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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2012; 14(1):58-70



Artigos Originais

Os primeiros passos no processo de tornar-se psicoterapeuta sob o referencial da Abordagem Centrada na Pessoaa

The first steps in the process of becoming a psychotherapist under the reference of The Person-Centered Approacha

Vera Lucia Pereira Alves*; Daniela Lima Dantas**

Resumo

O processo de tornar-se psicoterapeuta, segundo os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), nao é algo que ocorra com a aprendizagem da graduaçao, demanda muito mais prática do que a oferecida durante este curso; é nas clínicas escola que o estudante começa a trilhar seu caminho. O presente trabalho teve como objetivo compreender como se dava o processo de tornar-se psicoterapeuta de alunos do último ano de um curso de psicologia, em uma universidade privada do estado de Sao Paulo, Brasil, descrevendo parte de sua experiência e seus significados, reconhecendo os sentimentos vivenciados ao longo do processo. O material de estudo foi o registro escrito do sentido de cada uma das sessoes realizadas, nomeado por Versoes de Sentido (VS). Os textos das VS foram analisados em acordo aos princípios da metodologia fenomenológica. Observou-se que o momento vivido por esses estudantes compreendia quatro fases distintas: angústia, compreensao, retrocesso e separaçao, sendo cada uma delas repleta de especificidades, e foi fomentado o questionamento de se estas seriam "fases de um psicoterapeuta iniciante" ou "fases com um cliente iniciante".

Descritores: Psicoterapia; Ensino; Prática (Psicologia); Humanismo; Aprendizagem.

Abstract

The process of becoming a psychotherapist, according to the principles of the People- Centered Approach (PCA) is not something that occurs during graduate studies, demanding a lot more practice than what is offered during this course, it is in the school clinics that the students begin to mark their path. The present work aimed to understand how the process of becoming a psychotherapist was experienced by students in the last year of a Psychology course in a private university in the state of Sao Paulo, Brazil, describing part of their experience and its meanings, and recognizing the feelings lived during the process. The study material was the written register of the meaning of each of the sessions that occurred, named Versions of Meaning (VM). The texts of the VMs were analyzed according to phenomenological methodology. It was noted that the moment lived by these students encompassed four distinct phases: anguish, understanding, regression and separation; being each of them full of specifics and fostering the questioning of whether these would be "phases of a novice psychotherapist" or "phases of a novice client."

Keywords: Psychotherapy; Teaching; Practice (Psychology); Humanism; Learning.

 

 

INTRODUÇAO

A atividade de psicoterapia é realizada no Brasil principalmente pelos profissionais de psicologia e medicina. Para os primeiros, o Conselho Federal de Psicologia1, - autarquia pública que orienta, fiscaliza e disciplina a profissao de psicólogo - especificou e qualificou, somente em 20002, a psicoterapia como prática profissional. Contudo, essa atividade tem sido ensinada nos cursos de graduaçao em psicologia e nos de especializaçao e formaçao para os já graduados mesmo antes dessa resoluçao.

Os cursos de psicologia contemplavam até a primeira metade da década de 1990, o ensino da atividade de psicoterapia e dos atendimentos clínicos, notadamente, apenas em acordo aos referenciais psicanalítico e comportamental. Desde 1992, com o movimento iniciado pelo Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia para a abertura aos sistemas teóricos ausentes até entao, das salas de aula3, que resultou na Carta de Serra Negra4 e mais especificamente em 1999 com o lançamento de novas propostas para as diretrizes curriculares, evidenciou-se uma mudança de direcionamento. As "três forças" de psicologia passaram a ser igualmente transmitidas nas instituiçoes de ensino superior, priorizando a importância da diversidade teórica e metodológica nos estudo dos fenômenos psicológicos5.

