Rev. bras. psicoter. 2011; 13(3):26-49
Eizirik CL, Gomes FG, Goi JD, Cordini KL, Torres MB, Hauck S. O ensino da psicoterapia de orientaçao analítica no ambulatório assistencial/público de psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Rev. bras. psicoter. 2011;13(3):26-49
Artigos Originais
O ensino da psicoterapia de orientaçao analítica no ambulatório assistencial/público de psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Psychoanalytic psychotherapy teaching at the assistance/public ambulatory of psychiatry at Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Cláudio Laks Eizirik*; Fernando Grilo Gomes**; Júlia Domingues Goi***; Kariny Larissa Cordini***; Mariana Benetti Torres****; Simone Hauck*****
Resumo
Abstract
O ENSINO DA PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇAO ANALITICA NOS PROGRAMAS DE RESIDENCIA MÉDICA: REVISAO DA LITERATURA
O treinamento em psicoterapia de orientaçao analítica (POA) nos programas de residência médica permanece um objetivo educacional fundamental dentro dos novos paradigmas de tratamento em psiquiatria1. Em 1981, Nemiah expressou sua preocupaçao diante da evidente diminuiçao na importância dada aos aspectos psicodinâmicos das doenças psiquiátricas e a diminuiçao do número de programas de residência que mantinham o treinamento em psicoterapia psicodinâmica como parte central de seu currículo. O autor ainda apontou que a oportunidade de conduzir uma psicoterapia supervisionada é crucial na aquisiçao do conhecimento psicológico e capacidades de observaçao, sendo a contribuiçao mais importante e específica da psiquiatria em toda a prática médica2. Um trabalho conduzido conjuntamente pela American Association of Directors of Psychiatric Residency Training e pela Association for Academic Psychiatry3 observou que a compreensao da teoria e da técnica psicodinâmicas continua sendo fundamental tanto para o ensino como para a prática psiquiátrica.
Em um estudo dedicado a reconhecer controvérsias na educaçao psiquiátrica nas cidades de Washington e Baltimore, no ano de 1975, foi demonstrado que 62% dos residentes de psiquiatria de um hospital geral tinham uma predileçao pela orientaçao psicodinâmica e 82% nao concordavam com a afirmaçao de que a psicanálise estaria perdendo força dentro da psiquiatria como parte influente, ante ao crescente desenvolvimento das neurociências. Mais de 50% dos alunos consideraram o tratamento pessoal extremamente importante, e 29% consideraram moderadamente importante. Apenas 19% dos residentes nao realizavam tratamento individual, considerando-o pouco importante4.
Em 1982, um estudo conduzido nos Estados Unidos com todos os residentes filiados à Associaçao de Psiquiatria Americana pretendia comparar a ordem de importância de sete aspectos de treinamento dos programas de residência em psiquiatria em três anos de pesquisa (1976,1978,1980). A ordem encontrada foi: experiência em pesquisa, treinamento em psicanálise, análise pessoal ou psicoterapia individual para o residente, internato, experiência clínica em neurologia, educaçao médica e experiência em farmacoterapia, permanecendo inalterada nos três anos de pesquisa. Nesse mesmo estudo, foi demonstrado que cerca de 60% dos residentes da amostra selecionaram a psicoterapia de orientaçao analítica como a sua forma de tratamento preferida entre as terapias nao-biológicas5. Assim, evidencia-se a importância, tradicionalmente reconhecida pelos alunos, do treinamento em psicoterapia de orientaçao analítica dentro dos programas de residência médica em psiquiatria dos hospitais gerais.
Inúmeros pesquisadores e educadores dedicaram-se a aprimorar modelos de avaliaçao do ensino e treinamento em POA desenvolvendo instrumentos para medir a aquisiçao de habilidades em psicoterapia6. Em 1985, Moline e Winer, com o uso de vinhetas clínicas escritas que propunham aos alunos a escolha das melhores opçoes de intervençoes, constataram que residentes iniciantes tiveram melhores resultados do que residentes mais experientes. Entretanto, esse estudo tinha problemas metodológicos como o pequeno tamanho amostral, o número limitado de questoes e a falta de validaçao do(s) instrumento(s)7. Dessa forma, deixando em aberto uma série de questoes no que diz respeito ao estudo do ensino da teoria e da técnica psicanalítica em programas de psiquiatria a serem abordados com metodologia mais adequada em estudos futuros.
