Rev. bras. psicoter. 2012; 14(2):41-51
Faria NJ. O ensino da Gestalt-terapia em cursos de graduaçao em psicologia. Rev. bras. psicoter. 2012;14(2):41-51
Artigos Originais
O ensino da Gestalt-terapia em cursos de graduaçao em psicologiaa
The teaching of Gestalt-therapy in undergraduate courses in Psychologya
Nilton Júlio de Faria*
Resumo
Abstract
DO MOVIMENTO HUMANISTA AS PRATICAS PSICOLOGICAS
Sob a denominaçao de Psicologia Humanista ou de Psicologia Fenomenológico- Existencial, várias teorias psicológicas inseriram-se nos currículos acadêmicos dos cursos de Psicologia a partir da década de 1990, colocando-se como um modelo epistemológico. Tal modelo implicou a ruptura de paradigmas hegemônicos, como os da psicanálise e do comportamentalismo. Nosso objetivo neste artigo é o de apresentar algumas reflexoes acerca deste processo, destacando a Gestalt-terapia, assim como discorrer sobre uma experiência vivida em uma instituiçao de ensino do interior do Estado de Sao Paulo.
Para falar do humanismo, fazemos referência a dois movimentos históricos muito distintos, cada um com complexidade também distinta - sobre os quais nao nos cabe discorrer neste artigo -, mas que favorecem a compreensao do que, atualmente, designamos psicologia humanista; o primeiro deles ocorre com o Renascimento e o outro,bem mais recente, após a Segunda Guerra Mundial.
O primeiro ajuda-nos a compreender o sentido etimológico do humanismo, que é a retomada do homem como referência para as produçoes humanas. Foi um momento em que a cultura europeia buscava a ruptura com a era crista. Nesse episódio histórico, o homem buscou na Grécia clássica a inspiraçao para a reconstruçao de seus ideários. Daí o nome de Renascimento: o homem nascendo de novo e voltando a se tornar o centro de sua existência; isto implica reconhecer-se como um humano que se faz por si mesmo, que nao necessita de forças alheias a ele para justificar-se ou compreender-se.
O humanismo, em seu sentido técnico, remonta às studia humanitatis, como o estudo dos valores considerados essencialmente humanos, tais como a história, a poesia, a retórica, a gramática e a filosofia moral, estudos estes desconsiderados pela escolástica, referência considerada única para a produçao de conhecimento na época.
Deste processo decorre a noçao de sujeito da qual, mais tarde, a psicologia virá a se ocupar; o homem renascentista, ao buscar construir um mundo à sua imagem e semelhança, faz como se fosse Deus, é o "criador"; porém, depara-se com a sua individualidade e sem as certezas que o mundo da fé lhe garantia, gerando-lhe uma experiência de solidao e abandono.
Desse movimento humanista é que se constituíram as ciências modernas, mesmo as da natureza, pois esta já nao era mais explicada pela açao divina; o conhecimento da natureza começou a ser justificado pelo método que serviria como critério de certezas.
O segundo momento é mais contemporâneo e nos oferece uma proximidade histórica bastante significativa. O contexto histórico no qual tem início a psicologia humanista compreende as décadas de 1940 e 1950, o final e o pós-Segunda Guerra Mundial. Os psicólogos humanistas pareciam inconformados com os conhecimentos psicológicos constituídos sobre bases deterministas, sejam os da psicanálise com seus princípios biológicos recalcados, sejam os princípios de condicionamentos do comportamentalismo.
A abordagem humanista, entao, ao ser considerada a terceira força em psicologia, principalmente pelas contribuiçoes de Abraham Maslow (1908- 1970), com a teoria da autoatualizaçao, e Carl Rogers (1902-1987), com a proposiçao da terapia centrada no cliente, constitui-se como uma forma de responder aos anseios de uma sociedade que tivera destruído pela guerra todos os seus valores, materiais e morais; a própria noçao de subjetividade precisava ser ressignificada.
