Rev. bras. psicoter. 2012; 14(1):58-70
Alves VLP, Dantas DL. Os primeiros passos no processo de tornar-se psicoterapeuta sob o referencial da Abordagem Centrada na Pessoa. Rev. bras. psicoter. 2012;14(1):58-70
Artigos Originais
Os primeiros passos no processo de tornar-se psicoterapeuta sob o referencial da Abordagem Centrada na Pessoaa
The first steps in the process of becoming a psychotherapist under the reference of The Person-Centered Approacha
Vera Lucia Pereira Alves*; Daniela Lima Dantas**
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A atividade de psicoterapia é realizada no Brasil principalmente pelos profissionais de psicologia e medicina. Para os primeiros, o Conselho Federal de Psicologia1, - autarquia pública que orienta, fiscaliza e disciplina a profissao de psicólogo - especificou e qualificou, somente em 20002, a psicoterapia como prática profissional. Contudo, essa atividade tem sido ensinada nos cursos de graduaçao em psicologia e nos de especializaçao e formaçao para os já graduados mesmo antes dessa resoluçao.
Os cursos de psicologia contemplavam até a primeira metade da década de 1990, o ensino da atividade de psicoterapia e dos atendimentos clínicos, notadamente, apenas em acordo aos referenciais psicanalítico e comportamental. Desde 1992, com o movimento iniciado pelo Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia para a abertura aos sistemas teóricos ausentes até entao, das salas de aula3, que resultou na Carta de Serra Negra4 e mais especificamente em 1999 com o lançamento de novas propostas para as diretrizes curriculares, evidenciou-se uma mudança de direcionamento. As "três forças" de psicologia passaram a ser igualmente transmitidas nas instituiçoes de ensino superior, priorizando a importância da diversidade teórica e metodológica nos estudo dos fenômenos psicológicos5.
A partir destas novas diretrizes, muitos cursos de psicologia começaram a implantar em seus currículos a disciplina de Psicologia Humanista - a terceira força em psicologia3. Via de regra, essa teoria passou a ser ensinada entre os primeiros quatro anos de curso, anteriores à prática clínica exercida no quarto ou quinto e último ano do curso, quando os alunos iniciam a atividade de atendimento, baseando-se nos princípios aprendidos teoricamente. As diferentes escolas a ela pertencentes têm sido apresentadas, tais como Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), Gestalt-terapia, Psicodrama, entre outras. E é em acordo com os princípios de algumas destas escolas que ocorrem as diferentes práticas clínicas do aluno (entre elas a psicoterapia) bem como a supervisao no penúltimo ou último ano do curso3.
A Abordagem Centrada na Pessoa foi instituída pelo psicólogo norteamericano Carl Rogers, tendo sua origem reportada ao início da década de 1940 e partindo de pressupostos contrários aos das abordagens teóricas psicológicas vigentes até entao. Ela estabelece a concepçao de pessoa como unidade indivisível, que incorpora tudo que a cerca e possui recursos próprios internos para seu desenvolvimento6. Dentre seus principais conceitos, alguns se fazem essenciais para a compreensao de sua teoria da personalidade e consequente sentido de seu processo terapêutico. Denomina-se organismo a totalidade do indivíduo compreendida pela unidade biopsicossocial; self e experiência, sendo self a imagem ou ideia que o indivíduo tem de si, como retrata sua identidade e experiência, o momento de contato imediato com qualquer tipo de fenômeno e os sentimentos despertos nesta vivência, antes mesmo de se tornarem conscientes (representados, simbolizados)7,8. A tendência atualizante, interna ao desenvolvimento, é central na teoria e diz respeito à tendência inerente que move todos os organismos vivos, inclusive os seres humanos, em direçao à totalidade, à realizaçao de suas potencialidades, de maneira a favorecer sua conservaçao e enriquecimento7,9.
