ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2011; 13(3):78-90



Artigos Originais

Sobre o ensino de psicoterapia de orientaçao analítica

About the psychoanalytic psychotherapy teaching

Antonio Carlos J. Pires*

Resumo

O autor apresenta, de forma sucinta, sua experiência como professor de Psicoterapia de Orientaçao Analítica junto aos alunos do terceiro ano de residência em psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. O programa de ensino da disciplina é discutido, bem como a forma de avaliaçao dos alunos. Sao feitas consideraçoes sobre algumas das dificuldades próprias dessa atividade.

Descritores: psicoterapia; ensino; internato e residência; psicoterapia de orientaçao analítica; avaliaçao e vicissitudes.

Abstract

The author briefly presents his experience as a psychoanalytical psychotherapy professor to students undertaking their third year of Psychiatry Residency Program at HCPA. The program of this course, as well as the students' assessment, is presented and discussed. Some considerations are made concerning the difficulties inherent to this activity.

Keywords: psychotherapy; teaching; internship and residency; psychoanalytic psychotherapy; evaluation and vicissitudes.

 

 

INTRODUÇAO

O ensino da Psicoterapia de Orientaçao Analítica (POA) é uma tarefa de significativa responsabilidade, uma vez que o treinamento do psicoterapeuta em formaçao terá sempre algum tipo de repercussao no mundo interno de seus futuros pacientes (ampliando ou nao a compreensao destes a respeito do seu funcionamento mental), além de exercer, ainda que de forma indireta, algum tipo de influência, facilitadora ou nao, na vida daquelas pessoas que com eles convivem intimamente. No entanto, como assinalam Watters e cols.1, pouco se publica sobre os objetivos e métodos de ensino de POA. Talvez esse fato possa estar relacionado à falta de consenso entre os professores dessa disciplina sobre o que precisa ser ensinado e como esse conhecimento deve ser transmitido ou, quem sabe, esteja vinculado à dificuldade dos educadores nessa área em pôr à mostra seu trabalho. Ademais, parece nao haver consenso até mesmo sobre o conceito de POA, uma vez que, como destacam Eizirik e cols.2, esse tipo de tratamento chega a aparecer em inúmeras publicaçoes sob diferentes títulos como, por exemplo, "psicoterapia compreensiva", "psicoterapia dinâmica", "psicoterapia expressiva" ou "psicoterapia dirigida ao insight". Como a discussao sobre a questao da vagueza desse conceito é bastante ampla, nao cabendo nos limites deste trabalho, fica aqui apenas o registro de que entendo a POA como um método de investigaçao do inconsciente construído pela dupla paciente/terapeuta, que se ampara basicamente nas associaçoes livres fornecidas pelo primeiro, permitindo ao segundo a apreensao dos conflitos intrapsíquicos e dos mecanismos de defesa inconscientes do paciente e possibilitando ao psicoterapeuta a formulaçao de interpretaçoes, tanto transferenciais quanto extratransferenciais, que têm como objetivo possibilitar ao paciente um melhor conhecimento de si mesmo, assim como obter alívio do seu sofrimento através da elaboraçao, em algum grau, de seus conflitos internos.

O presente artigo tem por finalidade apresentar, de forma bastante sucinta, minha experiência como professor de POA desde o ano de 1996 até o momento atual, junto aos grupos de alunos do 3º ano de residência em psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) com os quais tenho tido a satisfaçao de ter contato, a cada ano letivo que se renova.


O PROGRAMA DE ENSINO

O atual programa de ensino de POA para os residentes do HCPA foi estruturado, inicialmente, com base em minhas próprias vivências como aluno do 3º ano do Curso de Especializaçao em Psiquiatria da UFRGS. Assim, para elaborar esse projeto, levei em conta os conteúdos a que tive acesso ao longo dos seminários que frequentei enquanto em formaçao, acrescidos das noçoes que, em funçao da experiência acumulada, percebi serem fundamentais para quem está se iniciando no exercício dessa disciplina. Com isso em mente, foi organizado um programa anual composto de 33 seminários, cada um com duraçao mínima de uma hora, cujos temas sao discutidos livremente pelos 12 alunos que fazem parte do grupo, sendo todos estimulados a desenvolver uma leitura crítica dos textos previamente selecionados pelo coordenador. No primeiro encontro, o roteiro de estudos e a metodologia de trabalho sao apresentados e discutidos em grupo. Seguem-se, entao, 16 seminários por semestre de cunho predominantemente teórico (com textos que, na medida do possível, incluam exemplos práticos dos aspectos teóricos estudados) e/ou essencialmente clínico (com discussao de material apresentado por alunos e professores). Ao final de cada semestre há um seminário de avaliaçao, onde é feita, em grupo, uma apreciaçao do desempenho dos alunos e do professor, assim como uma análise crítica dos textos estudados, na busca do constante aperfeiçoamento do programa.