A partir destas novas diretrizes, muitos cursos de psicologia começaram a implantar em seus currículos a disciplina de Psicologia Humanista - a terceira força em psicologia3. Via de regra, essa teoria passou a ser ensinada entre os primeiros quatro anos de curso, anteriores à prática clínica exercida no quarto ou quinto e último ano do curso, quando os alunos iniciam a atividade de atendimento, baseando-se nos princípios aprendidos teoricamente. As diferentes escolas a ela pertencentes têm sido apresentadas, tais como Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), Gestalt-terapia, Psicodrama, entre outras. E é em acordo com os princípios de algumas destas escolas que ocorrem as diferentes práticas clínicas do aluno (entre elas a psicoterapia) bem como a supervisao no penúltimo ou último ano do curso3.

A Abordagem Centrada na Pessoa foi instituída pelo psicólogo norteamericano Carl Rogers, tendo sua origem reportada ao início da década de 1940 e partindo de pressupostos contrários aos das abordagens teóricas psicológicas vigentes até entao. Ela estabelece a concepçao de pessoa como unidade indivisível, que incorpora tudo que a cerca e possui recursos próprios internos para seu desenvolvimento6. Dentre seus principais conceitos, alguns se fazem essenciais para a compreensao de sua teoria da personalidade e consequente sentido de seu processo terapêutico. Denomina-se organismo a totalidade do indivíduo compreendida pela unidade biopsicossocial; self e experiência, sendo self a imagem ou ideia que o indivíduo tem de si, como retrata sua identidade e experiência, o momento de contato imediato com qualquer tipo de fenômeno e os sentimentos despertos nesta vivência, antes mesmo de se tornarem conscientes (representados, simbolizados)7,8. A tendência atualizante, interna ao desenvolvimento, é central na teoria e diz respeito à tendência inerente que move todos os organismos vivos, inclusive os seres humanos, em direçao à totalidade, à realizaçao de suas potencialidades, de maneira a favorecer sua conservaçao e enriquecimento7,9.

A mobilizaçao que faz o indivíduo procurar a ajuda de um psicoterapeuta é invariavelmente ocasionada pelo estado de incongruência em que se encontra, onde self e experiência estao em desarmonia. Em suas primeiras relaçoes, em que, com frequência, é condicionalmente avaliado, o indivíduo aprende que nem tudo que é sentido pode ser expresso, o que o faz agir e reagir em determinados momentos em desacordo ao que experimenta7. O comportamento neurótico é, por exemplo, uma manifestaçao desse estado de incongruência10. Para que um indivíduo funcione de maneira plena, é necessário que haja capacidade de atualizar-se de modo amplo e completo e que seu self esteja em harmonia com sua experiência, e é isso que se espera que um processo de psicoterapia reconstitua.

O objetivo da psicoterapia nessa abordagem é, assim, criar um ambiente no qual exista um clima favorável ao desenvolvimento do potencial de crescimento interno do indivíduo, o que depende das atitudes do terapeuta em relaçao ao cliente. Tais atitudes, a saber, congruência, compreensao empática e aceitaçao positiva incondicional, devem, em conjunto, primar pelo estabelecimento de uma atmosfera onde nao haja tensoes ameaçadoras ao self do cliente e ele possa expressar-se de forma livre, facilitando a exploraçao de áreas de sua experiência que sao inaceitáveis à noçao tida de si mesmo11,12. É deste modo que o estado de acordo entre experiência e self passa a ser estabelecido e o cliente passa a funcionar de maneira autêntica, congruente.

Notadamente, tornar-se psicoterapeuta nesta abordagem nao é algo que ocorra simplesmente com a aprendizagem da graduaçao, demanda muito mais prática do que a oferecida nesses cursos, que, por vezes, é realizada em um único ano, atendendo um único cliente. Mas esta é a primeira vez que alunos de psicologia podem desenvolver um trabalho clínico, processual. E é aqui que se entende que ele começa a trilhar o caminho de se tornar um psicoterapeuta.

