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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2012; 14(1):76-91



Artigos Originais

O cinema no ensino da psicoterapia psicodinâmica

Cinema in psychodynamic psychotherapy teaching

Cíntia V. C. Heidemann*; Rachel Montagner**; Miriam Brunstein***; Claúdio Eizirik****

Resumo

O cinema tem sido uma estratégia utilizada no ensino de psiquiatria e psicoterapia. Foi realizada uma revisao da literatura sobre o uso do cinema no ensino da psicoterapia psicodinâmica, suas vantagens e desvantagens. Esse recurso didático foi ilustrado pela análise do filme Cisne Negro com o enfoque de estudar vínculo mae e filha no transtorno alimentar. O cinema apresenta vantagens em relaçao a alguns métodos tradicionais, mas nao substitui a experiência de ficar frente a frente com o paciente. O artigo propoe que filmes podem ter um papel importante no ensino da psicoterapia psicodinâmica, principalmente quando se refere a terapeutas em formaçao ou ainda inexperientes.

Descritores: Psicoterapia; ensino; psicoterapia psicodinâmica; cinema; filmes; formaçao psiquiátrica.

Abstract

Cinema has been a strategy used in the teaching of Psychiatry and Psychotherapy. A literature review was made on the use of cinema in the teaching of Psychodynamic Psychotherapy, its advantages and disadvantages. This didactic resource was illustrated by the analysis of the movie Black Swan (USA, 2010), focusing on mother-daughter relationship and eating disorder. Cinema has advantages over some traditional methods; however, it does not replace the experience of being face to face with the patient. This article proposes that movies may have an important role in the teaching of Psychodynamic Psychotherapy, especially when it is directed to inexperienced therapists.

Keywords: psychotherapy, teaching, psychodynamic psychotherapy, cinema, movies, films, psychiatric training.

 

 

"As artes sempre tiveram predileçao por personagens
envoltos em conflitos próprios da existência humana,
pelas diferenças interpessoais e em como compreendê-las,
pelo que compartilhamos com o sofrimento da alma e da mente,
pelos limites entre a sanidade e a loucura.
O cinema nao é exceçao".

Antonio Pedro de Mello Cruz1


INTRODUÇAO

A psicoterapia psicodinâmica (PP) pode ser uma importante fonte de conhecimento e compreensao de nós mesmos e de nossas relaçoes interpessoais.Dentre os inúmeros fatores que favorecem a aquisiçao de uma formaçao consolidada em PP destacam-se as supervisoes e consultorias qualificadas e o estudo da literatura sobre o assunto. Contudo, para adquirir o conhecimento, as habilidades e as atitudes necessárias, um terapeuta precisará muito mais do que um livros e aulas, pois nada substitui o tempo passado com o paciente aplicando o que se aprendeu2.É a partir desse contato que os princípios básicos da PP serao desenvolvidos, exercitados e aperfeiçoados.

O cinema pode ser um recurso interessante e potencialmente útil para o ensino da PP. A análise de filmes vem sendo utilizada como estratégia de ensino em uma ampla variedade de contextos e em diversos lugares do mundo. No Reino Unido, algumas escolas de medicinaadotaram o uso de filmespara ensinar psiquiatria geral3. Na Universidade Medical Branch Galveston do Texas, há um módulo de ensino intitulado Psychiatry and the Cinema, para o ensino de psicopatologia a alunos da graduaçao4. A Universidade St. George's, em Londres, usa o cinema como recurso didático durante o segundo ano de residência em psiquiatria5. Na Venezuela, filmes foram usados para o treinamento de pós-graduandos em aconselhamento familiar6. No ensino da psicoterapia de casais7e psicoterapia sistêmica8,também foi observado resultado positivo. No Brasil, diversas instituiçoes chamam a atençao para a importância do cinema no ensino de psicopatologias 9,10, sexualidade humana10, 11 e das neuroses em geral10.