Basicamente, o referido plano de trabalho inclui os seguintes temas e referências bibliográficas: o exercício ético da psicoterapia3,4, a estruturaçao do setting psicoterápico [discussao livre], a importância da neutralidade5, o processo de avaliaçao de pacientes6, o contrato psicoterápico7, transferência8,9,10, contratransferência11,12,13, identificaçao projetiva14,15,16, funçao continente17, tipos de interpretaçao18, atividade interpretativa19,20, a avaliaçao da interpretaçao21, insight22, insight, elaboraçao e mudança psíquica23, acting out24,25, reaçao terapêutica negativa e impasse26, transtornos de caráter27,28, sonhos29 e término do tratamento30.

Além dos seminários teórico-clínicos, os residentes têm também a oportunidade de supervisionar um caso de POA oriundo de consultório particular, contando para essa atividade com a colaboraçao de supervisores experientes que fazem parte do corpo docente do Curso de Especializaçao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica da UFRGS. Tal atividade estende-se ao longo do ano letivo por, pelo menos, 30 horas.

Claro está que o objetivo desse programa nao é o de formar psicoterapeutas em tao pouco tempo de trabalho, mas sim apresentar aos alunos alguns dos conceitos básicos que estruturam essa disciplina e motiválos ao estudo mais aprofundado da POA. Tal aprofundamento ocorre a posteriori, por aqueles que assim o desejarem, no anteriormente citado Curso de Especializaçao em POA. Ademais, cabe salientar que a disciplina de psicoterapia de orientaçao analítica está inserida num programa de residência em psiquiatria, em que, desde o início, sao ensinadas noçoes de psicanálise, em especial no segundo ano, onde há supervisao sistemática dos casos de psicoterapia de ambulatório, além de um seminário semanal, no terceiro ano, sobre as contribuiçoes técnicas de Freud, Klein e outros autores. Em suma, essa disciplina está situada no contexto geral da residência, que almeja uma formaçao pluralista, onde outras modalidades de psicoterapia sejam ensinadas ao mesmo tempo.

No primeiro seminário propriamente dito, que versa sobre o exercício ético da psicoterapia, procuram-se discutir as seguintes questoes:

  • Como se estrutura, na mente do psicoterapeuta, o código ético que norteia sua conduta pessoal e profissional? Neste sentido, é dada ênfase à ideia de que a ética de cada indivíduo emana de suas próprias relaçoes objetais internas e que, em funçao disso, tratamos nossos semelhantes, incluindo nossos pacientes, de acordo com as normas segundo as quais nos relacionamos com nossos objetos internos.
  • O que significa ser ético em POA? Aqui é dado destaque à concepçao de que cabe ao psicoterapeuta auxiliar o paciente na busca da sua verdade, construindo e preservando um enquadre adequado para que isso ocorra.
  • O que leva um terapeuta a infringir o código de ética de sua profissao? Em relaçao a isso, discute-se um caso fictício de infraçao ética encontrado no filme Vestida para matar, de Brian De Palma. Nessa obra, fica evidente que a violaçao encenada foi construída a partir de um padrao primitivo de relaçao objetal que norteava a conduta do personagem/terapeuta e que fazia com que a figura do personagem/ paciente fosse percebida como uma parte do mundo interno do próprio terapeuta personificado na tela, como se o paciente do filme existisse apenas com a finalidade de lhe propiciar satisfaçao. Sublinha-se, nesse contexto, a necessidade de uma formaçao psicoterápica criteriosa e de uma análise pessoal adequada para aqueles que pleiteiam trabalhar nessa área.