O presente trabalho foi fruto de um dos momentos de transiçao curricular da graduaçao em psicologia que passou entao a incluir a ACP como disciplina teórica bem como uma opçao de estágio em psicologia clínica, além da consequente supervisao neste referencial. O objetivo foi compreender como se dava o processo de tornar-se psicoterapeuta desses alunos, des-crevendo parte de sua experiência e seus significados, reconhecendo os sentimentos vivenciados ao longo do processo.


MÉTODO

O contexto de aprendizagem


Durante a graduaçao, os alunos realizam atendimentos nas próprias clínicas das universidades. Crianças, adultos e adolescentes sao atendidos nesses espaços, em grupo ou individualmente, os atendimentos sendo supervisionados por professores designados para a tarefa, normalmente em aulas semanais com grupos de alunos. A dinâmica da supervisao varia em acordo ao referencial teórico do professor, às condiçoes da universidade e às escolhas dos alunos. Os atendimentos realizados sao relatados pelos alunos e sao feitos apontamentos pelos colegas e correçoes pelo supervisor acerca da conduta do aluno/psicoterapeuta e também acerca da compreensao do funcionamento emocional do cliente.

Os dados apresentados aqui foram produzidos por oito alunos do quinto ano do curso de psicologia de uma universidade privada do estado de Sao Paulo, Brasil. Alunos que, nas séries iniciais do curso, tinham conhecido os referenciais psicanalítico e comportamental e que ao chegar ao quinto ano puderam, com um novo currículo, aprender a teoria da Psicologia Humanista e iniciar a aprendizagem prática da atividade psicoterápica embasados nela.

Face à mudança curricular apontada, as primeiras aulas de supervisao - anterior ao início do atendimento dos clientes - centraram-se em amplas discussoes sobre a forma de atendimento, contrato e outras questoes específicas relacionadas a esse contexto. Os conhecimentos e as posturas que tinham e a postura que faria parte de um atendimento sob o referencial da ACP foram amplamente debatidos. As informaçoes sobre a teoria e a prática desta abordagem recém haviam sido descobertas por eles, pois os conceitos eram ministrados em uma disciplina de três horas/aula semanais em paralelo à supervisao.

Desta preparaçao inicial em supervisao, ressaltou-se uma grande diferença entre o que os alunos haviam feito em atendimentos anteriores e o que seria solicitado neste novo estágio de psicologia clínica: eles haviam se volta-do muito mais para uma compreensao do caso, o funcionamento do cliente, do que para o estabelecimento de uma relaçao com o mesmo, como seria necessário a partir desse momento. A experiência de atendimento destes alunos, à época, resumia-se à realizaçao de triagens, executadas em sua maioria em apenas uma sessao com o mesmo cliente e ao atendimento em grupo no quarto ano, com coterapeuta (um colega de turma), segundo um referencial psicanalítico. Todavia, para o quinto ano, estes alunos fizeram a opçao pelo atendimento e supervisao dentro de um referencial Humanista, a ACP, para "conhecê-lo", como diziam.

O material do estudo

Neste estudo foi utilizado um instrumento de pesquisa fenomenológica, nomeado Versoes de Sentido (VS)13,14. Este nao foi inserido, a princípio, como instrumento de pesquisa, mas como mais uma forma de registro das sessoes conduzidas pelos alunos. A VS teve seu nascimento dentro de um grupo de psicólogos, que, ao estudar seus atendimentos, deparou-se com o fato de que os relatórios de sessao nao mais lhes faziam sentido como forma de estudo e que ao se questionarem sobre o que entao lhes faria sentido escrever, concluíram que seria aquilo que lhes viesse à mente logo após a saída do cliente, como algo expressivo da experiência imediata13.

A descriçao desta experiência pode ser entendida aqui como o caminho para a articulaçao entre a teoria e a prática da psicoterapia na supervisao15. A partir do entendimento de que a essência encontra-se na existência16, o objetivo da descriçao é o retorno às coisas mesmas, ponto de partida do processo de dar-se conta e responsabilizar-se existencialmente17.