O presente artigo tem por objetivo revisar a literatura disponível acerca do cinema como recurso didático no ensino de psicoterapia psicodinâmica, suas vantagens e limitaçoes, e é seguido da análise de cenas do filme Cisne Negro como ilustraçao.


MÉTODOS

Foi realizada uma busca bibliográfica nos seguintes bancos de dados: LILACS, MedLine, PsycINFO e SciELO. Os seguintes descritores combinados em inglês foram utilizados: "psychoterapy, movies, cinema, psychiatry, films" e, nas bases LILACS e SciELO, os correspondentes em português. Também foi realizada busca manual de livros a partir das referências dos artigos. Nao foi estabelecido limite de data na pesquisa. Os critérios de exclusao utilizados foram (1) idioma diferente do inglês, português ou espanhol e (2) análise do comportamento de personagens de um filme sem haver enfoque no uso do cinema como recurso didático. Portais eletrônicos (Adoro Cinema; E-pipoca; Internet Movie Database) foram consultados para obtençao de dados sobre os filmes, tais como ano de lançamento e título em português.


RESULTADOS

De acordo com os critérios de inclusao e exclusao explicitados acima, foram encontrados 49 artigos indexados. Na busca manual foram encontrados cinco livros. Embora existam várias citaçoes do uso do cinema como recurso didático em psiquiatria, apenas seis artigos descreveram esse instrumento no ensino da PP especificamente.


CINEMA: ESTRATÉGIA DE ENSINO DA PSIQUIATRIA E PP

Campo-Redondo (2007) utilizou o filme O fabuloso destino de Amélie Poulain para ensinar resiliência, intersubjetividade, self, relaçao terapêutica, mecanismos de defesa, entre outros, aos alunos de pós-graduaçao em psicoterapia da Universidade de Zulia na Venezuela. Esse autor apontou que personagens de filmesgeram no espectador sensaçoes semelhantes àquelas experimentadas pelo terapeuta em relaçao ao paciente real. Ele chamou a atençao ainda para o fato de que recursos didáticos que estimulam interaçao e discussao entre os alunos consolidam o processo ensino-aprendizagem12.

Já Figueiroa (2004) estudou o fenômeno da resistência com auxílio do filme Morangos silvestres. Através da interpretaçao dos sonhos do personagem e da biografia detalhada no filme, ilustrou como a resistência pode aparecer em uma sessao de PP13. O mesmo autor (2003) também estudou o tema da primeira entrevista de psicoterapiautilizando o filme A Outra. Através da análise da personagem, ilustrou como identificar pontos de urgência em uma entrevista psicoterapêutica inicial. Ele ressaltou que a possibilidade de assistir inúmeras vezes uma mesma cena permite ao aprendiz treinar a compreen-sao de um paciente através de sutilezas, particularidades de gestos e expressoes faciais14.Nesses dois trabalhos, Figueiroa lembra um importante pressuposto psicoterápico - o de que, se um terapeuta influencia o estado emocional de seu paciente durante uma sessao de PP, está tocando no mundo interno dele (do paciente), sendo que o contrário também valeria. Aqui é percebida uma clara semelhança na relaçao entre psicoterapeuta/paciente e telespectador/personagem.

Zerby (2005) relatou de forma positiva a experiência com o cinema no ensino de residentes de psiquiatria da infância do CambridgeHospital. A partir do filme Invasores de Marte, foram discutidas questoes sobre o desenvolvimento normal na infância, relaçoes de objeto, ansiedade de separaçao, pesadelos, psicopatologia, intervençoes possíveis e manejo de crises15.

Miller (1999) ilustrou princípios como transferência, resistência, neutralidade, entre outros, através do filme Gente como a gente. Nesse artigo, o autor disserta a respeito de como a análise de filmes pode auxiliar no ensino de PP aplicada a adolescentes16. Por sua vez, William e Wonderlich (1999) abordaram o tema da contratransferência em seminários destinados a psicoterapeutas em formaçao, bem como a psicoterapeutas experientes, utilizando o filme O Jogo de Emoçoes. Eles descreveram a experiência como algo enriquecedor e estimulante, útil para promover o entendimento de tal tema17.