A GESTALT-TERAPIA
A Gestalt-terapia é inaugurada nesse contexto de constituiçao da psicologia humanista. O establishment existente nos Estados Unidos, nas décadas de 1940 a 1960, que defendia que o... "capitalismo, o cristianismo e a democracia eram superiores a todos os outros sistemas econômicos, religiosos e políticos e que nenhuma pessoa de bom senso podia negar isso"1 , foi o cenário fértil para a publicaçao, em 1951, do livro Gestalt-therapy. A obra, considerada inaugural da Gestalt-terapia, foi assinada por Frederick Perls, Ralph Hefferline e Paul Goodman. Perls foi psicanalista por mais de quinze anos, Hefferline um intelectual e professor universitário, e Goodman, professor universitário considerado um anarquista, por opor-se à ordem estabelecida2,3. Além destes, a Gestalt-terapia contou com outros pensadores, dentre eles Isadore From e Laura Perls.
A Gestalt-terapia é uma proposta diferenciada das psicoterapias vigentes na época, pois nao busca adaptar o indivíduo ao meio tampouco eliminar sintomas considerados doentios, em uma clara oposiçao aos valores defendidos pelo establishment. Ela surge com a preocupaçao de valorizar o humano, enfocar diretamente o que de positivo tem a pessoa, lidar com seu potencial de vida (saúde, beleza, força, etc.). Nao se trata de um subjetivismo cego; pelo contrário, a Gestalt-terapia é defensora da perspectiva de que o indivíduo só se constitui na relaçao com outros. As limitaçoes postas pelo contexto cultural, por um lado, assim como o direito à liberdade, por outro, devem ser alvo de compreensao para, a partir dela, buscar-se a superaçao de conflitos por meio de um ajustamento criativo, sem que se fira a dignidade de qualquer parte envolvida. Tal concepçao de subjetividade trazida para o processo psicoterapêutico significa que o homem todo é o sujeito deste processo. Nao basta lidar com a linguagem ou com os sentimentos e açoes do indivíduo: no processo psicoterapêutico busca-se resgatar a totalidade do indivíduo, assim como a totalidade de suas relaçoes sociais e afetivas.
A Gestalt-terapia, por muito tempo, foi desconsiderada pelo meio acadêmico sob as mais diferentes justificativas. Uma delas era a de que sua teoria carecia de cientificidade, talvez pela impetuosidade com que Fritz Perls, um de seus fundadores, colocou-a em prática. Outro argumento comum à época era o de que a Gestalt-terapia era uma prática desenvolvida por alguns alucinados, descontentes com o modelo biomédico de psicoterapia e inábeis para fazer psicologia com os instrumentais criados até a década de 1960. O meio acadêmico, até este período, tinha o ensino e a pesquisa referenciados em dois modelos teóricos aceitáveis como científicos: o comportamentalismo e a psicanálise. Raros eram os cursos que introduziram o modelo chamado de psicologia humanista, muitas vezes por meio da abordagem centrada na pessoa e, ainda assim, como disciplina optativa ou conteúdo de alguma outra disciplina.
OS CURSOS DE GRADUAÇAO EM PSICOLOGIA
A abertura política no Brasil vivida a partir de 1979 e o boom universitário assistido nessa década possibilitaram aos cursos de graduaçao a abertura para o ensino de sistemas teóricos ou ideológicos que haviam sido banidos das salas de aula e dos laboratórios de pesquisa. A década de 1980 foi o cenário no qual a Gestalt-terapia passou a ser ensinada como parte do conteúdo programático de algumas das disciplinas engessadas do Currículo Mínimo de 1962. De conteúdos de disciplinas a componentes curriculares foram, pelo menos, duas décadas de construçao, por todo o Brasil, daqueles que se empenharam no ensino, na pesquisa e na difusao da Gestalt-terapia.
Vale a pena registrar os primeiros movimentos da psicologia brasileira para a superaçao do Currículo Mínimo, dos quais destacamos a Carta de Serra Negra, que reuniu, em 1992, 98 das 103 agências formadoras de psicologia existentes naquele ano. Na ocasiao foram construídos alguns princípios que deveriam orientar a formaçao do psicólogo em todo o território nacional, de forma a dar maior abrangência ao Currículo Mínimo.
