ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2012; 14(1):103-106



Resenha de Peça

Inimigos de classe de William Nigel montada por Luciano Alabarsea

Inimigos de Classe (Class Enemy) by William Nigel staged by Luciano Alabarsea

Ruggero Levy*

 

 

O teatro e as artes em geral, pode-se dizer, sempre ofereceram à psicanálise uma via importante de compreensao da natureza humana. A começar pelas tragédias gregas, com o clássico Édipo Rei de Sófocles, e seguindo com os textos de Shakespeare, os conflitos, as emoçoes e os dilemas humanos foram retratados de modo perene. Penso que na formaçao analítica, mas também na formaçao do psicoterapeuta, o contato com a arte, além de aguçar a sensibilidade, oferece formas e imagens que ajudam a figurar as emoçoes e os dramas humanos com que nos deparamos em nossos consultórios.

Isso também ocorre, como nao poderia deixar de ser, com a peça Inimigos de classe, em que inúmeros dramas da adolescência - mas nao só dela - sao expostos de modo pungente. Além do mais, encontramos no texto uma denúncia do descaso e abandono que sofrem a infância e a adolescência em nosso país.

O texto foi escrito pelo dramaturgo inglês William Nigel em 1978 e teve uma adaptaçao e encenaçao importante, premiada, em Sarajevo, em 2007. Em Londres, denunciava as péssimas condiçoes de ensino na periferia da cidade. Em Sarajevo, depois da guerra civil, denunciava o descaso público com a educaçao, a extrema violência nas escolas, o preconceito religioso e a discriminaçao étnica. Por isso, essa adaptaçao feita por Luciano Alabarse para a nossa realidade contém um aspecto conjuntural importante que denuncia o descaso com a educaçao e a violência que tem se assistido nas escolas em meio à nossa "guerra civil", a nossa Sarajevo. Há também um aspecto universal. Este consiste no modo como o grupo adolescente se adapta para se defender das injustiças do mundo adulto e a denúncia que faz dele.

A peça pode ser entendida e discutida desde os multiplos vértices que ela apresenta: a violência escolar crescente, o desamparo e o abandono das crianças e adolescentes em nosso país, o processo adolescente, as famílias disfuncionais e fragilizadas pela própria miséria, a discriminaçao social e étnica, a exclusao, os grupos adolescentes, a funçao do conhecimento na adolescência etc.

O vértice que escolherei é o do desamparo. O ser humano nasce em absoluto estado de desamparo e através das relaçoes de dependência que estabelece com seus cuidadores básicos, mae e pai - ou aqueles que desempenham estas funçoes - será inserido na cultura, na civilizaçao. Através da funçao materna, que envolve alimentaçao, amparo, atençao, compreensao e carinho, desenvolverá o sentimento de confiança na bondade do Outro e o amor predominará sobre o ódio. Por meio da funçao paterna, será introduzida a noçao de limite, as regras e, em última instância, a lei. Quando as funçoes materna e paterna nao sao preenchidas, o indivíduo cresce nutrindo ódio por nao ser atendido em suas necessidades básicas e sem uma noçao das regras e dos limites necessários à vida na civilizaçao. Assistimos, nestas condiçoes, um assassinato da infância e da adolescência, pois os processos evolutivos sao abortados. Frente ao desamparo maciço, criam-se formas espúrias de proteçao; a violência equaciona-se com a força e ter a sua própria gangue, ou fazer parte de alguma, é uma forma de criar a ilusao de possuir ou pertencer a uma "família" poderosa.

O adolescente, embora crescido e onipotente, depende e necessita dos cuidados do mundo adulto. Depende ainda do conforto e da orientaçao dos pais, que estes lhe passem noçoes de limite, de perigo, de cuidado consigo mesmo etc. Além do mais, é preciso que os pais e o mundo adulto proporcionem condiçoes de aprendizagem onde os adolescentes possam desenvolver seus processos cognitivos e adquirir o conhecimento necessário para uma inserçao adequada no mundo adulto e, no futuro, garantir sua autonomia como sujeito.

