Rev. bras. psicoter. 2011; 13(3):78-90
Pires ACJ. Sobre o ensino de psicoterapia de orientaçao analítica. Rev. bras. psicoter. 2011;13(3):78-90
Artigos Originais
Sobre o ensino de psicoterapia de orientaçao analítica
About the psychoanalytic psychotherapy teaching
Antonio Carlos J. Pires*
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O ensino da Psicoterapia de Orientaçao Analítica (POA) é uma tarefa de significativa responsabilidade, uma vez que o treinamento do psicoterapeuta em formaçao terá sempre algum tipo de repercussao no mundo interno de seus futuros pacientes (ampliando ou nao a compreensao destes a respeito do seu funcionamento mental), além de exercer, ainda que de forma indireta, algum tipo de influência, facilitadora ou nao, na vida daquelas pessoas que com eles convivem intimamente. No entanto, como assinalam Watters e cols.1, pouco se publica sobre os objetivos e métodos de ensino de POA. Talvez esse fato possa estar relacionado à falta de consenso entre os professores dessa disciplina sobre o que precisa ser ensinado e como esse conhecimento deve ser transmitido ou, quem sabe, esteja vinculado à dificuldade dos educadores nessa área em pôr à mostra seu trabalho. Ademais, parece nao haver consenso até mesmo sobre o conceito de POA, uma vez que, como destacam Eizirik e cols.2, esse tipo de tratamento chega a aparecer em inúmeras publicaçoes sob diferentes títulos como, por exemplo, "psicoterapia compreensiva", "psicoterapia dinâmica", "psicoterapia expressiva" ou "psicoterapia dirigida ao insight". Como a discussao sobre a questao da vagueza desse conceito é bastante ampla, nao cabendo nos limites deste trabalho, fica aqui apenas o registro de que entendo a POA como um método de investigaçao do inconsciente construído pela dupla paciente/terapeuta, que se ampara basicamente nas associaçoes livres fornecidas pelo primeiro, permitindo ao segundo a apreensao dos conflitos intrapsíquicos e dos mecanismos de defesa inconscientes do paciente e possibilitando ao psicoterapeuta a formulaçao de interpretaçoes, tanto transferenciais quanto extratransferenciais, que têm como objetivo possibilitar ao paciente um melhor conhecimento de si mesmo, assim como obter alívio do seu sofrimento através da elaboraçao, em algum grau, de seus conflitos internos.
O presente artigo tem por finalidade apresentar, de forma bastante sucinta, minha experiência como professor de POA desde o ano de 1996 até o momento atual, junto aos grupos de alunos do 3º ano de residência em psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) com os quais tenho tido a satisfaçao de ter contato, a cada ano letivo que se renova.
O PROGRAMA DE ENSINO
O atual programa de ensino de POA para os residentes do HCPA foi estruturado, inicialmente, com base em minhas próprias vivências como aluno do 3º ano do Curso de Especializaçao em Psiquiatria da UFRGS. Assim, para elaborar esse projeto, levei em conta os conteúdos a que tive acesso ao longo dos seminários que frequentei enquanto em formaçao, acrescidos das noçoes que, em funçao da experiência acumulada, percebi serem fundamentais para quem está se iniciando no exercício dessa disciplina. Com isso em mente, foi organizado um programa anual composto de 33 seminários, cada um com duraçao mínima de uma hora, cujos temas sao discutidos livremente pelos 12 alunos que fazem parte do grupo, sendo todos estimulados a desenvolver uma leitura crítica dos textos previamente selecionados pelo coordenador. No primeiro encontro, o roteiro de estudos e a metodologia de trabalho sao apresentados e discutidos em grupo. Seguem-se, entao, 16 seminários por semestre de cunho predominantemente teórico (com textos que, na medida do possível, incluam exemplos práticos dos aspectos teóricos estudados) e/ou essencialmente clínico (com discussao de material apresentado por alunos e professores). Ao final de cada semestre há um seminário de avaliaçao, onde é feita, em grupo, uma apreciaçao do desempenho dos alunos e do professor, assim como uma análise crítica dos textos estudados, na busca do constante aperfeiçoamento do programa.
