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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2012; 14(2):17-29



Artigos Originais

Proposiçoes curriculares para a formaçao em Psicoterapias de Orientaçao Psicanalítica: o ensaio com metodologias ativas de aprendizagem da Universidade Federal de Sao Carlos

Curricular propositions for training in Psychoanalytic Psychotherapy: the essay with active teaching methods at the Universidade Federal de Sao Carlos

Cássia Regina Rodrigues Varga*; Egberto Ribeiro Turato**

Resumo

O presente trabalho apresenta a estruturaçao de um curso/programa de psicoterapias de orientaçao psicanalítica elaborado na perspectiva das metodologias ativas de aprendizagem e com o objetivo de abarcar as questoes que compoem a contemporaneidade e o campo psicoterápico atual. A estrutura curricular foi organizada em três eixos educacionais: sistematizaçao, prática profissional e avaliaçao, que objetivam, respectivamente: 1) desenvolver os elementos teóricos que compoem o processo psicoterápico através de atividades de ensino-aprendizagem, tais como: situaçoes-problema, conferências e grupos de estudos; 2) explorar o fazer por meio de supervisoes, seminários clínicos e psicoterapia pessoal; e 3) acompanhar o desenvolvimento cognitivo e a capacidade crítico-reflexiva alcançados através de exercícios cognitivos e da elaboraçao de um artigo. Com base na teoria psicanalítica, sao esboçados os momentos do tratamento das psicoterapias de orientaçao psicanalítica, de apoio e breves. Em que pesem as dificuldades, sao necessárias avaliaçoes constantes dos processos de ensino-aprendizagem para que as instituiçoes formadoras nao certifiquem pessoas com deficiências e sem a devida qualificaçao para o fazer psicoterápico.

Descritores: Psicoterapia; Ensino; Terapia Psicanalítica; Psicoterapia Breve; Psicoterapia de Apoio

Abstract

This work presents the organization of a course/program in Psychoanalysis- Oriented Psychotherapies that is based on active learning methodologies and intended to discuss some issues related to contemporaneity in general and the current psychotherapy field in particular. The curriculum structure was organised according to three axes: systematisation, professional practice, and assessment, their respective aims being: 1) to develop the theoretical elements that are part of the psychotherapeutic process using teaching-learning activities such as problem situations, conferences, and study groups; 2) to explore the psychotherapeutic practice by means of supervisions, clinical seminars and individual psychotherapy; 3) to observe cognitive development and critical and reflective skills acquired through cognitive exercises and the composition of a paper. The moments of the treatment using psychoanalysisoriented, support and short-term psychotherapies are outlined based on the psychoanalytic theory. Despite the difficulties involved, teaching-learning processes should be constantly assessed so that educational institutions do not confer degrees on people having no proper qualification and lacking the ability to practice psychotherapy.

Keywords: Psychotherapy, Teaching, Psychoanalytic Therapy, Brief Psychotherapy, Supportive Psychotherapy.

 

 

INTRODUÇAO

O fazer em psicoterapia exige cada vez mais que o profissional seja capaz de aplicá-la considerando seu sentido mais estrito: "um método de tratamento mediante o qual um profissional treinado, valendo-se de meios psicológicos, especialmente a comunicaçao verbal e a relaçao terapêutica, realiza, deliberadamente, uma variedade de intervençoes, com o intuito de influenciar um cliente ou paciente, auxiliando-o a modificar problemas de natureza emocional, cognitiva e comportamental, já que ele o procurou com essa finalidade"1.

A análise das dificuldades que os profissionais enfrentavam no mercado de trabalho durante a década de 1980 para dar conta das necessidades de saúde das pessoas, em paralelo à discussao sobre os pilares da formaçao no campo da saúde, evidenciou a falta de habilidades com que os profissionais concluíam a graduaçao, consequência das limitaçoes de um processo de ensino-aprendizagem fundado na teoria, na transmissao do conhecimento, entre outros aspectos. Portanto, essa análise apontou as lacunas dos processos de ensino-aprendizagem e a negaçao da formaçao como "ato, efeito ou modo de formar; maneira por que se constituiu uma mentalidade, um caráter, ou um conhecimento profissional"2.