Eram os seguintes os princípios: 1) desenvolver a consciência política de cidadania e o compromisso com a realidade social e a qualidade de vida; 2) desenvolver atitude de construçao de conhecimento, enfatizando uma postura crítica, investigadora e criativa, fomentando a pesquisa num contexto de açao-reflexao-açao, bem como viabilizando a produçao técnico-científica; 3) desenvolver o compromisso da açao profissional quotidiana baseada em princípios éticos, estimulando a reflexao permanente destes fundamentos; 4) desenvolver o sentido da universidade, contemplando a interdisciplinaridade e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensao; 5) desenvolver a formaçao básica pluralista, fundamentada na discussao epistemológica, visando à consolidaçao de práticas profissionais, conforme a realidade sociocultural, adequando o currículo pleno de cada agência formadora ao contexto regional; 6) desenvolver uma concepçao de homem, compreendido em sua integra- lidade e na dinâmica de suas condiçoes concretas de existência; 7) desenvolver práticas de interlocuçao entre os diversos segmentos acadêmicos, para avaliaçao permanente do processo de formaçao.
A Carta de Serra Negra registrou, pela primeira vez, a intençao de se formarem psicólogos que estivessem comprometidos com a realidade social. Ao mesmo tempo, esse compromisso deveria estar fundamentado em bases epistemológicas consistentes. Destacamos o item 6 destes princípios, do qual depreendemos a proposta de que a psicologia deveria dedicar-se a uma concepçao de homem compreendido em sua integralidade e contextualizado na sua realidade social, o que sugere uma ruptura com o modelo médico tradicional e sua visao biologizante de indivíduo.
A partir da aprovaçao da Lei de Diretrizes e Bases da Educaçao Nacional4 (Brasil, 1996), conhecida também como lei Darci Ribeiro5, todos os cursos de graduaçao viram-se na tarefa de reorganizar sua estrutura de formaçao profissional. A proposta apontava para uma grande oportunidade de reconstruir a formaçao do psicólogo em todo o território nacional, substituindo o Currículo Mínimo por diretrizes abrangentes.
Em 2001, a partir de uma proposta apresentada pelo Fórum de Entidades de Psicologia, o Conselho Nacional de Educaçao forneceu seu parecer após o qual seria considerada a primeira versao das Diretrizes Curriculares para os cursos de graduaçao em psicologia6. Nessa versao, a formaçao do psicólogo poderia ser feita sob três perfis: bacharel (o pesquisador), psicólogo (profissional da psicologia) e professor de psicologia, sendo que as agências formadoras deveriam oferecer ao menos duas delas. A formaçao do psicólogo a partir de perfis foi altamente criticada por segmentos de formadores e profissionais, já que sugeria uma fragmentaçao do saber e do fazer psicológicos.
Após várias tentativas de resoluçao dos impasses postos pelas divergências apontadas acima, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares7. Dela destacamos os seguintes princípios: a) Construçao e desenvolvimento do conhecimento científico em Psicologia; b) Compreensao dos múltiplos referenciais que buscam apreender a amplitude do fenômeno psicológico em suas interfaces com os fenômenos biológicos e sociais; c) Reconhecimento da diversidade de perspectivas necessárias para compreensao do ser humano e incentivo à interlocuçao com campos de conhecimento que permitam a apreensao da complexidade e multideterminaçao do fenômeno psicológico; d) Compreensao crítica dos fenômenos sociais, econômicos, culturais e políticos do País, fundamentais ao exercício da cidadania e da profissao.
Esses princípios, construídos que foram ao longo de duas décadas de discussao, devem orientar a formaçao do psicólogo em todo o território nacional. Importa-nos destacar neles a necessidade de construçao e desenvolvimento da ciência psicológica, a abertura para os múltiplos referenciais no entendimento dos fenômenos psicológicos e o reconhecimento de sua diversidade, além da compreensao do contexto histórico-cultural na constituiçao da subjetividade.