Em 1982, foi realizado um estudo que desenvolveu uma escala de 29 itens a ser preenchida por supervisores para investigar em que medida o aprendizado e a experiência afetariam as habilidades terapêuticas dos seus alunos. Os professores deveriam classificar os residentes em relaçao à capacidade de estabelecer uma aliança terapêutica, tolerar as agressoes dos pacientes, efetivamente proceder à clarificaçao e lidar com as resistências ao tratamento. Após oito meses de psicoterapia ambulatorial supervisionada com pacientes nao psicóticos, observou-se uma mudança estatisticamente significativa em apenas sete quesitos da escala, englobando principalmente clarificaçao, confrontaçao e problemas relacionados a resistência e transferência. A capacidade de tolerar comportamentos sedutores dos pacientes e o crescente entendimento da transferência positiva também foram aspectos importantes do desenvolvimento das habilidades terapêuticas. Tal fato demonstra que, com supervisao e experiência, o fenômeno da transferência se torna uma realidade com sentido para psicoterapeutas iniciantes, aumentando sua objetividade clínica e tornando o comportamento provocativo menos ameaçador e conflitante para o terapeuta. Entretanto, a habilidade de tolerar as agressoes dos pacientes nao se alterou de forma significativa no período de tempo estudado, permanecendo uma área problemática para os residentes em formaçao. Características que nao se modificaram ao longo do tempo incluíram a capacidade de empatia e o reconhecimento das questoes contratransferenciais. Os autores do estudo especulam que essas podem ser capacidades inatas, nao rapidamente aprendidas, que raramente o serao apenas com o processo educacional formal, sem a assistência de terapia pessoal, embora isso nao possa ser comprovado pelo estudo, que teve apenas oito meses de duraçao8.
A formaçao psicanalítica tradicional apoia-se no que costuma ser chamado "tripé": seminários, supervisao e tratamento pessoal. O ensino da teoria psicanalítica e da técnica adaptada a POA dentro de um programa de residência em psiquiatria implica, no entanto, uma série de adaptaçoes que levam a desafios importantes. No caso da residência em psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, ao transportar esse modelo para um hospital escola, de características públicas e de atendimento terciário, diversos aspectos da formaçao do terapeuta e atendimento dos pacientes precisaram ser considerados.
Dentro da formaçao do psiquiatra, o objetivo passa a ser a capacitaçao de um profissional habilitado a tratar seus pacientes através da POA, além de seu treinamento nos mais modernos recursos da psicofarmacologia e neurobiologia. Tal adaptaçao levanta diversas consideraçoes em relaçao ao ensino e à assistência, e suas consequentes implicaçoes éticas, da seleçao do programa teórico a questoes relacionadas ao atendimento de pacientes graves em um hospital escola, incluindo discussoes de caso e entrevistas em grupo. Além disso, seguindo as normas da instituiçao em que a residência é realizada, regidas pelo MEC (Ministério da Educaçao) e regimento do hospital, nao é possível exigir tratamento pessoal aos residentes. A própria inserçao do modelo psicanalítico dentro da formaçao do psiquiatra traz questoes a serem consideradas que estao relacionadas à história e a características da instituiçao em que o programa é realizado.
A HISTORIA DO ENSINO DA PSICANALISE E DA PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇAO ANALITICA NO RIO GRANDE DO SUL
A inclusao do ensino da psicoterapia psicanalítica de forma consistente em um programa de residência em psiquiatria como o do HCPA aponta para a força da corrente psicanalítica no Rio Grande Sul. As ideias psicanalíticas começaram a surgir nas terras gaúchas a partir de 1920 através de conferências de médicos e intelectuais. A partir dos anos de 1930, elementos de psicanálise já eram ensinados na Faculdade de Medicina. Pioneiro e fundador do movimento psicanalítico no estado, Mario Alvarez Martins, que realizou sua formaçao em Buenos Aires em 1945 e 1946, continuou com suas atividades como psiquiatra no Hospital Psiquiátrico Sao Pedro, levando as ideias psicanalíticas para dentro da instituiçao. A presença de Mario Martins no hospital e no seu consultório, onde passou a analisar vários médicos e prestigiados professores, bem como a intensa atividade clínica e de divulgaçao da psicanálise de Cyro Martins, um dos principais escritores gaúchos do ciclo regionalista, deu à psicanálise ampla aceitaçao e reconhecimento nos meios médicos, psiquiátricos e intelectuais do Estado na primeira metade do século passado9.