Essa ruptura paradigmática possibilitou que as instituiçoes formadoras da área médica que estavam redefinindo seus modelos de ensino também redefinissem o ensino-aprendizagem em psicoterapia. Até entao, essas escolas realizavam cursos sobre temáticas específicas e/ou seminários clínicos com carga horária delimitada, ofertados a partir das necessidades dos profissionais e/ou de outras instituiçoes. Em funçao desses fatores, o Projeto Político-Pedagógico do Curso de Psicoterapias de Orientaçao Psicanalíticaª foi estruturado de modo a atender três pressupostos: 1) ser orientado por competência; 2) integrar prática e teoria; 3) apresentar uma orientaçao educacional construtivista. A partir desses pressupostos, a estrutura curricular foi organizada em três eixos educacionais: sistematizaçao, prática profissional e avaliaçao que objetivam, respectivamente: 1) desenvolver os elementos teóricos que compoem o processo psicoterápico através de atividades de ensino-aprendizagem, tais como: situaçoes-problema, conferências e grupos de estudos; 2) explorar o fazer por meio de supervisoes, seminários clínicos e psicoterapia pessoal; e 3) acompanhar o desenvolvimento cognitivo e a capacidade crítico-reflexiva alcançados pelos profissionais através de exercícios cognitivos e da elaboraçao de um artigo.


O PROJETO PEDAGOGICO

Este projeto pedagógico e toda a fundamentaçao apresentada para o método do processo de ensino-aprendizagem foram retirados do Projeto Político- Pedagógico do Curso de Medicina da Universidade Federal de Sao Carlos (UFSCar), cuja proposta busca substituir processos de memorizaçao e de transferência de informaçoes e habilidades pela construçao e significaçao de saberes a partir do confronto com situaçoes reais e/ou simuladas da prática profissional, estimulando o desenvolvimento das capacidades crítico-reflexivas e de aprender a aprender3.

As situaçoes simuladas ou reais cumprem o papel de disparadoras do processo de reflexao e de teorizaçao, favorecendo a relaçao com a realidade dos participantes do curso e possibilitando a exploraçao dos desempenhos esperados para o fazer em psicoterapia. A exploraçao das situaçoes-problema objetiva a explicitaçao dos saberes prévios (conhecimentos, valores, percepçoes, experiências, entre outros) trazidos por cada profissional e a identificaçao das necessidades individuais e daquelas comuns ao grupo, propiciando que haja o desenvolvimento da percepçao do que nao se conhece e do que se conhece e estimulando, assim, a construçao de novos significados e saberes que possibilitem o desenvolvimento de competência para o cuidado psicoterápico3. Pautando-se nos referenciais da aprendizagem significativa e de adultos, tanto a problematizaçao das experiências prévias como o encontro com a experiência de outros profissionais potencializam a assimilaçao do conhecimento novo, cuja construçao requer fundamentalmente que o conteúdo seja potencialmente significativo e que haja uma atitude favorável para aprender.

Os momentos do processo de ensino-aprendizagem sao a) identificaçao do problema e formulaçao de explicaçoes e hipóteses: os participantes exploram os contextos que se articulam e conferem singularidade à experiência de saúde-doença apresentada, o que lhes permite expressar o conhecimento preexistente e identificar as capacidades presentes e ausentes em cada um; b) elaboraçao de questoes de aprendizagem: o processo de aprendizagem constitui um enfrentamento dos próprios limites e fronteiras e, em algum grau, produz desconfortos e incômodos que mobilizam e desafiam as pessoas, abrindo-as para o novo, o que significa que as questoes de aprendizagem orientam a busca de novas informaçoes e, embora possam ser produzidas ao longo de todo o trabalho, o grupo nesse momento seleciona as que considera fundamentais para o estudo; c) busca de novas informaçoes: realizada através de pesquisas e visa à ampliaçao do conhecimento; além disso, espera-se que essa açao favoreça a seleçao e eleiçao de fontes de informaçao mais científicas; d) construçao de novos significados: a discussao das novas informaçoes permite a análise e a crítica tanto das fontes como das próprias informaçoes. A construçao de novos significados se dá pelo confronto entre os saberes prévios dos participantes e as novas informaçoes. A articulaçao entre os novos saberes e a situaçao-problema permite transpor as novas capacidades para outras situaçoes da realidade3.