Deste modo, o significado das VS para as práticas da ACP está relacionado a uma das condiçoes para a mudança terapêutica da personalidade, já citada na introduçao deste trabalho, sugeridas por Rogers12: a congruência, ou autenticidade, do terapeuta em sua relaçao com o cliente. É importante, neste caso, que o terapeuta esteja sendo ele mesmo na relaçao, com sua experiência precisamente representada em seu self. Para os princípios da ACP, a expressao de sentimentos em si já apresenta potencial de cura: para o cliente, que utiliza o setting terapêutico com esta finalidade; e também para

o terapeuta, que, nao negando à consciência os sentimentos realmente despertos na relaçao, é capaz de exercer seu potencial profissional com maior eficácia. A importância da expressao do que é sentido pelo psicoterapeuta nao é necessariamente comunicada ao seu cliente, mas seu registro pode ser utilizado como precioso material a ser trabalhado nas supervisoes ou como objeto de pesquisa.

As VS que se constituem, portanto, em um relato livre e espontâneo, expressivo da experiência imediata vivenciada, foram redigidas pelos alunos, depois lidas e discutidas na supervisao. Eles as escreviam às vezes remetendo-se a si e à relaçao com o cliente, e às vezes remetendo-se ao cliente, "para a compreensao do caso" (em acordo com a diferença já apontada). Ao final de cada um dos dois semestres, eles entregaram as redaçoes de todas suas VS, que, ao serem lidas no seu conjunto, revelaram-se um interessante material de estudo acerca da aprendizagem da prática psicoterápica. Com o consentimento de todos, passaram entao a constituir o material deste estudob.

O procedimento de análise

A análise dos textos de cada uma das VS foi realizada de acordo com os passos de análise fenomenológica sugeridos tanto pelo criador do instrumento13,14,18 como por autores que trabalham com análise de depoimentos19.

1. As VS foram agrupadas por aluno, na sequência em que foram escritas, isto é, da primeira à última sessao.

2. Foram lidas todas as VS de cada aluno para a captaçao da vivência global do processo vivido pelo aluno em questao, na relaçao com seu cliente.

3. Ao lado do texto de cada VS foram anotados os significados compreendidos a partir do que foi expresso pelo aluno.

4. Foi realizada a leitura desses significados (3º passo), buscandose compreender qual o processo vivido por este aluno com seu cliente. Os passos de 1 a 4 foram repetidos com as VS dos oito alunos e de posse da compreensao dos processos de todos procedeu-se a:

5. Descriçao de quatro fases que foram compreendidas como constituintes do processo de se tornar psicoterapeuta destes alunos.



RESULTADOS

As VS de cada um dos alunos registraram um processo com sequência de início, meio e fim. A percepçao do mesmo foi mais clara nas VS cujos textos expressavam mais significados do aluno e da sua relaçao com o cliente do que naquelas que expressavam o "caso", embora também se pudesse perceber nestas o processo vivido. Quatro fases sao aqui apontadas, acompanhadas de trechos das VS (identificados por VS seguido do número da sessao a que pertencem, e a letra T seguida do número que indica de qual terapeuta é a VS) a fim de que possam ilustrar a compreensao do processo vivido pelos alunos nesta atividade de primeiro atendimento psicoterápico.

PRIMEIRA FASE - Esta é uma fase de angústia para o psicoterapeuta em que se presentificam os sentimentos de impotência frente à queixa, à solicitaçao do cliente: Senti-me impotente. Ela me transmite ao mesmo tempo muito ódio, e muito sofrimento... Enquanto ela falava, eu pensava: o que eu poderei fazer por ela? (VS1/T1). Além do sentimento de confusao e da esperança de que a mesma fosse resolvida durante a supervisao: Ao final desta sessao estou me sentindo totalmente confusa, nao consegui nem fazer o contrato com a cliente. Nao tenho nem palavras, só que estou muito assustada, espero que na supervisao eu possa ser consolada, que eu tenha uma direçao a seguir (VS1/T2).

