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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2012; 14(2):7-11



Editorial

A integraçao de múltiplos vértices na formaçao dos psicoterapeutas da infância e da adolescência

The Integration of the Multiple Training Vertexes of Child and Adolescence Psychotherapy

Norma U. Escosteguy*

 

 

Foi com grande prazer que recebi o convite para este retorno à RBP, agora para participar, por meio deste editorial, da série de números temáticos sobre o ensino da psicoterapia no Brasil, proposta nesta atual fase de revitalizaçao da RBP.

Em 2007, realizou-se em Porto Alegre o XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que foi precedido pelo Pré-Congresso de Psicoterapia. Tanto a epígrafe que anunciou o Congresso Brasileiro - a Psiquiatria para a pessoa: o acolhimento da pluralidade - quanto a desse Pré-Congresso de Psicoterapia - Psicoterapia para a pessoa: Por detrás de um diagnóstico há uma pessoa com seu tratamento compartilhado, resultado de um encontro clínico - apontavam decisivamente para os rumos atuais das questoes que se incluem em todo processo psicoterápico.

Paciente e terapeuta: trata-se de uma dupla no campo. É um encontro de duas mentes, solicitadas em suas funçoes conscientes e inconscientes: estabelecem- se ressonâncias, verbais e nao verbais, únicas em cada díade terapêutica.

Quando se trata de crianças e adolescentes, no entanto, a frase ainda exige acréscimos específicos: a psicoterapia para a pessoa torna-se a psicoterapia para a criança e para o adolescente. Mas ela também envolve sempre, e é, de alguma forma, dirigida para os pais ou responsáveis pela criança, e, muitas vezes, pelo adolescente.

Se "por detrás de um diagnóstico há uma pessoa" - no nosso caso, há uma criança ou um adolescente em seu ambiente com seu tratamento compartilhado, resultado de um encontro clínico plural, além de único; pois, desde a avaliaçao diagnóstica, estaremos também diante de um grupo familiar com seu peculiar entrecruzamento (positivo ou negativo) de interaçoes (conscientes ou nao, além de transgeracionais) - grupo parental/ familiar corresponsável participante do processo através do qual se estrutura a personalidade, ou a subjetividade, do nosso paciente.

A formaçao dos psicoterapeutas da infância e da adolescência, tal como se reflete e se localiza no nosso meio, tem uma história rica e nao linear. Muitos dos terapeutas formadores das geraçoes mais novas construíram suas experiências iniciais no exterior em serviços com orientaçoes muitas vezes bastante diversas.

Mas a evoluçao científica dos últimos anos acrescenta exigências sempre renovadas: esses tempos de complexidade desafiam, de uma parte, nossa capacidade de integraçao enquanto apontam simultaneamente numa tensao dialética para a necessidade de maior foco e especializaçao.

Para circunscrever uma formaçao que se desdobra em muitas facetas, necessitamos abordar vários vértices: a importância dos aportes da chamada "psiquiatria do bebê", a necessária pluralidade teórica como base dessa formaçao, as peculiaridades da avaliaçao na clínica de crianças e suas famílias, as relaçoes entre funçoes parentais e funçoes terapêuticas, as peculiaridades da clínica da adolescência e sua família, o valor dos testes psicológicos e da visao de trabalho em equipe multidisciplinar, a importância da elaboraçao de trabalhos escritos, além da experiência com setores específicos de trabalho (emergências, interconsultas, capsis, adoçao, entre outros).

Tanto para o processo de avaliaçao diagnóstica quanto no processo de escolha terapêutica, em relaçao aos sintomas ou falhas apresentadas pelo paciente, a questao do desenvolvimento, examinada sob múltiplos focos, ocupa posiçao central. A própria psiquiatria infantil (psiquiatria da infância e da adolescência) hoje passou a ser nominada, com toda a adequaçao, como psiquiatria do desenvolvimento.

Dos bebês à adolescência, com larga passagem pela idade escolar, é certo que os processos afetivos e intelectuais necessários para a nutriçao do desenvolvimento humano sao inter-relacionais - ou intersubjetivos. É a relaçao humana que pode cumprir seu papel estruturante ou, ao contrário, pode causar profundas marcas precoces que se mantêm no inconsciente nao reprimido, transformando-se em falhas que vao exigir posteriores reparaçoes de modo terapêutico. É interessante (e obrigatório) observar, entao, como a clássica equaçao etiológica de Freud se reatualiza, tornando-se ainda mais complexa, com os conceitos atuais, por exemplo, de epigenética, que vem se desenvolvendo em ritmo vertiginoso. E mais relevante ainda é considerar a importância do ambiente como motor das interaçoes que podem alterar - epigeneticamente - a expressao da carga genética original.

É o ambiente responsável potencial tanto por promover atividades protetoras (expansao de fatores de resiliência, por exemplo) quanto por engendrar experiências deletérias: as pesquisas atuais demonstram que assistir a violência e maus tratos já é bastante para imprimir uma alteraçao que pode perdurar nas percepçoes e sentimentos de crianças que vao se tornar adultos, instaurando-se um ciclo transgeracional capaz de manter - e explicar - as interaçoes patológicas que se realimentam. Sao forças patogênicas poderosas, muitas vezes somadas ou multiplicadas, que podem impor limitaçao e impotência ao desenvolvimento de uma criança.

Além da avaliaçao de prejuízos com instrumentos cada vez mais sofisticados, amplia-se a discussao sobre os recursos terapêuticos que poderiam alterar esses processos patológicos, únicos em cada paciente, em cada núcleo familiar.