Em síntese, a reflexao sobre a situaçao, a explicaçao do problema e a busca e discussao de novas informaçoes, orientadas por questoes de aprendizagem, permitem a teorizaçao e a construçao de novos significados, à luz dos quais se deve conduzir a prática em psicoterapia de orientaçao psicanalítica. A Figura 1 permite a visualizaçao do processo descrito.


Figura 1. Espiral construtivista do processo de ensino-aprendizagem a partir da exploraçao de uma situaçao-problema (Traduzido e adaptado de Lima, 2002)4.



O esquema de representaçao do processo de ensino-aprendizagem ilustra o movimento em espiral que ocorre no trabalho do grupo. O favorecimento de uma postura proativa por parte dos participantes, pela construçao de relaçoes solidárias, respeitosas e éticas, possibilita a sua liberdade de expressao. Por essa razao, a explicitaçao de expectativas e o estabelecimento de um contrato de trabalho com a coordenaçao do curso visam a acordar os critérios que nortearao a participaçao e a avaliaçao do processo e dos produtos obtidos3.

O objetivo geral do curso/programa é promover o estudo atualizado da teoria e da técnica psicoterápica de orientaçao psicanalítica e formar especialistas nessa área de atuaçao. Os objetivos específicos sao aprofundar o conhecimento teórico e científico de temas concernentes à natureza, estrutura e funcionamento da psicoterapia; promover a atualizaçao de questoes contemporâneas relacionadas aos métodos psicoterápicos; e proporcionar instrumental teórico e prático para a consolidaçao da atuaçao em psicoterapia.


O EIXO DA SISTEMATIZAÇAO

O curso tem dois módulos: Fundamentos das Psicoterapias de Orientaçao Psicanalítica; e A Psicoterapia Psicodinâmica Breve e as Psicoterapias nos Transtornos Específicos. No primeiro módulo sao desenvolvidos os conceitos e os aspectos que devem ser observados e analisados durante a avaliaçao diagnóstica e também as intervençoes que dao base à técnica psicoterápica. Além desses conteúdos, é desenvolvida a Unidade de Fundamentos e os critérios gerais de pesquisa com o objetivo de que o profissional possa identificar os fundamentos dos métodos de pesquisas qualitativas que podem ser utilizados na prática clínica psicoterápica e na saúde mental em geral.

No segundo módulo, desenvolve-se o estudo atualizado da teoria da técnica das psicoterapias de orientaçao psicanalítica, promovendo-se conhecimentos fundamentais para a prática. Integram-se os aspectos estudados no primeiro módulo com a utilizaçao de técnicas de intervençao adequadas aos diversos tipos de transtorno mental. O segundo módulo foi desenvolvido para que o profissional analise os aspectos que constituem cada transtorno e as modalidades de intervençao que sao necessárias em cada eixo patológico. Dada a complexidade do trabalho terapêutico, o enfoque nos seus principais autores, realizado na unidade Teoria Psicanalítica, é desenvolvido nesse módulo com o mesmo objetivo do primeiro.


AS UNIDADES EDUCACIONAIS

Os dois módulos sao constituídos por uma série de unidades, as quais sao descritas a seguir.

A Unidade I, Processo Psicoterápico, explora a diferença entre Psicanálise e Psicoterapia; os tipos de Psicoterapia mais atuais para adultos e crianças e adolescentes; os conceitos psicanalíticos e o fazer em psicanálise na atualidade; as bases da avaliaçao psicodinâmica para adultos e crianças e adolescentes; o conceito de realidade interna e externa; o planejamento em psicoterapia; os processos de focalizaçao, contrato, enquadramento e o processo psicoterapêutico em adultos e crianças e adolescentes; a aliança terapêutica e a conduçao do início do processo psicoterápico em adultos e crianças e adolescentes; a técnica psicoterápica (transferência, contratransferência, atuaçoes, reaçao terapêutica negativa, intervençoes do terapeuta, níveis de mudança e critérios de melhora e término na psicoterapia).