A mobilizaçao que faz o indivíduo procurar a ajuda de um psicoterapeuta é invariavelmente ocasionada pelo estado de incongruência em que se encontra, onde self e experiência estao em desarmonia. Em suas primeiras relaçoes, em que, com frequência, é condicionalmente avaliado, o indivíduo aprende que nem tudo que é sentido pode ser expresso, o que o faz agir e reagir em determinados momentos em desacordo ao que experimenta7. O comportamento neurótico é, por exemplo, uma manifestaçao desse estado de incongruência10. Para que um indivíduo funcione de maneira plena, é necessário que haja capacidade de atualizar-se de modo amplo e completo e que seu self esteja em harmonia com sua experiência, e é isso que se espera que um processo de psicoterapia reconstitua.
O objetivo da psicoterapia nessa abordagem é, assim, criar um ambiente no qual exista um clima favorável ao desenvolvimento do potencial de crescimento interno do indivíduo, o que depende das atitudes do terapeuta em relaçao ao cliente. Tais atitudes, a saber, congruência, compreensao empática e aceitaçao positiva incondicional, devem, em conjunto, primar pelo estabelecimento de uma atmosfera onde nao haja tensoes ameaçadoras ao self do cliente e ele possa expressar-se de forma livre, facilitando a exploraçao de áreas de sua experiência que sao inaceitáveis à noçao tida de si mesmo11,12. É deste modo que o estado de acordo entre experiência e self passa a ser estabelecido e o cliente passa a funcionar de maneira autêntica, congruente.
Notadamente, tornar-se psicoterapeuta nesta abordagem nao é algo que ocorra simplesmente com a aprendizagem da graduaçao, demanda muito mais prática do que a oferecida nesses cursos, que, por vezes, é realizada em um único ano, atendendo um único cliente. Mas esta é a primeira vez que alunos de psicologia podem desenvolver um trabalho clínico, processual. E é aqui que se entende que ele começa a trilhar o caminho de se tornar um psicoterapeuta.
O presente trabalho foi fruto de um dos momentos de transiçao curricular da graduaçao em psicologia que passou entao a incluir a ACP como disciplina teórica bem como uma opçao de estágio em psicologia clínica, além da consequente supervisao neste referencial. O objetivo foi compreender como se dava o processo de tornar-se psicoterapeuta desses alunos, des-crevendo parte de sua experiência e seus significados, reconhecendo os sentimentos vivenciados ao longo do processo.
MÉTODO
O contexto de aprendizagem
Durante a graduaçao, os alunos realizam atendimentos nas próprias clínicas das universidades. Crianças, adultos e adolescentes sao atendidos nesses espaços, em grupo ou individualmente, os atendimentos sendo supervisionados por professores designados para a tarefa, normalmente em aulas semanais com grupos de alunos. A dinâmica da supervisao varia em acordo ao referencial teórico do professor, às condiçoes da universidade e às escolhas dos alunos. Os atendimentos realizados sao relatados pelos alunos e sao feitos apontamentos pelos colegas e correçoes pelo supervisor acerca da conduta do aluno/psicoterapeuta e também acerca da compreensao do funcionamento emocional do cliente.
Os dados apresentados aqui foram produzidos por oito alunos do quinto ano do curso de psicologia de uma universidade privada do estado de Sao Paulo, Brasil. Alunos que, nas séries iniciais do curso, tinham conhecido os referenciais psicanalítico e comportamental e que ao chegar ao quinto ano puderam, com um novo currículo, aprender a teoria da Psicologia Humanista e iniciar a aprendizagem prática da atividade psicoterápica embasados nela.
Face à mudança curricular apontada, as primeiras aulas de supervisao - anterior ao início do atendimento dos clientes - centraram-se em amplas discussoes sobre a forma de atendimento, contrato e outras questoes específicas relacionadas a esse contexto. Os conhecimentos e as posturas que tinham e a postura que faria parte de um atendimento sob o referencial da ACP foram amplamente debatidos. As informaçoes sobre a teoria e a prática desta abordagem recém haviam sido descobertas por eles, pois os conceitos eram ministrados em uma disciplina de três horas/aula semanais em paralelo à supervisao.