  • No encontro sobre a estruturaçao do setting psicoterápico, enfatiza-se a necessidade de um setting bem estruturado, estável, o mais neutro possível, que propicie privacidade e preserve o sigilo para o adequado exercício da POA. Fala-se também sobre os limites adequados para dar suporte à relaçao terapêutica, como a regra da abstinência, bem como sobre as funçoes de cada participante da dupla paciente/terapeuta. Qualquer dúvida sobre os aspectos formais do setting (como, por exemplo, o isolamento acústico da sala de atendimento, a decoraçao do consultório, o posicionamento dos móveis na sala de atendimento, o zelo do psicoterapeuta com sua apresentaçao pessoal etc.) é sempre bem-vinda no seminário e debatida pelo grupo. Na intimidade, denominamos esse seminário "tudo o que você gostaria de saber sobre os aspectos formais que constituem o setting e teve receio de perguntar".

    Quando se discute a questao da neutralidade, procura-se examinar a evoluçao desse conceito até a atualidade. O principal enfoque é o de entender a neutralidade nao como uma condiçao absoluta, mas como um estado mental variável do terapeuta que lhe permite, em maior ou menor grau, observar e compreender o material trazido pelo paciente com um mínimo de interferência possível decorrente do impacto emocional que esse material gera na contratransferência.

    No seminário sobre o processo de avaliaçao, a ênfase recai sobre a necessidade de ouvir o paciente de forma empática, de modo a facilitar sua comunicaçao. Ademais, fica em destaque o fato de que o terapeuta precisa ter em mente que a indicaçao do tipo de tratamento a ser ministrado (que pode ser, ou nao, uma POA) emana da necessidade trazida pelo próprio paciente. Assim, a motivaçao genuína do paciente em compreender seu funcionamento mental, a origem de seus conflitos e a dor psíquica daí decorrente é vista como fator central na indicaçao de POA. Sem motivaçao, sem sofrimento psíquico, sem a curiosidade e o desejo de entender sua dor, a indicaçao de uma POA nao se sustenta. Num segundo seminário sobre esse tema, um aluno apresenta a avaliaçao de um caso para POA, sendo discutidos em detalhes os elementos que fazem parte desse procedimento: motivaçao, diagnóstico psicodinâmico inicial, conflito atual, recursos do ego, critérios de indicaçao e contraindicaçao de POA.

    Quando se debate a questao do contrato psicoterápico, é ressaltada sua funçao estruturante no setting. Ao mesmo tempo, é assinalado que as tentativas de ruptura do contrato constituem importantes elementos de compreensao do funcionamento mental do paciente, devendo assim ser percebidas como a forma de comunicaçao de uma fantasia inconsciente à qual o paciente ainda nao pôde ter acesso. Num segundo momento, um aluno apresenta material clínico relacionado ao tema, e se esmiúçam os distintos elementos, conscientes e inconscientes, que compoem o contrato.

    Dos quatro seminários sobre transferência, três sao teóricos e o quarto, clínico. No primeiro, estuda-se o conceito de transferência vinculado à sua evoluçao histórica. No segundo, este fenômeno é visto como uma situaçao total, uma estrutura viva e mutante na qual algo está sempre acontecendo, onde há sempre movimento e atividade. Sob este ângulo, a transferência se expressa nao só através do que o paciente diz, mas também pela forma como o faz (modulaçoes na entonaçao da voz, expressoes faciais e corporais), assim como pelos sentimentos e fantasias espertados no terapeuta. No terceiro, é examinado o impacto da transferência na mente do psicoterapeuta, que pode, em alguns momentos, percebê-la como se fosse uma carga potencialmente perigosa e da qual passa a se proteger através de racionalizaçoes teóricas e outras operaçoes defensivas. O quarto seminário é eminentemente clínico, com material apresentado por um aluno, onde sao integrados os aspectos teóricos previamente discutidos.