Angústia e ansiedade se misturam à autopercepçao de uma disponibilidade para estar com o cliente, apesar de certo receio frente a ele: [...] Senti uma angústia com a sua história e uma necessidade de poder ajudá-lo (VS1/T3) e Estou muito ansiosa e o atraso de meu cliente me deixa mais ansiosa e inquieta. Apesar da ansiedade estou apostando muito neste caso (VS1/T8).

SEGUNDA FASE - É uma fase de construçao da compreensao do psicoterapeuta em que se faz presente um sentimento de alívio pelo entendimento obtido: Percebo um caminho de compreensao que me alivia, sinto a dificuldade do cliente, mas nao me sinto incapaz; pelo contrário, isto me motiva a ajudá-lo (VS6/T3) e Sinto-me inteiramente aliviada em ser capaz de compreender o que o cliente trouxe e o significado que isto tem em sua vida (VS8/T3). O alívio provoca no psicoterapeuta um bem-estar, tornando-o mais disponível: Estava muito disposta nesta sessao, compreendendo o cliente, o que me fez sentir bem (VS7/T3).

Pela tranquilidade e bem-estar alcançados é possível a este psicoterapeuta que "receba" ou aprenda algo com seu cliente: [...] Um sentimento que me fez refletir, que todos nós temos as nossas próprias respostas e que muitas vezes precisamos de alguém (terapeuta) para percebê-las (VS2/T4 - 2º cliente).

O respeito pelo cliente também parece aumentar como fruto desta mesma tranquilidade e disponibilidade: Senti-me muito bem com a sessao de hoje, pelo simples fato de saber que é difícil falar, mas que ele quer conseguir (VS4/T6). E o papel do psicoterapeuta também se mostra mais claro, sendo menos difícil ao aluno ser um facilitador: Me senti muito tranquila durante a sessao, podendo escutar a cliente (VS4/T7) e Apesar de estar difícil, me sinto bem com o caso, será um desafio muito interessante...(VS3/T2)

TERCEIRA FASE - Esta é uma fase em que o psicoterapeuta tem a sensaçao de retrocesso. O psicoterapeuta parece decepcionado que o cliente nao "evolua linearmente" e vários sentimentos a cada um dos obstáculos vividos se fazem presentes. Diante das faltas do cliente, há um entristecimento do psicoterapeuta: Fiquei muito triste, pois o paciente nao veio, queria muito atendê-lo e saber como está e como passou sem as sessoes (VS7/T8), surge na sequência o medo de que o cliente interrompa o processo: Espero nao ser abandonada novamente, agora que estava ficando legal (VS7/T1).

Os sentimentos de confusao e angústia voltam a assolar o psicoterapeuta face ao receio de que o cliente "regrida ao invés de progredir" e de que o retrocesso seja dos dois: No início da sessao estava me sentindo muito bem. Depois que a cliente começou a falar, me senti confusa, pois tinha achado que progredimos na sessao anterior [...] nessa sessao ela trouxe a queixa inicial, e isso me fez pensar que ao invés de progredir, regredimos (VS3/T7).

Faz-se imperativo neste momento um desejo em compreender o cliente: O cliente nao está bem e isso me preocupa, queria poder entendê-lo melhor neste momento (VS12/T3) e Estou angustiada nao sei o que dizer ao cliente e sinto que ele me pede algo (VS13/T3) e Nao consegui entender. Hoje [o cliente] manteve-se muito calado, já fazia muito tempo que isso nao ocorria... (VS8/T6). Desejo este seguido de novo receio: a avaliaçao do cliente quanto à sua capacidade em ajudá-lo: [...] Senti-me também cobrada, quanto a minha competência... (VS4/T1) e Hoje a sessao me deixou cansada, mas preocupada, pois senti que tinha muito que falar, mas nao conseguia (VS10/T6).