Para Mischoulon e Beresin (2004), a jornada de Neo, personagem principal de Matrix, guarda semelhanças com a de um indivíduo em PP. Estes autores defendem que o filme pode ser uma ferramenta útil para o ensino de residentes de psiquiatria no que diz respeito aos objetivos, funçoes e particularidades da PP18.

Tanto em relaçao aos trabalhos descritos acima quanto à literatura em geral, sao comuns as seguintes ideias:

1. O cinema é uma forma prazerosa de aprender quando comparado às aulas teóricas tradicionais e apresenta diversas vantagens quando comparado à literatura científica como método de aprendizagem19-28. Em geral, tem uma linguagem mais acessível que a dos livros textos e evita que o conteúdo científico fique fragmentado e descontextualizado da realidade. Além disso, pode gerar reaçoes emocionais e afetivas no espectador, algo que sabidamente facilita o processo de aprendizado e memorizaçao23.

2. A narrativa de histórias alheias, do contato com situaçoes de marcante valor moral, às vezes bem próximas da realidade do espectador, nos incentiva a rever posturas, considerar novas hipóteses e abandonar preconceitos25-28, exercício frequentemente exigido quando estamos numa sessao de PP.

3. Filmes refletem a época e a psique de cada geraçao, por isso se constituem emum material valiosopara a análise das representaçoes culturais dos trantornos mentais25, 26, 28.

4. Entre outras coisas, a discussao de casos clínicos, seja em supervisao ou consultoria, é fundamental para o aprendizado da PP. O cinema pode ser útil em especial quando pacientes com sintomas psicopatológicos específicos nao estao disponíveis em enfermarias e ambulatórios ou quando a exposiçao a um grande grupo tornarse-ia iatrogênica14, 15, 25-27.

5. De acordo com Jaques, os artistas captam a essência dos fenômenos humanos, muitas vezes com novos olhos e com questoes nao menos autênticas, ignoram o bloqueio oriundo do pensamento científico rígido e, por isso, podem influenciar no estado emocional do espectador29.



LIMITAÇOES DO CINEMA COMO ESTRATÉGIA DIDATICA NA PP E PSIQUIATRIA EM GERAL

A vivência pessoal da transferência, da contratrasferência, do setting, das intervençoes psicoterápicas seguidas de confirmaçao ou refutaçao por parte do paciente, entre outras, sao imprescindíveis para a aprendizagem da PP, e o cinema nao proporciona essa experiência12, 13, 14. Além disso, a psiquiatria em geral é representada na grande tela de maneira estigmatizada 25-28, 30-40. Essas sao apontadas como as duas maiores limitaçoes do uso do cinema como recurso didático.

Os psiquiatras ora sao representados no cinema como criminosos, antiéticos, sádicos e sedutores; ora como sofisticados e cultos, mas usam tais características e a própria profissao como um instrumento de poder 3234 (O Silêncio dos inocentes e Teoria da conspiraçao). Em alguns filmes sao representados como incompetentes e incapazes32-34 (Matador em conflito) ou com funçao meramente administrativa, passiva (Garota, Interrompida). Os tratamentos empregados, em geral, sao puniçoes aos pacientes, os ambientes hospitalares sao inapropriados, insalubres e servem de cenário de tortura24-27, 34-37 (Bicho de sete cabeças e Um estranho no ninho).