    O estudo da contratransferência também engloba quatro seminários, sendo três teóricos e um, clínico. No primeiro, examina-se o conceito de contratransferência, assim como seu desenvolvimento histórico. No segundo, estuda-se a contratransferência por assim dizer "normal" e alguns de seus "desvios". Aqui a ênfase recai sobre os momentos de nao compreensao em uma sessao psicoterápica, onde se manifesta algum aspecto do psiquismo do paciente que mobiliza, no terapeuta, ansiedades que ele ainda nao está apto a compreender. No terceiro, discutem-se as controvérsias atuais sobre o tema. Nesse encontro, o professor também apresenta material clínico ilustrativo de um distúrbio contratransferencial e a consequente elaboraçao dessa vivência, bem como as repercussoes desse episódio em um caso de POA. No quarto, a ideia central é mostrar que, se nao levarmos em conta nossas próprias reaçoes conflitivas ao longo das sessoes, corremos o risco de "atuar" com nossos pacientes ao invés de compreendê-los.

    O tema da identificaçao projetiva é examinado em três seminários. A discussao é introduzida a partir do filme Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, onde esse conceito fica bem exemplificado através da açao dos personagens, que utilizam a identificaçao projetiva como um recurso primitivo de comunicaçao nao verbal, de caráter inconsciente e que, entre outras funçoes, também atua como um poderoso instrumento para livrar o indivíduo do contato com seus conflitos internos. No segundo seminário, aborda-se o uso da identificaçao projetiva na prática clínica, bem como sua vital importância para a compreensao da relaçao transferencial/contratransferencial própria do tratamento psicoterápico. Enfatiza-se a necessidade do terapeuta em conter ativamente o que é projetado pelo paciente, além de outras consideraçoes técnicas de manejo desse fenômeno. No terceiro, estudam-se as múltiplas funçoes da identificaçao projetiva: uma forma primitiva de comunicaçao de um estado mental de um indivíduo para outro, um recurso que visa a cindir e se livrar de aspectos indesejáveis do self, um instrumento de domínio e controle de um objeto, uma tentativa de apropriar-se das capacidades de outro indivíduo ou uma forma de buscar invadir e danificar outra mente.

    No encontro sobre a funçao continente, é ressaltada a capacidade empática do terapeuta que necessita ficar sintonizado com as vivências emocionais do paciente, com sua própria contratransferência, assim como com o interjogo de identificaçoes projetivas que ocorre durante as seçoes, até que possa transformar todo esse material em algo compreensível para si mesmo e para o paciente.

    Quando se estudam os tipos de interpretaçao, sao examinadas em detalhe a interpretaçao histórica (genética) e a atual (transferencial e extratransferencial), além das táticas e estratégias interpretativas. É ressaltado que, ainda que a POA inclua certa dose de apoio e sugestao, esses sao apenas recursos técnicos, mas nao necessariamente terapêuticos. Assinalase que a principal estratégia da POA é a de privilegiar, na medida do possível, a interpretaçao do conflito atual.

    Nos dois seminários sobre a atividade interpretativa, a tônica recai sobre o estudo do assim chamado timing da interpretaçao, o momento em que se torna possível e adequado interpretar. Discute-se sobre como, após um período de turbulência emocional, de nao entendimento, vai se formando aos poucos na mente do terapeuta uma compreensao do material fornecido pelo paciente. Ressalta-se que, nestes momentos, é de importância vital a capacidade do terapeuta de tolerar esse estado de incerteza, sem precisar agir impulsivamente, interpretando, por exemplo, para obter alívio da angústia decorrente desse estado. É examinada também a questao de "o que, onde e quando interpretar", em que se evidencia a necessidade do uso da interpretaçao transferencial "centrada no terapeuta", ao invés de "centrada no paciente", para melhor fazer frente a estados eminentemente projetivos que, às vezes, tomam conta de uma sessao.

    Durante o debate sobre a avaliaçao da interpretaçao, estuda-se como avaliar o aspecto operativo de uma linha interpretativa, em vez de se apreciarem apenas interpretaçoes isoladas, explorando-se os elementos necessários para atingir esse fim. Nesse sentido, é dada ênfase ao valor das associaçoes livres comprobatórias posteriores, surgimento de memórias, fantasias e sonhos com significado de confirmaçao, bem como à modificaçao da fantasia inconsciente e diminuiçao da ansiedade que permeiam as sessoes em que houve progressos.