O percurso que fizemos até aqui foi para apresentar a nossa visao das transformaçoes vividas na formaçao de graduaçao em psicologia. Se em 1992, quando da Carta de Serra Negra, tínhamos 103 cursos de formaçao de psicólogos no Brasil; em 2008, segundo Lisboa e Barbosa, eram 396 cursos de psicologia no território nacional8. Esse número coloca a formaçao do psicólogo como um grande desafio, principalmente quando se trata do cumprimento dos princípios que destacamos mais acima. Tal desafio se assume nao só pela qualidade de ensino, mas principalmente pela dificuldade em se garantir a diversidade teórica e metodológica na formaçao deste profissional. É sabido que a formaçao se faz, sim, por meio de projetos pedagógicos consistentes, que orientem as práticas de ensino nos diferentes níveis de formaçao, mas é sabido, sobretudo, que um projeto pedagógico é efetivado por um conjunto de atores que o assumem como um ideário de formaçao sejam eles discentes, docentes ou instituiçao formadora.
Por certo a construçao dessas políticas de formaçao de psicólogos foi conquista de década, como registrado por Lisboa e Barbosa8. Muitas dessas iniciativas ocorreram no âmbito da luta quotidiana, por alunos em sala de aula, por colegas docentes e por situaçoes formais, como órgaos de representaçao da categoria profissional, científica ou estudantil.
O RELATO DE UMA EXPERIENCIA
Esboçamos a seguir algumas consideraçoes acerca de nossa experiência em um curso de graduaçao do interior do estado de Sao Paulo. Neste curso, o ensino de Gestalt-terapia foi introduzido no início da década de 1980 como conteúdo programático da disciplina Teorias da Personalidade (prevista no Currículo Mínimo). A época, era oferecido um estágio optativo na abordagem centrada na pessoa e outro em psicodrama. O que era considerado uma liberdade curricular na constituiçao do currículo pleno da instituiçao na verdade atendia a um pequeno número de alunos. Em 1994 foi criada a disciplina Teorias Humanistas na qual os conteúdos referentes à fenomenologia, à Gestalt-terapia e à abordagem centrada na pessoa eram apresentados aos alunos com um caráter teórico e sem as decorrentes aplicaçoes em estágios supervisionados.
A partir da primeira versao das Diretrizes Curriculares, em 2001, buscando atender à diversidade teórica, somada às repercussoes da disciplina citada, o curso passou a oferecer três sistemas teóricos em iguais condiçoes: teorias psicanalíticas, teorias humanistas e análise do comportamento, que usufruíam de mesma carga horária teórica e de atividades de laboratório que visavam ao exercício do método de cada um destes três sistemas. Um quarto sistema, teorias histórico-culturais, foi implementado com a mesma carga horária teórica, no entanto, sem as atividades laboratoriais.
A formaçao básica do psicólogo, assim organizada, possibilita uma fundamentaçao teórico-metodológica consistente para a prática profissional em psicologia. Sendo assim, os estágios em saúde também passaram a ser oferecidos nos três sistemas teóricos. Os estágios em teorias humanistas têm sido oferecidos na abordagem centrada na pessoa e em Gestalt-terapia e em diferentes campos, como saúde pública, hospital geral e clínica institucional.
Apresentamos aqui algumas reflexoes acerca do ensino da Gestaltterapia em práticas de estágio em saúde pública, em especial na rede de atençao primária à saúde, e de como estas práticas podem ser articuladas com a constituiçao da subjetividade; buscando, ainda, articular a concepçao de saúde do sistema de saúde brasileiro e o da abordagem gestáltica.
SAUDE, INTEGRALIDADE E GESTALT-TERAPIA
Traçar consideraçoes acerca da saúde sob o ponto de vista da abordagem gestáltica sempre poderá remeter-nos aos lugares mais diversos, uma vez que nao se encontram na literatura elementos que a aproximem da definiçao naturalista ou organicista que normalmente se atribui ao tema. Perls, Hefferline e Goodman2, ao se contraporem aos modelos biomédicos de psicoterapia, afirmaram que o problema de saúde/doença só pode ser compreendido na interaçao entre organismo e ambiente, ao que denominaram de "campo organismo/ambiente". O campo interacional é que nos possibilitaria a experiência da saúde ou da doença, rompendo com a dicotomia posta pelas visoes internalistas e externalistas.