As psicoterapias sao retratadas como formas intermináveis de tratamento, ineficazes erestritas a uma única técnica, a de catarse24, 25, 27, 30, 31 (Ex.: Bob e Carol & Ted e Alice). Mulheres psicoterapeutas sao representadas como incapazes de nao se apaixonar pelos seus pacientes24-27, 30,31 (Mr. Jones). Psiquiatras clínicos, psicoterapeutas, psicanalistas, psicólogos e assistentes sociais nao apresentam diferenciaçao de papéis entre si no cinema norte-americano, além de, muitas vezes, serem considerados conselheiros e/ou curandeiros. Pacientes psiquiátricos sao representados em geral como gênios mal compreendidos ou pessoas fracas, incapazes de lidar com os conflitos da vida cotidiana35, 36, 38 (Um estranho no ninho) ou assassinos perigosos (Instinto e Silêncio dos inocentes). Também está presente a ideia de que a cura de um transtorno mental e a extinçao do sofrimento humano se dá sempre por meio do amor, sendo este proveniente do terapeuta, de um familiar ou do paciente25, 40 (Como se fosse a primeira vez e Don Juan de Marco).

Outra limitaçao a ser considerada é o tempo demandado para se assistir a um filme inteiro mais o de analisá-lo, que ultrapassa em muito o de uma aula teórica tradicional, de uma supervisao ou de uma consultoria. Porém, analisar apenas cenas de filmes poderia solucionar tal problema.

Também foram encontrados artigos mostrando que, apesar de historicamente a PP e a psiquiatria como um todo serem representadas de maneira estigmatizada na grande tela, em filmes mais recentes ela tem aparecido de maneira mais próxima da realidade31, 42-45 (Melhor é impossível, Uma mente brilhante e Estamira).


ILUSTRAÇAO: ANALISE DO FILME CISNE NEGRO

O filme Cisne Negro, de 2010, dirigido por Darren Aronofsky e estrelando Natalie Portman, conta a história da bailarina Nina Sayers, escolhida para ser a Rainha Cisne, protagonista do espetáculo O Lago dos cisnes. Nina é perfeita ao interpretar a delicadeza e pureza do Cisne Branco, mas tem que vencer o desafio de dar vida também ao Cisne Negro, com toda sua sexualidade, audácia e luxúria. Fora dos treinos, Nina convive com a presença intensa e invasiva da mae, bailarina aposentada que sonhou em ser protagonista de um espetáculo, mas nunca o logrou.

Nesta ilustraçao clínica, priorizar-se-á o entendimento psicodinâmico do vínculo mae e filha no transtorno alimentar (TA). Nao será abordado o ensino de técnicas psicoterápicas específicas. O critério de seleçao das cenas foi baseado na capacidade das mesmas revelarem conteúdos e situaçoes que possam ilustrar as teorias psicodinâmicas acerca do tema. Ressalta-se que o filme Cisne Negro pode ser compreendido e analisado a partir de diferentes vértices, como cisao do ego, descoberta da sexualidade, psicose, transtornos de personalidade, entre outros. A interpretaçao aqui descrita deve ser vista como uma hipótese de compreensao e delimitada a um único aspecto entre inúmeros outros possíveis.

Cena 1

Nina está chegando da comemoraçao onde seu nome foi anunciado como nova protagonista do espetáculo Lago dos cisnes. A mae está acordada esperando a filha. Ao chegar, Nina é questionada sobre a festa, e a mae se aproxima para ajudá-la a desfazer seu penteado e trocar de roupa. Nina tenta afastar a mae dizendo ser capaz de trocar-se sozinha. A mae olha para a filha por alguns segundos, volta a falar da festa e desabotoa o vestido de Nina, desconsiderando a solicitaçao da filha.

Ainda na mesma cena, a mae observa escoriaçoes nas costas de Nina (esta tem o comportamento de se automutilar por meio de arranhoes e coçaduras) e demonstra irritaçao diante disso. Ela despe Nina às pressas, à força e procura em todo o corpo dela outras lesoes. Puxa a filha até o banheiro, onde encontra uma tesoura e corta suas unhas bem rentes, até machucála. Nina expressa em sua face angústia, desconforto, desolaçao, dor e raiva em relaçao ao comportamento da mae, porém nao consegue impedi-la de prosseguir com tal atitude.