    O estudo do insight inicia-se com a discussao sobre a origem e as diferentes versoes desse conceito, desde Freud até os tempos atuais. Ressalta-se que esse fenômeno implica a aquisiçao, por parte do paciente, de um novo conhecimento relacionado ao seu funcionamento mental, como uma visao nova, distinta da percepçao habitual que o indivíduo tem de si mesmo.

    O encontro sobre insight, elaboraçao e mudança psíquica visa a integrar esses três conceitos num continuum. Assim, a elaboraçao é vista como um processo do mundo interno do paciente, que tem como precondiçao uma série de insights, cujo mecanismo central é o luto pela perda dos aspectos narcisistas e onipotentes do self, e que pode culminar com algum grau de mudança psíquica no paciente. Sublinha-se o fato de que o alcance dessa mudança depende, basicamente, das condiçoes próprias de cada dupla paciente/ terapeuta: de um lado, está relacionada ao nível de funcionamento mental do paciente e, de outro, ao grau de experiência e ao tipo de formaçao do terapeuta.

    O tema do acting out é tratado em três seminários, sendo dois deles teóricos e um terceiro, clínico. Começa-se pelo estudo da evoluçao desse conceito, passando-se pelas controvérsias que esse fenômeno desperta entre seus estudiosos - como, por exemplo, o acting out comunica algo sobre o paciente ou é apenas uma forma complexa de resistência? - até chegar-se à discussao de um caso clínico ilustrativo do assunto em questao.

    Durante o debate sobre reaçao terapêutica negativa e impasse, além de discutir-se a evoluçao desses conceitos, seus respectivos quadros clínicos e diagnóstico diferencial com outras formas de resistência (como a resistência incoercível e a reversao da perspectiva), enfatiza-se a possibilidade de quadros resistenciais virem a se transformar em impasses, se tais ocorrências nao forem adequadamente detectadas e manejadas pelo terapeuta. De outra parte, é sublinhada a base narcisista, de parte da dupla paciente/terapeuta, que subjaz a um impasse.

    No que se refere aos transtornos de caráter, analisam-se alguns aspectos da estruturaçao dos diferentes tipos de caráter, discutem-se algumas nuanças técnicas peculiares à POA com pacientes portadores de caracteropatia, assim como se trocam ideias sobre o alcance da POA em indivíduos com esse tipo de distúrbio.

    O seminário sobre sonhos propoe-se examinar os mecanismos implicados na elaboraçao onírica, suas funçoes - entre as quais se destacam a funçao traumatolítica, a de organizaçao e síntese, a de comunicaçao, a de satisfaçao de desejos e a adaptativa - assim como a possibilidade de o sonho funcionar como um ótimo balizador da evoluçao de uma POA.

    Durante o estudo do término do tratamento, discorre-se sobre o conceito de término em POA, sobre os tipos de resistências que habitualmente fazem parte dessa etapa do tratamento, assim como sobre seu manejo adequado. Aqui a tônica recai sobre o processo de luto que a dupla paciente/ terapeuta precisa enfrentar.


    SOBRE A AVALIAÇAO

    Como foi dito anteriormente, ao final de cada semestre há um seminário de avaliaçao, onde é feito um balanço do desempenho dos alunos e do professor, assim como uma análise crítica dos textos estudados, na busca do constante aperfeiçoamento do programa. Esta parece ser a parte de mais fácil execuçao. A tarefa mais complexa está relacionada à avaliaçao do processo supervisório que, mais do que exame do desempenho apresentado pelo aluno em seminário, serve como fiel balizador do aproveitamento do aluno. Tal apreciaçao pode ser feita através do olhar do supervisor, ora voltado para a mente do supervisionando, ora para a mente do paciente do caso em supervisao e ora para sua própria mente.

    No que se refere à mente do supervisionando, o supervisor precisa indagar- se sobre que capacidades seu supervisionando está desenvolvendo. Ele já se permite distinguir, no discurso do paciente, o conteúdo latente do manifesto? Ele já pode, em algum momento, identificar a fantasia inconsciente predominante em uma sessao? Ele já consegue articular espontaneamente alguma forma de compreensao a respeito do funcionamento mental de seu paciente?