A Unidade II, Teoria Psicanalítica, apresenta as contribuiçoes de Freud, Melanie Klein, Bion e Winnicott. Nessa unidade sao explorados os textos básicos desses autores.

Na Unidade III, Fundamentos e os critérios gerais de pesquisa, sao discutidos temas como ética e psicoterapia; requisitos de busca e recuperaçao de informaçao impressa, digital e online; critérios de confiabilidade da informaçao; bases de dados; concepçao de ciência e pesquisa qualitativa em settings clínicos; desenhos de pesquisa em psicoterapia de orientaçao psicanalítica; utilizaçao da pesquisa qualitativa em settings clínicos; os diversos instrumentos de pesquisa em psicoterapia psicanalítica e as bases das pesquisas na prática clínica psicoterápica.

Na Unidade IV, Psicoterapia Psicodinâmica Breve, é discutida a primeira entrevista e a avaliaçao em psicoterapia breve (PB) em adultos e em pais/ crianças (PBI), as técnicas de psicoterapia, indicaçoes e contraindicaçoes - principais autores - e as intervençoes.

Na Unidade V, Aspectos Centrais do Processo Psicoterápico nos diversos transtornos, sao apresentados os critérios diagnósticos, a estrutura e o funcionamento dos transtornos mentais, bem como manejo clínico nas psicoterapias psicanalíticas dos transtornos do humor, de ansiedade, obsessivo-compulsivos, dissociativos e conversivos, somatoformes, esquizofrênicos, da sexualidade do homem, da sexualidade da mulher, da infância, da adolescência, alimentares, da personalidade e do alcoolismo e substâncias psicoativas.

Na Unidade VI, Fundamentos para a redaçao de um artigo, é apresentada a organizaçao de um artigo e sao realizadas análises de artigos científicos.

Por fim, na Unidade VII, As Terapêuticas Integradas, sao explorados o histórico da psicologia clínica e da psicoterapia, o contexto atual da psicologia clínica e da psicoterapia, as bases neurobiológicas dos transtornos mentais (ansiedade, psicoses e humor), a psicoterapia psicanalítica e a farmacologia, cuidados necessários, as diferenças entre a psicoterapia individual e a grupal, o manejo da psicoterapia grupal e da psicoterapia de casal e família.


O EIXO DA PRATICA PROFISSIONAL

A estratégia prática visa ao treinamento técnico e é desenvolvida através do atendimento, pelo participante da atividade, de no mínimo três pessoas em psicoterapia semanalmente tanto no âmbito público-institucional quanto no privado. As sessoes de atendimento sao realizadas seguindo-se o setting psicoterápico, com a duraçao de cinquenta minutos. No âmbito público- institucional, os atendimentos sao em salas ou do serviço-escola da Universidade Federal de Sao Carlos, Unidade de Saúde Escola (USE), ou do Departamento de Serviço Social (DESS), ou ainda de algum serviço na cidade em que o especializando resida. As salas devem ter duas cadeiras e uma mesa; as sessoes devem ser agendadas de forma a garantir que sala, dia e horário de atendimento permaneçam os mesmos. No âmbito privado, o setting é o consultório ou clínica particular em salas com duas poltronas. Essas sessoes de psicoterapia sao transcritas, em forma de diálogo, após o consentimento do usuário e sao discutidas nos seminários clínico-teóricos semanais, de uma a três horas de duraçao, coordenados por um dos supervisores. As transcriçoes sao sigilosas e confidenciais, compondo o relatório de atendimento, e sao entregues exclusivamente ao coordenador do curso, que os arquiva em armários trancados que ficam na secretaria do curso. Todos os atendimentos realizados aos usuários sao registrados nos seus prontuários, de forma resumida, atendendo as normas éticas profissionais. Os seminários clínicoteóricos visam a analisar o processo desenvolvido pelo participante, além de discutir os fundamentos teórico-técnicos do processo psicoterápico.