Basicamente, o referido plano de trabalho inclui os seguintes temas e referências bibliográficas: o exercício ético da psicoterapia3,4, a estruturaçao do setting psicoterápico [discussao livre], a importância da neutralidade5, o processo de avaliaçao de pacientes6, o contrato psicoterápico7, transferência8,9,10, contratransferência11,12,13, identificaçao projetiva14,15,16, funçao continente17, tipos de interpretaçao18, atividade interpretativa19,20, a avaliaçao da interpretaçao21, insight22, insight, elaboraçao e mudança psíquica23, acting out24,25, reaçao terapêutica negativa e impasse26, transtornos de caráter27,28, sonhos29 e término do tratamento30.
Além dos seminários teórico-clínicos, os residentes têm também a oportunidade de supervisionar um caso de POA oriundo de consultório particular, contando para essa atividade com a colaboraçao de supervisores experientes que fazem parte do corpo docente do Curso de Especializaçao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica da UFRGS. Tal atividade estende-se ao longo do ano letivo por, pelo menos, 30 horas.
Claro está que o objetivo desse programa nao é o de formar psicoterapeutas em tao pouco tempo de trabalho, mas sim apresentar aos alunos alguns dos conceitos básicos que estruturam essa disciplina e motiválos ao estudo mais aprofundado da POA. Tal aprofundamento ocorre a posteriori, por aqueles que assim o desejarem, no anteriormente citado Curso de Especializaçao em POA. Ademais, cabe salientar que a disciplina de psicoterapia de orientaçao analítica está inserida num programa de residência em psiquiatria, em que, desde o início, sao ensinadas noçoes de psicanálise, em especial no segundo ano, onde há supervisao sistemática dos casos de psicoterapia de ambulatório, além de um seminário semanal, no terceiro ano, sobre as contribuiçoes técnicas de Freud, Klein e outros autores. Em suma, essa disciplina está situada no contexto geral da residência, que almeja uma formaçao pluralista, onde outras modalidades de psicoterapia sejam ensinadas ao mesmo tempo.
No primeiro seminário propriamente dito, que versa sobre o exercício ético da psicoterapia, procuram-se discutir as seguintes questoes:
- Como se estrutura, na mente do psicoterapeuta, o código ético que norteia sua conduta pessoal e profissional? Neste sentido, é dada ênfase à ideia de que a ética de cada indivíduo emana de suas próprias relaçoes objetais internas e que, em funçao disso, tratamos nossos semelhantes, incluindo nossos pacientes, de acordo com as normas segundo as quais nos relacionamos com nossos objetos internos.
- O que significa ser ético em POA? Aqui é dado destaque à concepçao de que cabe ao psicoterapeuta auxiliar o paciente na busca da sua verdade, construindo e preservando um enquadre adequado para que isso ocorra.
- O que leva um terapeuta a infringir o código de ética de sua profissao? Em relaçao a isso, discute-se um caso fictício de infraçao ética encontrado no filme Vestida para matar, de Brian De Palma. Nessa obra, fica evidente que a violaçao encenada foi construída a partir de um padrao primitivo de relaçao objetal que norteava a conduta do personagem/terapeuta e que fazia com que a figura do personagem/ paciente fosse percebida como uma parte do mundo interno do próprio terapeuta personificado na tela, como se o paciente do filme existisse apenas com a finalidade de lhe propiciar satisfaçao. Sublinha-se, nesse contexto, a necessidade de uma formaçao psicoterápica criteriosa e de uma análise pessoal adequada para aqueles que pleiteiam trabalhar nessa área.
é necessário renunciar à visao simplista segundo a qual a medicaçao operaria pela via única de um determinismo biológico, e a psicoterapia por aquela da liberaçao de potencialidades psíquicas latentes. Nos dois casos, há uma pressao necessária exercida sobre um modo de funcionamento atual, que pode ser neuronal ou psíquico, para permitir um exercício mais flexível e livre de outras modalidades de funcionamento (p.181).
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