    De outra parte, cabe também ao supervisor perguntar-se, enquanto olha para o supervisionando, qual o grau de dificuldade apresentado pelo aluno para entrar em contato com o mundo interno de seu paciente. Ele se assusta com essa tarefa, retrai-se ou se permite conviver com a turbulência emocional que o material clínico provoca e, ainda assim, pode pensar sobre o fato clínico? De que forma as comunicaçoes do paciente mobilizam o supervisionando? Ele pode contê-las e pensá-las, ou se vê pressionado a interpretar imediatamente? Ele revela ter capacidade negativa?

    A medida que se desenrola o processo supervisório, é também oportuno que o supervisor observe se as dificuldades que o supervisionando apresenta sao as mesmas do início da supervisao. Se houve alguma mudança, quais foram elas? A técnica do supervisionando ficou mais refinada? As intervençoes sao mais sucintas, vinculadas à fantasia inconsciente da sessao e no timing adequado? O supervisionando trabalha num modelo apenas imitativo do supervisor ou está desenvolvendo um estilo próprio? A relaçao com o supervisor é permeada por ansiedades persecutórias ou o supervisor, aos poucos, está podendo ser visto como um colaborador do aluno?

    Ao mirar a mente do paciente do caso em supervisao, é importante que o supervisor perceba se o processo psicoterápico apresenta sinais de vitalidade, o que pode ser constatado pela produçao simbólica do paciente (sonhos, associaçoes livres etc.), pela existência de insights e, em algum grau, pela expansao progressiva das capacidades psíquicas do paciente.

    Quando o supervisor contempla sua própria mente, algumas questoes se impoem: a hora de supervisao lhe desperta satisfaçao, desânimo, indiferença ou pressa de que acabe logo? O supervisor consegue manter o setting supervisório? Ele se sente livre para dizer o que pensa ao supervisionando ou precisa agradá-lo? Como na supervisao o aprendizado é, em princípio, recíproco, o supervisor precisa também avaliar se está aprendendo algo no contato com seu supervisionando e o caso em supervisao.

    O ensino de POA é uma tarefa complexa, uma vez que o instrumento de trabalho do psicoterapeuta é o próprio indivíduo. Lembrando Sakinofsky31, é possível dizer que "o treinamento pode apenas aprimorar mas nao dotar o futuro terapeuta com aqueles atributos pessoais que ele nao tem". Assim, creio que a maior dificuldade nessa área de ensino está relacionada ao trato com o aluno que apresenta limitaçoes pessoais para o exercício da POA. Refiro- me àqueles com certa dificuldade para o pensamento abstrato, para quem nao é fácil lidar com conceitos como, por exemplo, inconsciente dinâmico, conteúdo latente e manifesto, fantasias inconscientes, mecanismos de defesa, conflito intrapsíquico etc. Em casos como esses, tanto o professor quanto o supervisor têm pouco a fazer, uma vez que tais limitaçoes só terao alguma chance de serem resolvidas ao longo da análise do próprio aluno. Parafraseando Fleming32, assim como o paciente nao pode adquirir insight por simplesmente estar na presença do seu terapeuta, o supervisionando também nao pode aprender apenas por permanecer diante de seu supervisor. O aprendizado em supervisao é um processo ativo e criativo, em que a dupla supervisor/supervisionando precisa ser qualificada para que ele ocorra.


    CONSIDERAÇOES FINAIS

    Como assinala Halgin33, uma das principais dificuldades encontradas no ensino da POA reside na dissociaçao habitualmente existente entre o que se transmite na teoria e o que se orienta na prática supervisória. A falta de uma filosofia de ensino coerente, bem estruturada, parece estar no cerne dessa dissociaçao. Talvez uma forma de enfrentar tal circunstância seja a procura incessante da integraçao entre professores e supervisores dos programas de ensino dessa área, preservando-se sempre as naturais diferenças existentes de indivíduo para indivíduo, mas sem que isso represente maior prejuízo na busca de certa sinergia em torno dos pressupostos básicos que dao suporte à POA. Ademais, é possível imaginar que tal estado de dissociaçao possa funcionar também como um mecanismo grupal de defesa, de parte de quem transita nessa área, contra as ansiedades que permeiam o estudo da POA. Quanto mais sabemos a respeito de nossos pacientes, mais aprendemos a respeito de nós mesmos, e mais nos damos conta de que, como eles, também temos um mundo interno sujeito às mesmas condiçoes de funcionamento, com apenas algumas pequenas variantes, e com vicissitudes semelhantes. A dor psíquica faz parte da condiçao humana, nao sendo apanágio exclusivo dos pacientes.