As cenas descritas acima provocam no telespectador uma sensaçao de invasao de privacidade e abuso. Podemos observar na mae comportamentos característicos de maes de anoréxicas, entre eles o de desestimular o amadurecimento da filha como uma forma de mantê-la sob controle, submetida a suas vontades. Trata-se de uma mae superprotetora, controladora e com capacidade limitada de estabelecer uma relaçao verdadeiramente empática com a filha; hiperpresente, muito exigente, invasiva e alheia48. Bleichmar (1988) afirma que maes de pacientes anoréxicas tendem a perceber a filha como uma continuaçao de si mesmas, nao como um indivíduo separado. Isso se deve a componentes narcisistas que prevalecem na dupla como identificaçao e simbiose 49.

Minuchin (1990) e Selvini-Palazolli (1992) apontam um padrao que envolve, entre outros elementos, a dificuldade de separaçao e individuaçao entre os membros da família das pacientes com TA50, 51. Na família das anoréxicas, existe a falta de um senso de identidade separada da matriz familiar e a incapacidade das meninas de se separarem de suas maes. Lerner (1990) ressalta que a tarefa de declaraçao da própria individualidade e diferença da mae é relativamente mais difícil e complexa para a menina em particular. Ela pode experimentar inconscientemente um passo para a autonomia como perigoso, como se estar separada e completa sem a mae fosse uma traiçao ao relacionamento entre as duas 52. Wardet al. (2001) observam que o vínculo mae-filha é caracterizado por mais insegurança, medo de abandono e falta de autonomia nas mulheres com transtorno alimentar54.

A mae é sentida pela filha como alguém indispensável e inaceitável, necessário e inútil. Uma mae que cria uma urgência de separaçao simultânea a uma impossibilidade de a menina se perceber sem ela. É um vínculo entremeado por paixoes, por mae e filha unidas, dependentes e, paradoxalmente, sentindo um horror a essa dependência48.

Cena 2:

Passa-se no dia da estreia de Nina como protagonista do espetáculo O Lago dos cisnes.

Mae: Está tudo bem. Estou aqui. (Falando com Nina, que se assusta ao acordar com a mae ao seu lado na cama)

Nina: Cadê o meu relógio? (Faz um movimento parase levantar da cama)

Mae: Nao se preocupe com isso. (Tenta mantê-la deitada, acariciando seus cabelos)

Nina: Que horas sao? Minha apresentaçao é hoje, eu...

Mae: (interrompendo a filha) Nao, nao. Nao se preocupe. Liguei para o teatro e disse que você nao estava bem.

N: Tenho de ir. (Levanta-se bruscamente da cama ao se dar conta de que está atrasada)

M: Nao, deite-se! (Agarra a filha, tentando impedi-la de sair da cama)

N: Me solta! (Consegue escapar, mas encontra a porta do quarto fechada e sem maçaneta. É impossível sair)

M: Vai ficar até se sentir melhor. (Sentando-se sobre uma almofada que esconde a maçaneta)

N: Onde está? (Referindo-se à maçaneta da porta)

M: Este papel [o de protagonista do espetáculo] está lhe destruindo

N: Saia da frente! (Nina ordena que a mae saia, pois desconfia de que a maçaneta da porta esteja sob a almofada sobre a qual a mae está sentada)

M: Nina... (Sem sair da poltrona, tentando evitar que Nina a retire de lá)

N: Afaste-se! (Tira a mae à força da poltrona e encontra a maçaneta, apossa-se dela e vai em direçao à porta)

M: O que houve com a minha menina meiga?

N: Ela já era! (Abre a porta e sai)

M: Nina! Nao, por favor! Você nao está bem. (Agarra as pernas da filha na tentativa de impedi-la de chegar ao teatro)

N: Solte-me!

