Rev. bras. psicoter. 2012; 14(1):76-91
Heidemann CVC, Montagner R, Brunstein M, Eizirik C. O cinema no ensino da psicoterapia psicodinâmica. Rev. bras. psicoter. 2012;14(1):76-91
Artigos Originais
O cinema no ensino da psicoterapia psicodinâmica
Cinema in psychodynamic psychotherapy teaching
Cíntia V. C. Heidemann*; Rachel Montagner**; Miriam Brunstein***; Claúdio Eizirik****
Resumo
Abstract
"As artes sempre tiveram predileçao por personagens
envoltos em conflitos próprios da existência humana,
pelas diferenças interpessoais e em como compreendê-las,
pelo que compartilhamos com o sofrimento da alma e da mente,
pelos limites entre a sanidade e a loucura.
O cinema nao é exceçao".
Antonio Pedro de Mello Cruz1
INTRODUÇAO
A psicoterapia psicodinâmica (PP) pode ser uma importante fonte de conhecimento e compreensao de nós mesmos e de nossas relaçoes interpessoais.Dentre os inúmeros fatores que favorecem a aquisiçao de uma formaçao consolidada em PP destacam-se as supervisoes e consultorias qualificadas e o estudo da literatura sobre o assunto. Contudo, para adquirir o conhecimento, as habilidades e as atitudes necessárias, um terapeuta precisará muito mais do que um livros e aulas, pois nada substitui o tempo passado com o paciente aplicando o que se aprendeu2.É a partir desse contato que os princípios básicos da PP serao desenvolvidos, exercitados e aperfeiçoados.
O cinema pode ser um recurso interessante e potencialmente útil para o ensino da PP. A análise de filmes vem sendo utilizada como estratégia de ensino em uma ampla variedade de contextos e em diversos lugares do mundo. No Reino Unido, algumas escolas de medicinaadotaram o uso de filmespara ensinar psiquiatria geral3. Na Universidade Medical Branch Galveston do Texas, há um módulo de ensino intitulado Psychiatry and the Cinema, para o ensino de psicopatologia a alunos da graduaçao4. A Universidade St. George's, em Londres, usa o cinema como recurso didático durante o segundo ano de residência em psiquiatria5. Na Venezuela, filmes foram usados para o treinamento de pós-graduandos em aconselhamento familiar6. No ensino da psicoterapia de casais7e psicoterapia sistêmica8,também foi observado resultado positivo. No Brasil, diversas instituiçoes chamam a atençao para a importância do cinema no ensino de psicopatologias 9,10, sexualidade humana10, 11 e das neuroses em geral10.
O presente artigo tem por objetivo revisar a literatura disponível acerca do cinema como recurso didático no ensino de psicoterapia psicodinâmica, suas vantagens e limitaçoes, e é seguido da análise de cenas do filme Cisne Negro como ilustraçao.
MÉTODOS
Foi realizada uma busca bibliográfica nos seguintes bancos de dados: LILACS, MedLine, PsycINFO e SciELO. Os seguintes descritores combinados em inglês foram utilizados: "psychoterapy, movies, cinema, psychiatry, films" e, nas bases LILACS e SciELO, os correspondentes em português. Também foi realizada busca manual de livros a partir das referências dos artigos. Nao foi estabelecido limite de data na pesquisa. Os critérios de exclusao utilizados foram (1) idioma diferente do inglês, português ou espanhol e (2) análise do comportamento de personagens de um filme sem haver enfoque no uso do cinema como recurso didático. Portais eletrônicos (Adoro Cinema; E-pipoca; Internet Movie Database) foram consultados para obtençao de dados sobre os filmes, tais como ano de lançamento e título em português.
RESULTADOS
De acordo com os critérios de inclusao e exclusao explicitados acima, foram encontrados 49 artigos indexados. Na busca manual foram encontrados cinco livros. Embora existam várias citaçoes do uso do cinema como recurso didático em psiquiatria, apenas seis artigos descreveram esse instrumento no ensino da PP especificamente.
CINEMA: ESTRATÉGIA DE ENSINO DA PSIQUIATRIA E PP
Campo-Redondo (2007) utilizou o filme O fabuloso destino de Amélie Poulain para ensinar resiliência, intersubjetividade, self, relaçao terapêutica, mecanismos de defesa, entre outros, aos alunos de pós-graduaçao em psicoterapia da Universidade de Zulia na Venezuela. Esse autor apontou que personagens de filmesgeram no espectador sensaçoes semelhantes àquelas experimentadas pelo terapeuta em relaçao ao paciente real. Ele chamou a atençao ainda para o fato de que recursos didáticos que estimulam interaçao e discussao entre os alunos consolidam o processo ensino-aprendizagem12.