    Outro desafio associado ao ensino da POA é o do seu cotejo com as terapias medicamentosas. Talvez por questoes de ordem narcísica, nem sempre psicoterapeutas e psiquiatras biológicos se permitem um diálogo construtivo. Nesse sentido, creio que discussoes estéreis sobre qual das duas técnicas é a melhor acabam sempre caindo num vácuo de ideias que nao se sustentam. Todos sabemos que a indicaçao terapêutica de cada caso emana das necessidades apresentadas pelo paciente e nao do desejo do terapeuta em provar que sua corrente teórica tem resposta para tudo. Nesse sentido, é sempre útil lembrar Widlöcher34 quando afirma que

    é necessário renunciar à visao simplista segundo a qual a medicaçao operaria pela via única de um determinismo biológico, e a psicoterapia por aquela da liberaçao de potencialidades psíquicas latentes. Nos dois casos, há uma pressao necessária exercida sobre um modo de funcionamento atual, que pode ser neuronal ou psíquico, para permitir um exercício mais flexível e livre de outras modalidades de funcionamento (p.181).


    Como bem sugere Aguiar35, ter uma visao pluralista nessa área do ensino é fundamental para que a disciplina se mantenha em constante renovaçao e crescimento, uma vez que a "verdade científica única" estreita sobremaneira o pensamento e leva à estagnaçao.

    Para finalizar, penso ser oportuno lembrar Freud36 quando afirma que "o futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta, através de substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua distribuiçao no aparelho mental. Pode ser que existam outras possibilidades ainda nao imaginadas de terapia. De momento, porém, nada temos de melhor à nossa disposiçao." (p.210)


    REFERENCIAS

    1. Watters WW et al. Teaching psychotherapy. Canadian Journal of Psychiatry. 1980;25(2):111-7.

    2. Eizirik CL et al. Introduçao. In: Eizirik CL et al (Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/Fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed; 2005.p.13-9.

    3. Pires ACJ. Abrindo uma janela um tanto indiscreta na obra de Alfred Hitchcock. Texto apresentado, em agosto de 2002, no Ciclo de Cinema e Debate Alfred Hitchcock, promovido pela Assoc. Brasileira de Psicanálise, Soc. Psicanalítica de Porto Alegre, Soc. Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre e Soc. Psicanalítica de Pelotas.

    4. Gabbard GO. Violaçoes das fronteiras profissionais. In: Eizirik CL e cols. (Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/Fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed; 2005,p.310-21.

    5. Eizirik CL. Entre a escuta e a interpretaçao: um estudo evolutivo da neutralidade psicanalítica. Revista de Psicanálise da Soc. Psicanalítica de Porto Alegre. 1993;1(1):19-42.

    6. Keidann CE, Dal Zot JS. In: Eizirik CL e cols. (Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/Fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed; 2005.p.193-205.

    7. Lucion NK, Knijnik L. In: Eizirik CL e cols. (Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/Fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed; 2005.p.227-234.

    8. Sandler J et al. A transferência. In: Sandler et al. O paciente e o analista. Rio de Janeiro: Imago; 1986.p.33-44.

    9. Joseph B. Transferência: a situaçao total. In: Feldman M, Spillius E. Equilíbrio e mudança psíquica: artigos selecionados de Beth Joseph. Rio de Janeiro: Imago; 1985.p.162-72.

    10. Grinberg L. A transferência é temida pelo analista? Livro Anual de Psicanálise do International Journal of Psycho-Analysis. 1997;12:11-22.

    11. Hartke R. O conceito de transferência e sua utilizaçao em psicoterapia. In: Eizirik CL e cols. (Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/Teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 1989.p.267-78.

    12. Money-Kyrle R. Contratransferência normal e alguns dos seus desvios (1956). In: Spillius E. Melanie Klein hoje: desenvolvimentos da teoria da técnica. Rio de Janeiro: Imago; 1990. Vol2.p.35-46.

    13. Eizirik CL, Lewcowicz S. Contratransferência. In: Eizirik e cols. (Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/Fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed; 2005.p.300-9.