M: Você nao vai aguentar! (Referindo-se à pressao de ser a protagonista do espetáculo)

N: Ah, nao? Eu sou a Rainha Cisne! Você é que nunca foi importante! (Sai rumo ao teatro)


A mae de Nina encerrou sua carreira de bailarina sem realizar o sonho de protagonizar um espetáculo de ballet.Pode-se pensar que esta mae, como em geral ocorre com a mae da anoréxica de acordo com a literatura,espelha na filha suas frustraçoes, esperando que a mesma realize o que ela nao conseguiu. Ao mesmo tempo, sente uma inveja insuportável quando a filha atinge seus objetivos, estando disposta a anular seus feitos (da filha). Trata-se de uma mae depressiva e frustrada, com capacidade diminuída de estabelecer uma relaçao verdadeiramente empática com a filha48.

Cena 3

Nina acorda e parece estar se tocando, em alguns segundos torna-se claro que está se masturbando. A medida que fica excitada, os detalhes de seu quarto começam a aparecer - paredes brancas e rosas e vários bichinhos de pelúcia dao a impressao de um quarto de criança. A cena passa a focar somente Nina, em expressoes faciais e movimentos corporais adultos. Quando parece estar atingindo o orgasmo, Nina enxerga a mae, adormecida na poltrona próxima de sua cama. Nesse momento, demonstra pavor e escondese embaixo do cobertor, como alguém com medo e muito assustada.

Uma das formas encontradas pela moça anoréxica de se manter equilibrada é nutrir-se do olhar dos outros. Para isso, abrem mao de seus próprios investimentos, em particular de seus recursos autoeróticos, anulamse e morrem para uma vida adulta48. Para a menina, é assustador pensar-se mulher, pois existe a fantasia de que isso a afastará de sua mae. Há uma cisao, ela nao suporta sentir-se com uma mulher dentro de si.Bruch (1973) acredita que conflitos relativos à individuaçao e separaçao dos pais têm um papel-chave nos sentimentos de raiva reprimidos, na negaçao das necessidades sexuais e do apetite nos pacientes com transtorno alimentar54.


DISCUSSAO

O uso do cinema no ensino da psicoterapia psicodinâmica ainda é um tema pouco estudado, tendo em vista a escassez de material científico. Isso pode parecer surpreendente já que existem muitas referências na cultura acerca da intersecçao da PP e psicanálise com a sétima arte.

Em nosso meio, na página virtual da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), há uma sessao chamada Psicanálise e Cultura, na qual existe um espaço destinado à análise de filmes. Livros, revistas e jornais publicados pela SPPA também frequentemente analisam ou discutem o cinema baseados em princípios teóricos da psicanálise e PP55,56. A Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (PUC - RS) ofereceu um curso de extensao intitulado Cinema e Psiquiatria, no qual filmes foram analisados sob a ótica da psicanálise e da psiquiatria clínica57. Congressos regionais como Mente, Cérebro e Comportamento e outros já utilizaram filmes para ilustrar alguns conteúdos de psiquiatria e PP58. Noentanto, os trabalhos e apresentaçoes que abordam cinema e psicanálise ou PP, geralmente o fazem utilizando como recurso para a análise do filme e nao o cinema como ferramenta de ensino de PP. Além disso, em geral sao publicados na forma de comentários ou resenhas, nao como artigos científicos.

Apesar de nao se tratar de filmes e sim de um seriado, vale ressaltar que o canal HBO exibiu em 2008 a primeira temporada da série Em terapia. Ao longo da mesma, os pacientes eram atendidos semanalmente e o próprio terapeuta se submetia a uma psicoterapia. Embora nao tenha sido afirmada como tal, houve a aplicaçao de muitas técnicas da PP, pois muitos comportamentos clinicamente relevantes foram analisados nas próprias sessoes46. Alguns episódios dessa série foram selecionados para discussoes de princípios básicos de PP (setting, transferência erótica, contratransferência, mecanismos de defesa, entre outros) pela turma 2009/2010 de residência e especializaçao em psiquiatria do HCPA. A opiniao geral dos alunos acerca da aquisiçao de conhecimento sobre o tema PP através desse recursofoi positiva47.