Para compreendermos essa articulaçao nao é suficiente determo-nos no indivíduo, em seus conflitos chamados internos: seus mecanismos neuróticos ou mecanismos de evitaçao do contato; nao é suficiente, também, favorecermos o desenvolvimento de atitudes criativas para o contato, como se a nao criatividade fosse a geradora de seu sofrimento ou de sua doença. Se saúde ou doença, sofrimento ou nao sofrimento psíquico se constituem na articulaçao entre campo e indivíduo, é necessário que compreendamos também aquilo que se considera externo, ou seja, o próprio campo.
Ao partirmos da concepçao de que a saúde se estabelece por meio do contato bom - entendido como a interaçao campo organismo/ambiente, que se dá por meio de respostas motoras e sensíveis - que é também awareness2, é ilusório imaginarmos que basta o autoconhecimento, uma vez que a própria noçao de contato já sugere o outro, seja um outro mais próximo ou as dimensoes societais. Em outras palavras, entende-se que, para além dos sentidos e da racionalidade que se possam desenvolver sobre si mesmos, a condiçao de saúde envolve o conhecimento do outro e da cultura na qual se vive. No entanto, vale destacar que da ideia de saúde mental nao é possível isentar a de conflito, angústia e, consequentemente, a de sofrimento, uma vez que pelo próprio princípio homeostático nao é possível conceber uma harmonia (equilíbrio) duradoura ou permanente. Ao se considerar o conceito de polaridade, temos que é próprio do humano o conflito, sem que isso implique doença ou saúde, mas processo.
Dando uma maior abrangência ao que se acabou de afirmar, nao há como ignorar os interesses divergentes entre o indivíduo e a sociedade, que sao, por exemplo, geradores de conflitos. Daí a contribuiçao da abordagem gestáltica: o desenvolvimento de awareness necessita ser ampliado para outras dimensoes da existência, compreendendo o indivíduo no mundo, com sua tensoes, conflitos e ajustamentos criativos, na busca de resoluçoes.
Esta perspectiva de saúde coaduna-se com a do Sistema Unico de Saúde que em seu artigo terceiro reza que "a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentaçao, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educaçao, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da populaçao expressam a organizaçao social e econômica do País"4. Assim entendemos saúde, cujo conceito de integralidade faz-se um dos pilares do Sistema Unico de Saúde. Segundo Campos, esta perspectiva prevê que, de forma articulada, sejam ofertadas açoes de promoçao da saúde, prevençao dos fatores de risco, assistência aos danos e reabilitaçao, segundo a dinâmica do processo saúde-doença9.
O olhar do profissional deve ser totalizante, compreendendo o sujeito de forma biopsicossocial. Assim, o conceito de integralidade seria caracterizado pela assistência que procura ir além da doença e do sofrimento manifesto, buscando-se alcançar as necessidades mais abrangentes dos sujeitos. Portanto, a abordagem do profissional de saúde nao deve se restringir à assistência curativa, buscando, entao, dimensionar fatores de risco à saúde e, como consequência, a execuçao de açoes preventivas, como, por exemplo, da educaçao para a saúde.
As açoes desenvolvidas pelos estagiários em Unidades Básicas de Saúde vao além da aplicaçao da teoria e dos métodos gestálticos. Elas envolvem uma compreensao multidisciplinar e multiprofissional sobre o sofrimento apresentado pelos usuários que recorrem ao serviço público de saúde. Uma compreensao mais abrangente do sofrimento envolve, por outro lado, açoes também mais abrangentes que nao apenas aquelas estipuladas pela prática clínica tradicional. As práticas reclamam por uma intervençao que envolve, dentre outras possíveis modalidades clínicas, o matriciamento com diferentes profissionais, em especial as Equipes de Saúde da Família, e a clínica ampliada, que envolve a atençao intersetorial, como, por exemplo, a educaçao, a assistência e a segurança.