    14. Pick I. A elaboraçao na transferência. In: Spillius E. Melanie Klein hoje: desenvolvimentos da teoria da técnica. Rio de Janeiro: Imago; 1992. vol.2,p.47-61.

    15. Rosenfeld H. Identificaçao projetiva na prática clínica. In: Rosenfeld H. Impasse e interpretaçao. Rio de Janeiro: Imago;1988.p.191-224.

    16. Joseph B. Identificaçao projetiva: alguns aspectos clínicos. In: Feldman M, Spillius E. Equilíbrio e mudança psíquica: artigos selecionados de Beth Joseph. Rio de Janeiro: Imago; 1992.p.162-72.

    17. Schestatsky SS. A funçao continente da interpretaçao. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. 1990;12(3):148-53.

    18. Etchegoyen RH. Tipos de interpretaçao. In: Etchegoyen RH. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1987.p.237-45.

    19. Hartke R. Algumas reflexoes sobre o assim chamado timing das interpretaçoes. Trabalho nao publicado. 1995.

    20. Riesenberg-Malcolm R. Livro Anual de Psicanálise do International Journal of Psycho-Analysis. 1995;11:153-61.

    21. Annes S, et al. Avaliaçao da interpretaçao (1974). In: Annes S, et al. Estudos psicanalíticos. Porto Alegre: Ed. dos Autores;1995.p.21-32.

    22. Etchegoyen RH. O insight e suas notas de definiçao. In: Etchegoyen RH. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1987.p.387-401.

    23. Cruz JG. Insight, luto e mudança psíquica: a questao da elaboraçao em psicoterapia. Trabalho nao publicado. 1992.

    24. Etchegoyen RH. Acting out. In: Etchegoyen RH. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1987.p.424-34.

    25. Hartke R. Atuaçao em psicoterapia. In: Eizirik CL e cols. (Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/Teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 1989.p.336-47.

    26. Pires ACJ. Reaçao terapêutica negativa e impasse. In: Eizirik e cols.(Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/Fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed; 2005.p.329-49.

    27. Cruz JG. Aspectos técnicos peculiares de psicoterapia de pacientes com transtornos de personalidade. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. 1994;16(3):237-9.

    28. Pires ACJ. Psicoterapia de orientaçao analítica de pacientes com transtorno de caráter: alcance e limitaçoes. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. 1994;16(3):233-6.

    29. Cruz JG. Sonhos. In: Eizirik e cols.(Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/Fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed; 2005.p.359-75.

    30. Pires ACJ. Algumas consideraçoes sobres as resistências relacionadas ao término do tratamento. In: Eizirik e cols.(Eds.). Psicoterapia de orientaçao analítica/teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 1989.p.180-8.

    31. Sakinofsky I. Evaluating the competence of psychotherapists (1979). Canadian Journal of Psychiatry. 1989;24(1):193-206.

    32. Fleming J. Teaching the basic skills of psychotherapy. Archives of General Psychiatry. 1967;16:416-26.

    33. Halgin RP. Clinical training: challenges for a new millennium. Journal of Clinical Psychology. 1999;55(4):405-9.

    34. Widlöcher D. Quizás el futuro nos enseñe... Psicoterapia y terapia farmacológica: qué relaciones? Revista Chilena de Psicoanálisis. 2002;19(2):176-81.

    35. Aguiar RW. Psicoterapias: desafios atuais e perspectivas futuras. Revista Brasileira de Psicoterapia. 1999;1(1):93-105.

    36. Freud S. Esboço de psicanálise (1940 [1938]). Ediçao Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1969.vol.23, p.165-329.










    * Psiquiatra, professor responsável pela disciplina de Técnica de Psicoterapia de Orientaçao Analítica para os Residentes do 3º ano em Psiquiatria do HCPA, professor e supervisor do Curso de Especializaçao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica do CELG, membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, RS, Brasil.

    Centro de Estudos Luís Guedes (CELG), Hospital de Clínicas de Porto Alegre, RS, Brasil.

    Correspondência:
    Antonio Carlos J. Pires
    Av. Taquara, 110, sala 404
    Porto Alegre, RS, Brasil, CEP 90460-210

     

    artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
         
    artigo anterior voltar ao topo próximo artigo