Diante dessas exposiçoes, corrobora-se a ideia de que o cinema deve ser visto com seriedade e é passível de promover conhecimento. A escassez de estudos descrevendo as técnicas e abordagens possíveis desestimula seu uso mais sistemático. Ao menos em parte, aestigmatizaçao histórica da psiquiatria na grande tela é um empecilho, mas assumindo o compromisso de identificá-la e confrontá-la com a realidade, temos a oportunidade de desenvolver uma postura crítica diante do estigma e impedir que o mesmo influencie negativamente no ensino da PP.

A ilustraçao clínica com o filme Cisne Negro aborda uma possibilidade de uso didático do cinema em PP, pois o que pode ser lido na teoria psicodinâmica sobre vínculo entre mae e filha no TA pode ser visualizado em várias de suas cenas. Isso favorece que a teoria nao fique somente na imaginaçao e abstraçao, já que possibilita ao psicoterapeuta em formaçao, mesmo que de forma indireta, o contato com situaçoes ainda nao vividas.

Além disso, é esperado que um terapeuta iniciante, quando comparado aos experientes e amadurecidos, em geral sofra mais frequente e intensamente diante das angústias e histórias de vida apresentadas por seus pacientes. Especial importância ocuparia aqui a discussao de casos clínicos a partir de filmes, pois proporcionaria um contato distanciado, algo que o psicoterapeuta em formaçao só vai aprender com o tempo e a experiência.

Em síntese, a soma do conhecimento teórico com a visualizaçao do mesmo em um filme pode auxiliar direta e positivamente na formaçao em psicoterapia psicodinâmica.


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REFERENCIAS FILMOGRAFICAS

Cisne Negro
(Black Swan). Direçao: Darren Aronofsky. Elenco: Natalie Portman, Vincent Cassel, Mila Kunis, Barbara Hershey e Winona Ryder. Roteiro: Mark Heyman, Andres Heinz e John McLaughlin. EUA, 2010.

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d'Amélie Poulain). Direçao: Jean-Pierre Jeunet. Roteiro: Guillaume Laurant, Jean-Pierre Jeunet e Guillaume Laurant. Elenco: Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz, Lorella Cravotta, Serge Merlin, Jamel Debbouze. França/Alemanha, 2001.

Morangos Silvestres(Smultronstället). Direçao: Ingmar Bergman. Roteiro: Ingmar Bergman. Elenco: Victor Sjöström, BibiAndersson, Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, JullanKindahl. Suécia, 1957.

A Outra (Another Woman). Direçao: Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. Elenco: GenaRowlands, Mia Farrow, Gene Hackman, Betty Buckley. EUA, 1988.

Invasores de Marte (Invaders From Mars). Direçao: Tobe Hooper.Roteiro: John Tucker Battle e Richard Blake. Elenco: Hunter Carson, Karen Black, Louise Fletcher, Laraine Newman e Timothy Bottoms. EUA, 1953.

Matrix (The Matrix). Direçao: Os Irmaos Wachowski. Roteiro:Os Irmaos Wachowski. Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss e Hugo Weaving. EUA/Austrália, 1999.

O Jogo das Emoçoes (Houseof Games). Direçao: David Mamet. Roteiro: David Mamet e Jonathan Katz. Elenco: Joe Mantegna, Lindsay Crouse, Mike Nussbaum e J.T. Walsh. EUA, 1987.

Bob e Carol & Ted e Alice (Bob e Carol & Ted e Alice). Direçao:Paul Mazursky. Roteiro: Paul Mazursky e Larry Tucker. Elenco: Natalie Wood, Robert Culp, Elliott Gould e Dyan Cannon. EUA, 1969.

Mr. Jones (Mr. Jones) Direçao: Mike Figgs. Roteiro: Eric Roth. Elenco: Richard Gere, Peter Jurasik, Lauren Tom e Tom Irwin. EUA, 1993.

Um Estranho no Ninho (Oneflew over thecuckoo'snest). Direçao: Milos Forman. Roteiro: Ken Kesey, Bo Goldman e Lawrence Hauben. Elenco: Jack Nicholson, Luoise Fletcher, William Redfield e Michael Berryman. EUA, 1975.

Instinto(Instinct). Direçao:Jon Turteltaub. Roteiro: Gerald DiPego. Elenco: Anthony Hopkins, Cuba Gooding Jr., Donald Sutherland e Maura Tierney. EUA, 1999.

O Silêncio dos Inocentes(The Silence of the Lambs) .Direçao: Jonathan Demme. Roteiro: Thomas Harris eTed Tally. Elenco: Jodie Foster, Anthony Hopkins, Scott Glenn, Anthony Heald. EUA, 1991.

Como se Fosse a Primeira vez (50 First Dates). Direçao: Peter Segal. Roteiro: George Wing. Elenco: Adam Sandler, Drew Barrymore, Sean Astin e Rob Schneider. EUA, 2004.

Don Juan De Marco (Don Juan DeMarco). Direçao: Jeremy Leven. Roteiro: Lord Byron, Jeremy Leven. Elenco: Marlon Brando, Johnny Depp, FayeDunaway e Géraldine Pailhas. EUA, 1995.

Teoria da Conspiraçao (ConspiracyTheory). Direçao: Richard Donner. Roteiro: Brian Helgeland. Elenco: Mel Gibson, Julia Roberts, Patrick Stewart e CylkCozart. EUA, 1997.

Matador em Conflito (Grosse Pointe Blank). Direçao: George Armitage. Roteiro: Tom Jankiewicz, D.V. DeVincentis, Steve Pink, John CusackElenco: John Cusack, Minnie Driver, Alan Arkin e Dan Aykroyd. EUA, 1997.

Garota, Interrompida (Girl, Interrupted). Direçao: James Mangold. Roteiro: Susanna Kaysen, James Mangold, Lisa Loomer e Anna Hamilton Phelan. Elenco: Winona Ryder, Angelina Jolie, Clea DuVall e Brittany Murphy.EUA, 1999.

Melhor É Impossível (As Good as It Gets). Direçao: James L. Brooks. Roteiro: Mark Andrus e James L. Brooks. Elenco: Jack Nicholson, Helen Hunt, Greg Kinnear. EUA, 1997.

Bicho de Sete Cabeças(Bicho de Sete Cabeças). Direçao: Laís Bodanzky. Roteiro: Luiz Bolognesi e Austregésilo Carrano. Elenco: Rodrigo Santoro, Othon Bastos e Cássia Kiss. Brasil, 2001.

Uma Mente Brilhante (A BeautifulMind). Direçao : Ron Howard. Roteiro: Akiva Goldsman e Sylvia Nasar. Elenco: Russell Crowe, Ed Harris, Jennifer Connelly e Christopher Plummer.EUA, 2001.

Estamira (Estamira) Direçao: Marcos Prado. Roteiro: Marcos Prado. Elenco: Estamira. Brasil, 2004.

Em Tratamento (In treatment). Criador: Hagai Levi. Elenco: Gabriel Byrne, Dianne Wiest. HBO. EUA.










* Médica Psiquiatra pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
** Médica Psiquiatra pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Porto Alegre, RS, Brasil.
***Médica Psiquiatra. Doutora em Bioquímica e coordenadora do Programa de Transtornos Alimentares em Adultos do HCPA, Porto Alegre, RS, Brasil.
**** Médico Psiquiatra, psicanalista, analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Professor adjunto do departamento de psiquiatria e medicina legal da UFRGS, professor da residência médica em psiquiatria do HCPA, Porto Alegre, RS, Brasil.

Instituiçao: Hospital de Clínicas de Porto Alegre, RS, Brasil.

Correspondência
Cíntia Vasques Cruz Heidemann
Av. Independência, 44/1102
Porto Alegre - RS
Telefone: + 55 51 85449411
E-mail: ci.heidemann@gmail.com

 

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