Desta preparaçao inicial em supervisao, ressaltou-se uma grande diferença entre o que os alunos haviam feito em atendimentos anteriores e o que seria solicitado neste novo estágio de psicologia clínica: eles haviam se volta-do muito mais para uma compreensao do caso, o funcionamento do cliente, do que para o estabelecimento de uma relaçao com o mesmo, como seria necessário a partir desse momento. A experiência de atendimento destes alunos, à época, resumia-se à realizaçao de triagens, executadas em sua maioria em apenas uma sessao com o mesmo cliente e ao atendimento em grupo no quarto ano, com coterapeuta (um colega de turma), segundo um referencial psicanalítico. Todavia, para o quinto ano, estes alunos fizeram a opçao pelo atendimento e supervisao dentro de um referencial Humanista, a ACP, para "conhecê-lo", como diziam.
O material do estudo
Neste estudo foi utilizado um instrumento de pesquisa fenomenológica, nomeado Versoes de Sentido (VS)13,14. Este nao foi inserido, a princípio, como instrumento de pesquisa, mas como mais uma forma de registro das sessoes conduzidas pelos alunos. A VS teve seu nascimento dentro de um grupo de psicólogos, que, ao estudar seus atendimentos, deparou-se com o fato de que os relatórios de sessao nao mais lhes faziam sentido como forma de estudo e que ao se questionarem sobre o que entao lhes faria sentido escrever, concluíram que seria aquilo que lhes viesse à mente logo após a saída do cliente, como algo expressivo da experiência imediata13.
A descriçao desta experiência pode ser entendida aqui como o caminho para a articulaçao entre a teoria e a prática da psicoterapia na supervisao15. A partir do entendimento de que a essência encontra-se na existência16, o objetivo da descriçao é o retorno às coisas mesmas, ponto de partida do processo de dar-se conta e responsabilizar-se existencialmente17.
Deste modo, o significado das VS para as práticas da ACP está relacionado a uma das condiçoes para a mudança terapêutica da personalidade, já citada na introduçao deste trabalho, sugeridas por Rogers12: a congruência, ou autenticidade, do terapeuta em sua relaçao com o cliente. É importante, neste caso, que o terapeuta esteja sendo ele mesmo na relaçao, com sua experiência precisamente representada em seu self. Para os princípios da ACP, a expressao de sentimentos em si já apresenta potencial de cura: para o cliente, que utiliza o setting terapêutico com esta finalidade; e também para
o terapeuta, que, nao negando à consciência os sentimentos realmente despertos na relaçao, é capaz de exercer seu potencial profissional com maior eficácia. A importância da expressao do que é sentido pelo psicoterapeuta nao é necessariamente comunicada ao seu cliente, mas seu registro pode ser utilizado como precioso material a ser trabalhado nas supervisoes ou como objeto de pesquisa.
As VS que se constituem, portanto, em um relato livre e espontâneo, expressivo da experiência imediata vivenciada, foram redigidas pelos alunos, depois lidas e discutidas na supervisao. Eles as escreviam às vezes remetendo-se a si e à relaçao com o cliente, e às vezes remetendo-se ao cliente, "para a compreensao do caso" (em acordo com a diferença já apontada). Ao final de cada um dos dois semestres, eles entregaram as redaçoes de todas suas VS, que, ao serem lidas no seu conjunto, revelaram-se um interessante material de estudo acerca da aprendizagem da prática psicoterápica. Com o consentimento de todos, passaram entao a constituir o material deste estudob.
O procedimento de análise
A análise dos textos de cada uma das VS foi realizada de acordo com os passos de análise fenomenológica sugeridos tanto pelo criador do instrumento13,14,18 como por autores que trabalham com análise de depoimentos19.
1. As VS foram agrupadas por aluno, na sequência em que foram escritas, isto é, da primeira à última sessao.
2. Foram lidas todas as VS de cada aluno para a captaçao da vivência global do processo vivido pelo aluno em questao, na relaçao com seu cliente.
3. Ao lado do texto de cada VS foram anotados os significados compreendidos a partir do que foi expresso pelo aluno.
4. Foi realizada a leitura desses significados (3º passo), buscandose compreender qual o processo vivido por este aluno com seu cliente. Os passos de 1 a 4 foram repetidos com as VS dos oito alunos e de posse da compreensao dos processos de todos procedeu-se a:
5. Descriçao de quatro fases que foram compreendidas como constituintes do processo de se tornar psicoterapeuta destes alunos.
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