Desde 1994, formou-se nos EEUU uma força-tarefa denominada Zero to Three1, que publicou a Classificaçao Diagnóstica 0-3 (de zero a três anos) enfocando "a saúde mental e transtornos do desenvolvimento do bebê e da criança pequena"1, revisada em 2005 (sem traduçao em português). Organizada segundo o modelo da DSM-4, com cinco eixos compondo o diagnóstico, é interessante comparar o Eixo II das duas classificaçoes. Na DSM-4, o Eixo II corresponde aos Transtornos de Personalidade; na Zero a Três, o Eixo II corresponde à Classificaçao de Relacionamento dos Cuidadores, enfocando três aspectos: 1. Qualidade comportamental da interaçao; 2. Tom afetivo; 3. Envolvimento psicológico. Seis grandes categorias se seguem, com várias subdivisoes, que devem responder a esses três aspectos: Relacionamento excessivamente envolvido; Relacionamento pouco envolvido; Relacionamento ansioso-tenso; Relacionamento irritado-hostil; Relacionamento misto; Relacionamentos abusivos (verbais, físicos, sexuais). Pode-se, assim, estabelecer diretamente a correlaçao entre ambos os Eixos II das respectivas classificaçoes: as peculiaridades do relacionamento dos cuidadores da criança pequena (0-3) corresponderao aos futuros transtornos de personalidade (DSM-4), que se diagnosticam a partir dos 18 anos.

Do ponto de vista interacional (ambiental), pode-se avançar a ideia de que os cuidados precoces com o ambiente a que estao sujeitas as crianças pequenas constituem medidas preventivas essenciais para o desenvolvimento de transtornos da personalidade - afirmativa confirmada pelas variadas pesquisas neurocientíficas (em animais e humanos) em curso na atualidade - considerando-se especialmente o potencial de múltiplas (e ainda imprevistas) alteraçoes epigenéticas.

Destaca-se a intensidade de interaçoes terapêuticas, tanto com os pais como com as crianças, trabalhadas por equipes multiprofissionais, que sao propostas pela Força Tarefa Zero a Três, evidenciando a aposta na reversao precoce de processos interativos patogênicos através da transformaçao que novas experiências - programadas individualmente - podem proporcionar para modificar e regular percepçao, emoçoes e conduta das crianças atendidas.

Funçoes parentais a serem desenvolvidas precocemente, funçoes terapêuticas que incluam os pais em suas experiências como cuidadores convocam elementos de múltiplos vértices de compreensao subjetiva e intersubjetiva: conscientes (cognitivos e comportamentais) e inconscientes - conflitos muitas vezes transgeracionais, cuja abordagem terapêutica nos foi relatada por Selma Fraiberg2, por exemplo, em um trabalho hoje clássico e possivelmente suscetível de ser reatualizado.

Assim, se nao existe um bebê sozinho, como nos afirmou Winnicott, nao existirá uma criança sozinha que busque ajuda terapêutica: o que torna os pais, se nao parceiros no processo terapêutico, indispensáveis participantes do diagnóstico psicológico psicanalítico de cada criança, cabendo aos terapeutas obterem sua anuência mínima aos projetos propostos, sejam terapêuticos ou preventivos.

Sabemos quanto é desafiadora a formaçao em psicoterapia: treinamento clínico supervisionado, estudos teóricos múltiplos e a análise pessoal como forma de afinar o nosso singular instrumento de trabalho: nossa própria percepçao dos processos psíquicos que se desenrolam no campo transicional único que se forma em cada encontro terapêutico desde a avaliaçao.

Nos tempos de hoje, podemos pensar que, quanto mais oportunidades houver de trocas de conhecimento e informaçao, mais avançamos em direçao ao enriquecimento de possibilidades para desenvolver e praticar a psicoterapia em suas diferentes modalidades: nosso instrumento pessoal também se treina diante de leituras que despertam sentimentos e inquietaçoes num fluxo contínuo de renovaçao.

Diante da inevitável afirmativa de que mente e cérebro sao descriçoes de um mesmo fenômeno, com compreensoes ou abordagens complementares, podem-se entender as psicoterapias como condutas terapêuticas relacionais (em geral diádicas), mobilizadoras dos aspectos funcionais mente-cérebro integrados, em qualquer etapa do ciclo do desenvolvimento humano.

Esta seria uma afirmativa dos tempos atuais que se sobrepoe tanto às diferenças nas práticas psicoterápicas quanto à diversidade das pesquisas, incluindo a área das neurociências, o que exige intenso processo de trocas de informaçao, diálogos e debates, como é a proposta da RBP, para que se possa promover a ampliaçao de nossa fascinante ciência.


REFERENCIAS

1. Classificaçao Diagnóstica: 0-3. Classificaçao diagnóstica de saúde mental e transtornos do desenvolvimento do bebê e da criança pequena. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997.

2. Fraiberg S et al. Fantasmas no quarto do bebê: uma abordagem psicanalítica dos problemas que entravam a relaçao mae-bebê. Traduçao de Ester M. Litvin. Publicaçao CEAPIA. 1994;(7):12-34.










* Professora Assistente de Psiquiatria da FAMED-PUCRS. Especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência por Paris XIII-Nord. Professora e supervisora do CEAPIA - Centro de Estudos, Atendimento e Pesquisa na Infância e Adolescência. Professora convidada do CAPIA - CELG.

Norma U. Escosteguy
Av. Venâncio Aires, 1191/72
Porto Alegre - RS - Brasil. CEP 90040-270
nescosteguy@terra.com.br

1 Zero to Three - 2000 M ST NW, Suite 200 - Washington DC 20036. www.zerotothree.org

 

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