QUARTA FASE - É a fase da separaçao. Há, no caso dos psicoterapeutas/ alunos, o desligamento iminente. O final do processo de ambos é dado pelo término do curso. Há um sentimento de felicidade, alegria por se constatarem melhoras, pelo crescimento do cliente: Me senti muito tranquila e segura. A cliente nao consegue me tirar o equilíbrio, consegui compreender e respeitar seus sentimentos sem perder a tranquilidade (VS5/T7). Há também a tristeza pela separaçao que se faz acompanhar da constataçao de sua própria evoluçao na aprendizagem: Nesta sessao me senti tranquila e segura, mas um pouco triste por ser a penúltima (VS8/T7) e Estou me sentindo angustiada, nao queria despedida, mas consegui ficar bem no decorrer da sessao (VS9/ T7) e Foi uma sessao de início espontânea, como sempre foi, até que me dei conta, isso foi difícil, fiquei muito emocionada, ao mesmo tempo em que senti minha importância. Vivi minha impotência da separaçao, ainda estou abalada (VS20/T3).

O psicoterapeuta também se dá conta daquilo que o cliente conquistou: Fiquei feliz em ver que ele tomou consciência de certas atitudes suas para fugir das demais pessoas, é um progresso (VS15/T6) e teme pelo que lhe aguarda: Essa sessao me tocou profundamente, fico ansiosa pelas possibilidades que possam estar surgindo sobre a maneira de pensar do cliente (VS16/T3).

É uma fase marcada pela avaliaçao do processo com o cliente e do próprio processo de vida: A cliente está sentindo que vai ficar sozinha, sem a psicóloga, talvez seja por isso que [o tema da] "morte" esteja tao intenso. Eu finalmente senti que fui importante para ela. Ela também foi importante para mim, a separaçao é mútua, em todos os sentidos eu também vou me separar de todos os colegas, professores, da angústia das provas, das notas, alegrias, tristezas. Vou iniciar um novo momento, em meio à correria nao paramos para pensar, pensar nessa separaçao. Espero que a cliente seja atendida no ano que vem, espero que alguém se interesse por ela (VS18/T2) e marcada pelo crescimento: [...] sei que cumpri minha parte no crescimento dele e ele no meu crescimento profissional. Foi uma grande liçao... Hoje entendo muito bem seus silêncios (VS16/T6)


DISCUSSAO

As reaçoes de medo e impotência que permeiam a primeira fase constituem-se num clima de ameaça gerador de angústia, uma vez que apontam para a "incerteza de satisfaçao no encontro com o desconhecido" (p. 14)20. Estes sentimentos podem, igualmente, estar ligados também à perda de um ideal presente na imaginaçao do psicoterapeuta, sob a forma de um encontro entre um paciente sofrido que busca ajuda e de um psicólogo que saberá ajudá-lo e acompanhá-lo neste sofrimento21 um encontro de sucesso, que entao nao se confirmaria nessas primeiras sessoes, fazendo com que o psicoterapeuta tivesse que se confrontar com a experiência real vivenciada, diferente da imaginada. É um momento em que esse psicoterapeuta desalojado de um lugar seguro e expondo-se agora a frustraçoes ao mesmo tempo se mostra disponível para o novo20, porque conta com a segurança de uma supervisao (supervisor e colegas).

Simultaneamente, essas reaçoes podem estar ligadas à crença de que a teoria obtida até entao seria a habilitaçao suprema, e de que existiria nele, psicoterapeuta, um saber teórico para ser passado ao cliente, o que, quando acontece, acaba por se concretizar numa fala da teoria para um ainda suposto cliente21.