Pode-se dizer que Inimigos de classe é uma peça sobre desamparo, abandono e suas consequências. Ou, se preferirmos, sobre a esperança e a desesperança. Frente ao desamparo gerado pela falta de condiçoes de atender às necessidades dos jovens, estes se "organizam", tentando preencher suas próprias necessidades: serao pais de si próprios! Darao aulas a si mesmos e tentarao preencher sua necessidade de ter uma autoridade que os organize e que os ajude a conhecer! O conhecimento é colocado como uma necessidade, até para darem um sentido ao absurdo que sao as suas vidas. Só que o máximo que conseguem é falar sobre o imediato de suas dramáticas experiências pessoais. O personagem central, Ferro, apesar de autoritário, procura fazer uma contestaçao à alienaçao em que vivem os adultos da periferia; Colosso começa falando de sua família fragilizada pela miséria e pela doença: o padrasto bebe e se urina. Uma urina que corrói tudo. Anjo fala da beleza do sexo. Espinha, em sua aula, tenta conduzir o grupo para uma ati-tude criativa, inspirando-se no seu pai, sugerindo que tivesse uma família um pouco mais funcional. É comovente o relato de Espinha da luta de seu pai para manter uma ilha de vida e criatividade em meio aos predadores.

Os jovens criam um simulacro de família, tendo Ferro como a autoridade máxima, mas constantemente confrontado por Bola, que tenta amenizar a dureza de Ferro. Bola mostra-se mais sensível às emoçoes dos colegas. Quase como se fossem o pai e a mae: um arremedo das funçoes paterna e materna, tao necessárias e imprescindíveis ao desenvolvimento humano, tal qual o filme Pixote já havia ilustrado: jovens excluídos organizam-se em gangues que criam um simulacro de família.

Só que Ferro, também abandonado e desamparado, equaciona a violência e a destrutividade com a força: para nao se sentir frágil, cria a ilusao de que a violência é a soluçao. Essa é a "defesa pessoal" de que fala Ferro na sua aula final: a melhor defesa é o ataque.

Por outro lado, eles funcionam como um típico grupo de adolescentes, onde uns carregam partes da personalidade dos outros: um é o forte, outro o sensível, outro o sensato, outro o rebelde, nao conseguindo cada um deles ainda integrar essas características dentro de si mesmos. Ferro nao suporta a esperança de Bola e quer fazê-lo calar à força, seja por nao têla, seja por acreditar que esperança significa nova frustraçao. Mesmo assim mostra um aspecto amoroso no final, culpado de ter batido no amigo. Outra leitura possível do texto, sobre a qual sobre a qual nao poderei me estender por uma questao de espaço, é a de que os professores também sao vítimas deste sis-tema de ensino injusto e da falta de condiçoes de trabalho.

A peça termina mostrando a dificuldade do mundo adulto de entender a comunicaçao do desamparo e a busca de uma autoridade e trata o jovem com violência redobrada, com mais abandono; e também coloca em destaque a parte dos adolescentes que ainda tem esperança de ser cuidada e amparada pelo mundo adulto, que ainda espera (esperança) que venham cuidá-los. Ou seja, esperam por adultos que entendam sua linguagem através da qual clamam por cuidados e que possam lhe oferecer uma escola, um mundo, onde eles tenham lugar e que faça sentido para eles.


AGRADECIMENTOS

Ao finalizar, meus agradecimentos ao CELG pela oportunidade de fazer esta resenha e à SPPA pela oportunidade de debater a peça no seu lançamento. Mas quero agradecer também ao Luciano Alabarse e sua equipe por esta bela e importante montagem que provocará reflexoes e debates relevantes em nosso meio.










* Médico Psiquiatra. Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA).

Instituiçao: Centro de Estudos Luís Guedes (CELG), SPPA.

Correspondência
Ruggero Levy
Rua Carvalho Monteiro, 234, sala 501 - Bairro Petrópolis
CEP 90470-100 - Porto Alegre, RS, Brasil
+55 51 3028 0839
E-mail: ruggerolevy@gmail.com

a Debate ocorrido no Teatro Sao Pedro, 2 de março de 2012.

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo