Rev. bras. psicoter. 2011; 13(3):91-93
Picon FA. Precisamos falar sobre Kevin: um breve momento de reflexao. Rev. bras. psicoter. 2011;13(3):91-93
Resenha de Filme
Precisamos falar sobre Kevin: um breve momento de reflexao
We need to talk about Kevin: a moment of reflection
Felipe Almeida Picon*
Baseado no best seller de Lionel Shriver e dirigido pela cineasta escocesa Lynne Ramsay (de O Romance de Morvern Callar de 2002), Precisamos falar sobre Kevin (We need to talk about Kevin, 2011) é um suspense psicológico que nos conduz pelas memórias de uma mae, Eva, interpretada por Tilda Swinton (de Conduta de Risco (Michael Clayton de 2007), sobre o nascimento, desenvolvimento e fatídico desfecho de seu primogênito. O filme tem um curso entrecortado, por vezes lembrando o andamento de um pesadelo que, na verdade, é real. A narrativa mistura acontecimentos vividos por Eva após o evento catastrófico perpetrado por seu filho, com memórias desde antes de seu nascimento e imagens onde predominam a cor vermelha. Cinematograficamente brilhante, o filme injeta doses constantemente crescentes de tensao até a saturaçao de nossa capacidade de pensar e sentir, realizando com sucesso a transmissao das emoçoes dessa díade mae-filho, em seu relacionamento vazio e violento.
Precisamos falar sobre Kevin pode ser pensado como uma grande tentativa de entendimento e reparaçao de uma mae afogada em culpa pelos atos horrendos de seu filho. O livro que deu origem ao filme é uma obra de ficçao que parece baseada nos fatos verídicos que aconteceram numa escola de ensino médio em Columbine, nos EUA, em 1999. Há semelhanças entre as duas histórias, mas aqui o ponto de vista é o da mae, que busca um sentido para seu passado e presente. Vinda de uma carreira bem-sucedida como escritora de livros turísticos e uma vida exclusivamente a dois; desde antes do parto, a maternidade parece se configurar como um fardo muito difícil de ser carregado. Nosologicamente, é nítido que Eva encontra-se em uma profunda depressao pós-parto; contudo, o filme vai muito além disso, mostrando todos os desdobramentos do mórbido encontro entre características inatas e um ambiente pouco favorável.
Kevin, filho de Eva, vem ao mundo nos braços gélidos e inábeis de sua mae devastada. O filme mostra as interaçoes crescentes de violência entre os dois ao mesmo tempo em que entrecorta as imagens com tentativas da mae de reparar, seja raspando a tinta vermelha jogada em sua casa após a tragédia, seja na infância de Kevin, quando tentava ser amável com ele. O desapego e desinteresse de Kevin pelo mundo fica nítido em diversos momentos e em situaçoes de seu desenvolvimento. Kevin cresce com diversas manifestaçoes de crueldade, desprovido de qualquer empatia, primeiramente contra sua mae e depois contra seus colegas de escola. Os atos de violência sao recíprocos e predominantemente substituem quaisquer outras formas de demonstraçao de afeto entre os dois. Seu relacionamento nao é penetrado por ninguém, seja pelo pai, seja por outras pessoas, como o pediatra que o acha totalmente normal e outra médica, que comenta ser Kevin um menino muito corajoso. A ausência do pai é constante durante toda a história e mostra-se desde na sua incapacidade de dar-se conta da agressividade de Kevin em pequenos eventos da infância, sempre amenizando como "coisas que meninos fazem", até no auge de incentivá-lo à perfeiçao da prática da fatal arte do arco-e-flecha. A ausência e o vazio também ficam claros na ausência de limites em toda a criaçao de Kevin, explicitada da forma mais cruel quando ambos os pais acobertam o fato de Kevin ter supostamente causado a perda de um olho de sua irma mais nova.
Ao mesmo tempo em que Kevin se relaciona com toda família de forma quase exclusivamente violenta, Eva é a única que de fato o conhece. Seu pai conhece apenas o lado agradável que Kevin faz questao de demonstrar em contraste com como se comporta com sua mae. Eva é a única que percebe a maldade de seu filho, desde muito cedo, mas nao consegue fazer nada para conter ou alterar seu curso. Ela relembra os inúmeros eventos perpetrados por Kevin e, de certa forma, se enxerga nele. Eva vê sua própria agressividade em seu filho e isso a imobiliza ainda mais. Mesmo quando sua maldade fica evidente, ninguém parece percebê-la. Kevin mistura crescente dissimulaçao, inteligência com requintes de crueldade e ao longo da história vai preparando sua mórbida obra-prima.
Precisamos falar sobre Kevin retrata a história de uma família que nao consegue falar sobre Kevin, muito menos reconhecer a gravidade do comportamento dele, a nao ser quando ele se torna um serial killer nacionalmente famoso. É um filme emocionalmente pesado que traz à tona inúmeras questoes a serem discutidas do ponto de vista do relacionamento entre pais e filhos, da colocaçao de limites, da repercussao da dificuldade de comunicaçao de afetos entre mae e filho, dos possíveis problemas decorrentes da depressao pós-parto e da dificuldade dos pais em entrar em contato com aspectos cruéis de seus filhos. Teria Kevin se beneficiado, assim como sua mae, família e por final toda a sociedade, se suas dificuldades tivessem sido abordadas o mais cedo possível? Poderia uma abordagem terapêutica com foco na interaçao mae-bebê ter alterado favoravelmente o curso de seu desenvolvimento? Qual seria o papel dos terapeutas, psicólogos e psiquiatras em situaçoes como as descritas no filme? Até que ponto a ausência de um trabalho terapêutico focado no entendimento desse relacionamento e na expressao do afeto poderia ter alterado o desfecho fatal? Ainda nao sabemos quanto do comportamento antissocial é decorrente do ambiente e quanto já é inato ao indivíduo. Essa angústia, infelizmente, seguirá conosco mesmo após o final do filme.
* Psiquiatra da Infância e da Adolescência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre em Psiquiatria (UFRGS). Aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduaçao em Psiquiatria da UFRGS.
Programa de Pós-Graduaçao em Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Medicina da UFRGS. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
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Felipe Almeida Picon
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