A prática clínica vista dessa maneira corrobora a perspectiva de Marcuse, que no prefácio de Eros e Civilizaçao diz que as categorias psicológicas transformaram-se em categorias políticas, rompendo com as fronteiras existentes entre psicologia, política e filosofia social. Diz ele que, sobre esse ponto de vista, o que se acredita ser particular, como as perturbaçoes e os sofrimentos, é, antes de tudo, uma perturbaçao do todo. Dessa forma, qualquer tentativa de cura ou de amenizaçao do sofrimento individual dependeria de uma cura do geral, ou seja, da sociedade10.
A visao de Perls3 aproxima-se da perspectiva de Marcuse ao afirmar que "as psicologias mais antigas descreviam a vida humana como um conflito constante entre indivíduo e seu meio. Por outro lado, nós o vemos como uma interaçao entre os dois..." Tal afirmaçao destaca a perspectiva gestáltica da totalidade, na qual a cisao entre indivíduo e sociedade, ou entre mundo interno e mundo externo, coloca-se como mera abstraçao. Nao se nega a existência de conflitos entre indivíduo e sociedade, uma vez que a própria noçao de polaridade já os implica e aponta para a tensao entre os interesses individuais e os sociais; no entanto, afirma-se que essas tensoes nao sao irreconciliáveis; sao, antes de tudo, um movimento no campo que tende à integraçao e ao crescimento, dado pelo ajustamento criativo. Vale ressaltar que por ajustamento criativo nao se entende a mera adaptaçao do indivíduo às condiçoes socialmente dadas; pelo contrário, trata-se das constantes transformaçoes vivenciadas e produzidas pelo indivíduo e pela sociedade.
Concluindo, afirmamos que o ensino da Gestalt-terapia nos cursos de graduaçao em psicologia nao deve estar restrito ao modelo da clínica tradicional sobre a qual foi construído, mas deve almejar a sua vinculaçao com as políticas sociais e as tendências nao corporativas das diferentes ciências e profissoes.
REFERENCIAS
1. Cruden RM. Uma breve história da cultura americana. Rio de Janeiro: Nórdica; 1994.
2. Perls F, Hefferline R, Goodman P. Gestalt-terapia. Sao Paulo: Summus; 1997.
3. Perls F. A Abordagem Gestáltica e testemunha ocular da terapia. Sao Paulo: Summus; 1981.
4. Dispoe sobre as condiçoes para a promoçao, proteçao e recuperaçao da saúde, a organizaçao e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, Lei no 8080 (1990). Ministério da Saúde.
5. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educaçao Nacional. Lei n° 9.394, (1996).
6. Diretrizes Curriculares para o Curso de Graduaçao em Psicologia. CNE/ CES 1.314/2001 (2001).
7. Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduaçao em Psicologia. Resoluçao n° 8 (2004).
8. Lisboa FS, Barbosa AJG. Formaçao em Psicologia no Brasil: um perfil dos cursos de graduaçao. Psicol Cienc Prof 2009, 29(4) [acessado set 2011]. Available from: http://pepsic.bvsalud.orgscielo.phpscript=sci_arttext&pid=S1414-98932009000400006&lng=pt&nrm=iso
9. Campos CEA. O desafio da integralidade segundo as perspectivas da vigilância da saúde e da saúde da família. Saúde e Ciência Coletiva. 2003;08(02).
10. Marcuse H. Eros e Civilizaçao. 8ª Ediçao. Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan; 1999.
* Psicólogo, Doutor em Psicologia Social pela PUC-Sao Paulo; docente do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, SP, Brasil.
Instituiçao: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, SP, Brasil.
Correspondência
Nilton Júlio de Faria
Rua Amador Bueno, 225, Apto. 73 T2,Vila Industrial
Campinas, SP, Brasil. CEP 13035-030
nfaria@uol.com.br
a Texto originalmente apresentado no XIII Encontro Nacional de Gestalt-Terapia e X Congresso Brasileiro da Abordagem Gestáltica, realizado na cidade de Sao Pedro-SP, em setembro de 2011.
artigo anterior | voltar ao topo | próximo artigo |
Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Sala 2218 - Porto Alegre / RS | Telefones (51) 3330.5655 | (51) 3359.8416 | (51) 3388.8165-fone/fax