Os casos atendidos pelos especializandos no âmbito institucional, à época da finalizaçao do curso, sao sempre avaliados a fim de se decidir se os usuários necessitam de continuidade ou apresentam condiçoes de melhora. Os que necessitam de continuidade seguem ou com o mesmo especializando, caso este se disponha a continuar o atendimento supervisionado, ou com outro especializando, ou podem ainda ser assumidos pelo coordenador do curso, no caso dos usuários atendidos nos serviços-escola. Os usuários que apresentam melhora e/ou remissao da sintomatologia têm o processo psicoterápico finalizado. Participam desse programa todos os usuários dos serviços-escola encaminhados para psicoterapia pelos profissionais da instituiçao e/ou dos serviços do Sistema Unico de Saúde.

É indicada uma variedade de pessoas para as diversas modalidades de processos psicoterápicos. Para os de orientaçao psicanalítica sao indicadas pessoas que apresentam "traços de personalidade ou problemas caracterológicos desadaptativos; transtornos leves ou moderados de personalidade; atrasos ou lacunas em tarefas evolutivas; conflitos internos que interfiram nas relaçoes pessoais atuais"1. Para as psicoterapias de apoio de longo prazo sao indicadas pessoas que apresentam "déficits crônicos de ego e com funcionamento comprometido, teste de realidade comprometido (psicoses, transtornos bipolares, retardo mental), controle dos impulsos deficiente (transtornos de personalidade borderline, problemas cerebrais, TDAH), relaçoes interpessoais pobres, dificuldade de experimentar e controlar os afetos (ansiedade, raiva), dificuldade para sublimar, pouca capacidade para introspecçao (retardo mental), pouca capacidade de verbalizar pensamentos e sentimentos e problemas físicos crônicos e incapacitantes"1. Já para as psicoterapias breves, sao indicados os pacientes "psiquiatricamente saudáveis, bem adaptados, com bom suporte social e com boas relaçoes interpessoais, pacientes com predomínio de defesas mais maduras e flexíveis, com teste de realidade preservado e com boas expectativas em relaçao ao futuro, pacientes capazes de utilizar os recursos de que dispoem, pacientes momentaneamente atravessando situaçoes de crise, trauma ou desastre natural, pacientes que, em resposta à crise, funcionam abaixo de sua capacidade"1.

Em que pese o papel e a funçao dos critérios de indicaçao para a prática clínica, pois sao parâmetros para o trabalho nesse campo, é importante apontar que, na relaçao de uma determinada dupla, cada vez mais há a necessidade de problematizar os diversos matizes que compoem dado contexto e poder ousar, transgredir e realizar um tratamento em circunstâncias que possam diferir das indicadas. Eventualmente, possibilidades que se enquadrariam como contraindicaçoes podem se constituir em indicaçoes, de modo que os critérios de indicaçao se configuram como balizas móveis do trabalho psicoterápico.


OS FUNDAMENTOS PARA AS PSICOTERAPIAS

Ancorados na concepçao difundida por Freud de que a psicanálise é constituída por três pilares - teoria, método de tratamento e método de investigaçao -, compreendemos que o fazer psicoterápico se edifica na teoria psicanalítica e as transformaçoes que marcam a história desse arcabouço teórico fazem com que, na contemporaneidade, tanto na prática quanto na pesquisa, devamos "entender o processo psicoterápico como ocorrendo em um continuum expressivo/apoio, mais de acordo com a realidade prática clínica e da pesquisa empírica"5.

Somada a essa concepçao, a pedra angular deste curso/programa é a perspectiva desenvolvimentista que tem como pensamento o pressuposto de que os eventos infantis ficam impressos nos modelos da vida adulta. Nessa visao, os padroes repetitivos de relaçoes com as pessoas (relaçoes de objetos) sao caricaturas de self cujas raízes provêm do precipitado da complexa rede que envolve predisposiçoes genéticas e as relaçoes do mundo interno e externo (meio/realidade externa). Essas raízes sao delineadas através da primazia das dinâmicas intrapsíquicas e internalizaçoes vivenciadas na infância.