Já Figueiroa (2004) estudou o fenômeno da resistência com auxílio do filme Morangos silvestres. Através da interpretaçao dos sonhos do personagem e da biografia detalhada no filme, ilustrou como a resistência pode aparecer em uma sessao de PP13. O mesmo autor (2003) também estudou o tema da primeira entrevista de psicoterapiautilizando o filme A Outra. Através da análise da personagem, ilustrou como identificar pontos de urgência em uma entrevista psicoterapêutica inicial. Ele ressaltou que a possibilidade de assistir inúmeras vezes uma mesma cena permite ao aprendiz treinar a compreen-sao de um paciente através de sutilezas, particularidades de gestos e expressoes faciais14.Nesses dois trabalhos, Figueiroa lembra um importante pressuposto psicoterápico - o de que, se um terapeuta influencia o estado emocional de seu paciente durante uma sessao de PP, está tocando no mundo interno dele (do paciente), sendo que o contrário também valeria. Aqui é percebida uma clara semelhança na relaçao entre psicoterapeuta/paciente e telespectador/personagem.
Zerby (2005) relatou de forma positiva a experiência com o cinema no ensino de residentes de psiquiatria da infância do CambridgeHospital. A partir do filme Invasores de Marte, foram discutidas questoes sobre o desenvolvimento normal na infância, relaçoes de objeto, ansiedade de separaçao, pesadelos, psicopatologia, intervençoes possíveis e manejo de crises15.
Miller (1999) ilustrou princípios como transferência, resistência, neutralidade, entre outros, através do filme Gente como a gente. Nesse artigo, o autor disserta a respeito de como a análise de filmes pode auxiliar no ensino de PP aplicada a adolescentes16. Por sua vez, William e Wonderlich (1999) abordaram o tema da contratransferência em seminários destinados a psicoterapeutas em formaçao, bem como a psicoterapeutas experientes, utilizando o filme O Jogo de Emoçoes. Eles descreveram a experiência como algo enriquecedor e estimulante, útil para promover o entendimento de tal tema17.
Para Mischoulon e Beresin (2004), a jornada de Neo, personagem principal de Matrix, guarda semelhanças com a de um indivíduo em PP. Estes autores defendem que o filme pode ser uma ferramenta útil para o ensino de residentes de psiquiatria no que diz respeito aos objetivos, funçoes e particularidades da PP18.
Tanto em relaçao aos trabalhos descritos acima quanto à literatura em geral, sao comuns as seguintes ideias:
1. O cinema é uma forma prazerosa de aprender quando comparado às aulas teóricas tradicionais e apresenta diversas vantagens quando comparado à literatura científica como método de aprendizagem19-28. Em geral, tem uma linguagem mais acessível que a dos livros textos e evita que o conteúdo científico fique fragmentado e descontextualizado da realidade. Além disso, pode gerar reaçoes emocionais e afetivas no espectador, algo que sabidamente facilita o processo de aprendizado e memorizaçao23.
2. A narrativa de histórias alheias, do contato com situaçoes de marcante valor moral, às vezes bem próximas da realidade do espectador, nos incentiva a rever posturas, considerar novas hipóteses e abandonar preconceitos25-28, exercício frequentemente exigido quando estamos numa sessao de PP.
3. Filmes refletem a época e a psique de cada geraçao, por isso se constituem emum material valiosopara a análise das representaçoes culturais dos trantornos mentais25, 26, 28.
4. Entre outras coisas, a discussao de casos clínicos, seja em supervisao ou consultoria, é fundamental para o aprendizado da PP. O cinema pode ser útil em especial quando pacientes com sintomas psicopatológicos específicos nao estao disponíveis em enfermarias e ambulatórios ou quando a exposiçao a um grande grupo tornarse-ia iatrogênica14, 15, 25-27.
5. De acordo com Jaques, os artistas captam a essência dos fenômenos humanos, muitas vezes com novos olhos e com questoes nao menos autênticas, ignoram o bloqueio oriundo do pensamento científico rígido e, por isso, podem influenciar no estado emocional do espectador29.
artigo anterior | voltar ao topo | próximo artigo |
Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Sala 2218 - Porto Alegre / RS | Telefones (51) 3330.5655 | (51) 3359.8416 | (51) 3388.8165-fone/fax