A segunda fase parece caracterizar o desenvolvimento da empatia. Ocorre quando o aluno começa a escutar o cliente, o que lhe possibilita se colocar no lugar dele, "como se fosse" o cliente, como ressaltado por Rogers22. O psicoterapeuta pode entao voltar-se ao mundo do cliente. Nao que isto aconteça integralmente, mas é o início, pois há um envolvimento maior do psicoterapeuta com o cliente, de vital importância para seu crescimento, como diz Rogers (p.186)10: "quanto mais o terapeuta percebe o cliente como uma pessoa, tanto mais o cliente se apreende a si mesmo como uma pessoa e nao como um objeto".

Pode-se aventar aqui a possibilidade de que a compreensao que o psicoterapeuta percebe construir na relaçao com seu cliente também perpasse os conhecimentos intelectuais, isto é, talvez seja este um momento de integraçao dos aspectos teóricos por ele aprendidos no decorrer do curso e agora imbricados numa compreensao vivencial do funcionamento dessa pessoa, vivência única que a atividade psicoterápica propicia23.

Na terceira fase, marcada pela sensaçao de retrocesso, ocorre uma quebra da ilusao de um progresso linear. É como se o psicoterapeuta tivesse considerado que, por entender melhor seu cliente (segunda fase), tudo caminharia de modo mais efetivo, e a falta do cliente ou a constataçao de que a queixa ainda permanece, nao tendo se acabado como em um passe de mágica, é vista pelo psicoterapeuta como um retrocesso. Ele se decepciona ou consigo ou com o cliente ou com ambos. O psicoterapeuta passa da "crença da total possibilidade à dúvida de qualquer possibilidade" (p.114) 21.

O retrocesso percebido aqui pode ser entendido também em relaçao ao constatado na segunda fase. A aprendizagem foi vista lá como circular: interligando teoria e vivência. Mas, esta aprendizagem ainda muito recente, frente à tristeza, ao medo de perder o cliente, retrocede e retorna assim ao pensamento linear, tao presente nos anos anteriores do curso: a segurança do lugar conhecido que, novamente pela disponibilidade deste psicoterapeuta, cede espaço e o permite caminhar mais um pouco.

A quarta fase é caracterizada nao apenas pela separaçao que de fato está ocorrendo entre psicoterapeuta e cliente, mas também pela separaçao - diferenciaçao - entre os dois. O mal-estar do cliente nao é mais percebido como "falha" do psicoterapeuta, nao o deixa mais tao angustiado, "nao lhe tira o equilíbrio", embora o mobilize a continuar disponível para o cliente. Há uma percepçao de duas pessoas em envolvimento, sendo que elas nao sao mais indiferenciadas, o que lhes possibilita ver melhoras no cliente que poderiam até ter ocorrido na terceira fase, mas que nao eram percebidas pelo psicoterapeuta. Ele mostra ter superado ou minimizado sua insegurança, parece tê-la aceito como o "fator real embora doloroso" (p.13)23. É nesta fase que o aluno percebe seu trabalho, seu crescimento. Esta vivência o contempla com a experiência de um processo terapêutico como o fluxo experiencial que de fato é10.


CONSIDERAÇOES FINAIS

A primeira fase, de confusao e impotência, recheada dos sentimentos habituais ao enfrentamento de coisas novas na vida cotidiana24, no caso do psicoterapeuta iniciante, parece torná-lo centrado muito mais em sua pessoa, em suas necessidades do que nas do cliente, como se o cliente nao existisse ainda para ele como pessoa, só como enigma. Assim, nao há, de início, a instalaçao de uma verdadeira relaçao terapêutica, fato este que pode levar ao questionamento acerca dos prejuízos que esta reaçao poderia causar ao processo do cliente. No entanto, é suposto para a atividade de psicoterapeuta, em qualquer referencial, e também na ACP, que isto nao será prejudicial se for percebido, conscientizado e elaborado pelo psicoterapeuta e, portanto, corrigido, o que, por sua vez, lhe possibilitará tomar consciência de si como pessoa e profissional com seus medos e angústias8,23,25. O que poderá entao facilitar-lhe perceber melhor a pessoa do outro, também com medos e angústias23. Neste estudo, essas reaçoes parecem nao ter comprometido a escuta dos psicoterapeutas, pois eles caminharam para as fases seguintes. Tampouco parece ter ocorrido com estes psicoterapeutas a dificuldade de lidar com problemas apresentados por seus clientes que se assemelhassem aos dos próprios terapeutas, algo que é referido no ambiente de formaçao do psicoterapeuta como merecedor de atençao23.