Assentados nessa perspectiva e na concepçao de que o ser humano é determinado biopsicossocioculturalmente, entendemos que o tratamento será mais bem desenvolvido se o psicoterapeuta puder compreender melhor a articulaçao dos diversos vértices do processo saúde-doença da pessoa.

Desse modo, o princípio geral que norteia o enquadramento dos tratamentos é a postura ativa do psicoterapeuta durante o processo. Ele senta- se face a face com seu paciente e as sessoes sao realizadas na frequência de uma a três vezes por semana, após avaliaçao da natureza do problema/ necessidade da pessoa que buscou auxílio.

O tratamento se inicia com a avaliaçao psicodinâmica, uma açao de natureza psicológica cujas finalidades sao "dimensionar a psique (ou a personalidade) do entrevistado, independentemente de que esteja sadio ou doente"6 e elaborar hipóteses diagnósticas, que, na visao de Gabbard (1998), sao compostas por duas dimensoes: 1) descritiva, que compreende a exposiçao circunstanciada de sintomas, sinais e problemas da pessoa; e 2) psicodinâmica ou psicológica, que compreende as formas predominantes que a pessoa utiliza na sua dinâmica mental5. Esta dimensao envolve a exploraçao dos vários vértices da dinâmica psíquica da pessoa: as formas predominantes de pensar, se relacionar, sentir, tratar os outros tanto no contexto dos relacionamentos infantis como na atualidade; até que ponto e de que forma tolera a angústia, o prazer, o desprazer e a frustraçao; quao rígido ou ineficiente pode ser seu superego, de que maneira controla as pulsoes agressivas ou de morte, vida e amor e as epistemofílicas ou de conhecimento. Especulase ainda o que a pessoa espera para si e de si, como e o que diferencia em seus próprios conteúdos mentais dos que pertencem a outras pessoas e como se estabelecem as manifestaçoes transferenciais e contratransferenciais.

Simultaneamente ao momento de avaliaçao, é realizado o processo de focalizaçao, que, a nosso ver, é a centralidade dos processos psicoterápicos orientados pela teoria psicanalítica. O foco se caracteriza, segundo Beck, em funçao dos objetivos do tratamento, por constituir "por analogia a um foco infeccioso somático, o conflito psicológico profundo [...] a direçao, o fio condutor do trabalho psicoterapêutico"7.

No estabelecimento do foco os afetos sao mobilizados e o paciente se aproxima das dores de algo infeccioso. "Essa mobilizaçao de afetos e a direçao tomada pelo material associativo é que parecem fornecer a confirmaçao de que o rumo da avaliaçao está correto"8. Após a focalizaçao, o momento que segue é o contrato - "funçao estruturante no setting psicoterápico na medida em que cria um arcabouço, um ambiente que permite observar manifestaçoes inconscientes, fantasias, resistências, reaçoes transferenciais e contratransferenciais, assim como manifestaçoes do caráter"9.

Com a contratualizaçao dá-se o início do tratamento, cujo trabalho técnico pauta-se nos dispositivos conceituais de transferência, resistência, contratransferência, inconsciente, determinismo psíquico e fantasias inconscientes. Todavia, o trabalho psicoterápico tem

[...] como meta principal a abordagem do conflito atual com as devidas modificaçoes desejáveis e possíveis do comportamento e da estrutura do caráter, entretanto, sem o objetivo amplo de resolver a patologia caracterológica por meio da análise do conflito genético reeditado na relaçao transferência/contratransferência. [...] Aspectos parciais da transferência sao interpretados de forma selecionada, circunscrita e com objetivos bem específicos, como, por exemplo, quando resistências se apresentam estagnando o processo psicoterápico10 (p. 376).


