de vulgaridades. A minha vida particular eu nao exponho.Eu enxergo o lado malicioso das pessoas. As pessoas nao têm ideia da perversidade dos seus atos. As mulheres têm ciúmes de mim porque eu tenho algo que atrai os homens, aliás nao só os homens. Graças à terapia tenho me voltado para as coisas mais simples. A vida está me ensinando a ter piedade.
P: Desculpa pelo atraso, mas eu peguei um engarrafamento terrível vindo para cá. O trânsito em SP é horrível, nao se pode planejar nada. Por isso é bom morar em cidade do interior. Nao tem engarrafamento, poluiçao... Se bem que as pessoas perguntam mais...
T: Numa cidade pequena as pessoas sao mais próximas, é difícil ficar anônimo. Por outro lado, é fácil passar despercebido numa cidade como SP e você resolveu morar aqui. Você tem medo do julgamento das outras pessoas?
P: Sim. Detesto ser julgada.
Na época da faculdade eu tinha muitos amigos homens. A gente saía da aula e ia a barzinhos, bebia junto. Alguns me abraçavam, paqueravam comigo, mas eu nao queria nada. Com o tempo, nao sei, depois dos meus namoros, eu nao consigo mais me aproximar dos homens. Deixa eu pegar na sua mao.
T: (ela se senta na ponta da cadeira e estende a mao para mim)
P: Me dê a sua mao.
T: (Hesito mais um pouco e estendo a mao. Ela segura brevemente e solta.) P: Tenho muita dificuldade de manter minhas amizades com homens. Eu me sinto muito presa às regras de convivência, você nao pode chegar perto, nao pode abraçar.
T: Mas se você está num ambiente de trabalho, se está lá com um objetivo, faz um certo sentido que a convivência seja pautada por princípios que resguardem esse objetivo. Eu tenho a impressao de que como você vive em funçao do trabalho e da terapia, você busca essas amizades nesses ambientes. Se você tem amigos no trabalho, pode sair com eles para um bar e ninguém vai estranhar um abraço.
P: Pode ser.
T: Outra coisa. Aqui no espaço da terapia, nao é uma relaçao de amizade. Uma vez que é uma relaçao que se limita a esse espaço da terapia e tem um objetivo.
P: Eu sei que aqui é diferente, racionalmente eu sei que nao somos amigos. Mas, na minha religiao, o espiritismo, eu nao tenho como deixar de perceber o quanto você está me ajudando e te ver como espírito irmao.
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