O estudo permite ainda outros questionamentos quanto às fases por que passa um psicoterapeuta. Em virtude do tempo de atendimento dos alunos (um ano), a quarta fase marcou também o final do processo. Todavia, em processos mais longos, porventura mais fases se façam presentes. Outras pesquisas poderiam contribuir para uma compreensao mais ampla desta questao, bem como para responder se as fases aqui registradas sao exclusivamente de psicoterapeutas iniciantes ou se nao seriam fases de todos os psicoterapeutas quando entram em contato com um novo cliente, nao sendo, entao, "fases de um psicoterapeuta iniciante", mas sim "fases com um cliente iniciante".

Por fim, cabe ressaltar ainda a importância dos conhecimentos teóricos e as implicaçoes da própria pessoa do psicoterapeuta para esta atividade. A aprendizagem das teorias de cada um dos três grandes referenciais de psicologia propiciada pela abertura advinda dos movimentos de professores, coordenadores de curso e psicólogos em geral nestes quase cinquenta anos da profissao de psicologia no Brasil, deveria servir aos alunos para algo além da obtençao de mais um instrumento para lidar com os clientes. As teorias ensinadas deveriam possibilitar aos alunos reconhecer sua própria concepçao de ser humano e a compreendê-la de acordo com as "cor-rentes" de psicologia de forma a fazer, posteriormente, uma escolha de referencial teórico a seguir congruente com sua própria concepçao de ser humano. O psicoterapeuta e psicólogo construiria, desta forma, seu jeito pessoal de viver esta profissao para a qual se faz necessária, igualmente, a própria psicoterapia, de absoluta importância na construçao do tripé formador do psicoterapeuta: conhecimento teórico, manejo da técnica e supervisao e autoconhecimento26. Afinal, ser psicólogo é ter o livre arbítrio sustentado nos próprios sentimentos, na interioridade, é constituir-se como pessoa ao mesmo tempo em que se constitui como profissional: "é uma proposta de estilo de vida, de modos de ser" (p.163)27.


AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de agradecer ao Prof. Dr. Nilton Julio de Faria pelas generosas informaçoes sobre a precisao dos dados de diferentes diretrizes curriculares nos cursos de psicologia.


COLABORADORES

VL Alves foi responsável pela concepçao, planejamento, análise de dados e delineamento do artigo. DD Lima foi responsável pelo delineamento e pela revisao crítica do artigo.


REFERENCIAS

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* Psicóloga, doutora em Educaçao pela Unicamp e coordenadora do Espaço de Estudos e Pesquisas na Abordagem Centrada na Pessoa Dr. John Keith Wood.
** Psicóloga, doutoranda em Ciências Médicas do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.

Instituiçao: Espaço de Estudos e Pesquisas na Abordagem Centrada na Pessoa Dr. John Keith Wood.

Correspondência
Vera Lucia Pereira Alves
Av. Julio Mesquita 536 ap. 32 Cambuí
Campinas, SP, Brasil - CEP 13025-061
Fones (19) 3029 3520 fax (19) 3368 3520 celular (19) 9611 1370
E-mail: vera@alves.com.br

a Partes deste trabalho foram apresentadas no I Encontro de Psicologia Humanista do Interior Paulista em 16/04/99 e no III Fórum Brasileiro da ACP - 10 a 16/10/99.
b A autorizaçao de cada um foi firmada por escrito e devidamente assinada.

 

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