O psicoterapeuta utiliza para o manejo técnico das problemáticas observadas a esteira do continuum de intervençoes expressivas-de apoio, como citado por Gabbard (1998), que em uma ponta enquadra as interpretaçoes tanto transferenciais como extratransferenciais, seguidas de confrontaçao, clarificaçao, encorajamento para elaborar, validaçao empática, conselho e elogio até a afirmaçao na outra ponta5. Além dessas intervençoes, as perguntas e o assinalamento sao utilizados no tratamento. Essas intervençoes constituem-se em ferramentas que servem para que sejam exploradas as dimensoes consciente, pré-consciente e inconsciente do mundo mental do paciente a fim de que os conflitos nucleares e focais sejam resolvidos.

O término do tratamento nao tem necessariamente como base a remissao dos sintomas e/ou conflitos. O objetivo é que, ao longo do processo, possam ocorrer mudanças psíquicas que impliquem desenvolvimento da capacidade de representaçao mental das percepçoes internas e externas, ampliaçao das relaçoes entre essas representaçoes e maior capacidade adaptativa. Em síntese, a finalizaçao do tratamento tem como perspectiva que o paciente alcance "maior capacidade de usufruir a vida. O terapeuta registra modificaçoes mais maduras e estáveis na relaçao transferência/contratransferência e no modo como sao descritas as vivências extratransferenciais [...] as manifestaçoes do meio apontam modificaçoes e melhores relaçoes interpessoais. A convergência desses três indicadores registraria a presença efetiva de uma mudança psíquica como resultado terapêutico"10.

Neste desenho os tratamentos nao possuem um tempo definido, mas costumam durar de um a três anos.


O EIXO DA AVALIAÇAO

A avaliaçao é considerada uma atividade permanente e parte do processo de ensino-aprendizagem, permitindo o acompanhamento dos avanços e das dificuldades e a realizaçao das intervençoes necessárias aos participantes, ou seja, professor e especializando. Assim, o sistema de avaliaçao do Curso de Especializaçao tem caráter formativo e somativo, com enfoques no especializando, no docente e no curso.

O processo de avaliaçao formativa é composto de autoavaliaçao e avaliaçoes sobre o desempenho dos supervisores. A avaliaçao somativa do desempenho do especializando é composta de autoavaliaçao e avaliaçao do supervisor sobre o desempenho de cada profissional no atendimento clínico.

As avaliaçoes com características predominantemente formativas sao realizadas verbalmente ao final dos seminários clínicos, o que permite a correçao de fragilidades e a melhoria do processo. Uma síntese dessas avaliaçoes é formalizada de maneira escrita em documentos específicos ao final de cada supervisao de 30 horas, o que confere às avaliaçoes caráter somativo. Ainda com caráter somativo há os Exercícios de Avaliaçao Cognitiva, compostos por um caso clínico com seguimento psicoterápico cujo objetivo é realizar a síntese das unidades ministradas, promovendo a integraçao do conhecimento. Por essa razao, os exercícios nao se caracterizam como avaliaçoes específicas das unidades, mas como articulaçao destas. Ao longo do curso sao quatro exercícios, distribuídos em funçao do conjunto de conteúdos das unidades e visando a integrar e correlacionar tais conteúdos. Em síntese, os especializandos sao avaliados por meio de um conjunto de instrumentos que permitem revelar seu desempenho nas atividades de ensino-aprendizagem e o grau em que os objetivos educacionais e de aprendizagem foram atingidos.

Como critérios de recuperaçao, será indicado ao especializando, ao final de cada exercício, material bibliográfico a fim de fornecer elementos para seu estudo e recuperaçao de suas limitaçoes. Ao final do quinto exercício insatisfatório, ele terá outra oportunidade de melhorar seus desempenhos insatisfatórios através do fornecimento de um novo exercício. A indicaçao de referenciais bibliográficos e de um novo exercício diminui o estigma punitivo das avaliaçoes de verificaçao de rendimento. A partir das dificuldades e necessidades do especializando, o plano, com a prescriçao individualizada, é acompanhado pelo coordenador. Os critérios de aprovaçao no curso sao a frequência de 85%, o rendimento escolar satisfatório nas unidades teóricas e a entrega de artigo recebido por uma revista.


DIFICULDADES, LIMITAÇOES E PROPOSIÇOES FUTURAS

O cenário que abriga o ensino-aprendizagem em psicoterapia contém as mesmas vicissitudes do ensino brasileiro em geral, que é marcado por dificuldades financeiras, de estrutura, de tempo, a busca de soluçoes imediatistas por parte dos estudantes, entre outras. Embora o mercado de trabalho apresente grande demanda por profissionais pós-graduados, a maioria destes nao está qualificada para atuar no campo profissional da psicoterapia. Alguns sequer participaram de um processo pessoal. Em que pesem as dificuldades, sao necessárias avaliaçoes constantes dos processos de ensino-aprendizagem para que as instituiçoes formadoras nao certifiquem pessoas com deficiências e sem a devida qualificaçao para o fazer psicoterápico. Posto isso, para que um curso/programa possa atender as demandas que estruturam esse fazer, os custos inerentes a esse processo, sejam eles pessoais, financeiros, ou relativos a tempo, precisam ser considerados, inclusive pelos profissionais que pretendem se inserir nessa área. Isso nao significa que nao devamos buscar cada vez mais ampliar o acesso dos profissionais; ao contrário, é preciso mais abertura e é preciso que cada vez mais as instituiçoes lutem por isso. Contudo, é ainda expressiva a gama de dificuldades e limitaçoes enfrentadas.

Para que nao fiquemos submersos nas questoes mercadológicas, até mesmo o oferecimento de turmas anuais é preciso ser analisado. Será que as instituiçoes estao dando conta de quem convidam a se aprimorar?

Guardam-nos, neste momento, as palavras de Freud, que ainda soam contemporâneas, porque, a nosso ver, enfatizam o ato de analisar a complexidade do processo saúde-doença, do ensinar e do estar psicoterapeuta: "Ponho ênfase na exigência de que ninguém deve praticar a análise se nao tiver adquirido o direito de fazê-lo através de uma formaçao específica. Se a pessoa é ou nao médica, a mim me parece sem importância"11.


REFERENCIAS

1. Cordioli AV. e col. Psicoterapias: abordagens atuais. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.

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7. Beck D. O foco e sua determinaçao. In: Gilliéron E. Introduçao às psicoterapias breves. Sao Paulo: Martins Fontes; 1997. p. 78-84.

8. Valério MHG. Focalizaçao. In: Eizirik CL, Aguiar, RW, Schestatsky SS. Psicoterapia de Orientaçao Psicanalítica: fundamentos teóricos e clínicos. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2005. p. 219-226.

9. Lucion NK, Knijik L. Contrato. In: Eizirik CL, Aguiar, RW, Schestatsky SS. Psicoterapia de Orientaçao Psicanalítica: fundamentos teóricos e clínicos. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2005. p.227-235.

10. Romanowski R, Escobar JR, Sordi RE, Campos MS. Níveis de mudança e critérios de melhora. In: Eizirik CL, Aguiar, RW, Schestatsky SS. Psicoterapia de Orientaçao Psicanalítica: fundamentos teóricos e clínicos. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2005. p.376-385.

11. Freud S. A questao da análise leiga. In: Freud S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Ediçao Standard Brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago; 1989. Vol XX.p. 205-285










* Professora Adjunta do Departamento de Medicina do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de Sao Carlos.
** Professor Titular do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.

Correspondência
Cássia Regina Rodrigues Varga
Av. Miguel Damha, 1400/27. Parque Ecológico Damha
Sao Carlos - SP, BrasilCEP 13565904

ª O primeiro Projeto Político-Pedagógico dessa natureza, com a mesma nomenclatura, foi estruturado na Faculdade de Medicina de Marília em 1999 com um grupo de outros professores médicos psiquiatras e psicólogos sob a coordenaçao da professora Cássia Regina Rodrigues Varga e foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educaçao do Estado de Sao Paulo.

 

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