Em 1957, surgiu no Hospital Sao Pedro o curso de especializaçao em psiquiatria, coordenado por David Zimmerman e Paulo Guedes, ambos discípulos de Mario Martins. Estruturado em bases psicanalíticas, o curso passou a ter como sede, na década de 1960, a Divisao, depois Centro Psiquiátrico, Melanie Klein, e tornou-se um polo formador de psiquiatras de orientaçao dinâmica9.
Nesse contexto histórico surgiu o Centro de Estudos Luis Guedes (CELG) em dezembro de 1959, uma associaçao científica sem fins lucrativos, filiada à Associaçao Brasileira de Psiquiatria, junto à qual é órgao representativo de seus associados. O CELG tem como objetivos proporcionar educaçao continuada e aprimoramento científico a seus associados e à comunidade ligada à área da saúde mental; promover e estimular a pesquisa no campo da psiquiatria e áreas afins além de colaborar com o Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS e com o Serviço de Psiquiatria do HCPA em suas atividades de ensino, assistência e pesquisa. Com esse propósito, promove cursos de especializaçao e de extensao universitária, bem como de atualizaçao, abrangendo as áreas de psicoterapia psicanalítica de adultos, crianças e adolescentes, psiquiatria clínica, dependência química, terapia cognitivocomportamental, supervisao de psicoterapia entre outras. Dessa forma, ele contribui sobremaneira ao desenvolvimento do ensino da psiquiatria e principalmente da psicoterapia de orientaçao analítica no estado.
Na década de 1980, houve a mudança do curso e residência de psiquiatria para o hospital geral, sendo a primeira enfermaria psiquiátrica em hospital geral em nosso meio, instituída no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Embora acompanhando as tendências globais da psiquiatria, como a comunidade terapêutica, a psiquiatria comunitária, a introduçao e uso crescente de psicofármacos, a mudança para o hospital geral universitário nos estimulou na busca de maior precisao diagnóstica e na instituiçao dos programas específicos para transtornos mentais nos anos 1990. O referido curso se mantém há mais de 40 anos em funcionamento (é o mais antigo do Brasil) com as bases psicanalíticas presentes e em desenvolvimento.
Em 1984, foi criado pelo Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS o curso de extensao em psicoterapia de orientaçao analítica, via CELG, inicialmente disponível apenas para aqueles que possuíam título de psiquiatra. Posteriormente tornou-se curso de especializaçao em psicoterapia de orientaçao analítica, passando a ser oportunizado também a psicólogos. Em 2000, iniciou-se o Programa de Mestrado e Doutorado em Psiquiatria, que conta com uma linha de pesquisa em psicoterapia psicanalítica e psicanálise. Desde entao, esse programa vem formando pesquisadores e publicando seus estudos em periódicos destacados do país e do exterior9.
Como se pode ver, a psicanálise teve uma forte influência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e outras instituiçoes públicas e privadas, como a Clínica Pinel, também uma formadora de psiquiatras de orientaçao dinâmica a partir dos anos de 1960. Progressivamente foram surgindo outros centros universitários e cursos de formaçao de psicoterapia nos quais o modelo psicanalítico encontra-se presente em diversos graus9.
Em 2007, no Editorial da Revista Brasileira de Psiquiatria, Eizirik escreveu sobre o futuro da psicanálise. Ele dizia que
[...]na formaçao dos novos psiquiatras, a psicanálise funcionando como ciência básica e instrumentando uma relaçao médico-paciente em que os distintos significados conscientes e inconscientes sejam entendidos e utilizados, também será útil no tratamento de patologias de etiologia multideterminada, possibilitando abordagens integradas e sinérgicas.[...] Instituiçoes psicanalíticas, com seu papel de guardias de uma formaçao sólida e de estimuladoras de uma educaçao continuada, possivelmente ampliarao suas áreas de interesse e aplicaçoes da psicanálise para situaçoes sociais e educacionais relevantes, além de aumentarem sua capacidade de diálogo com outros saberes e outras instituiçoes psicanalíticas de distintas orientaçoes.
A pesquisa em psicanálise e psicoterapia analítica, em suas distintas formas e abordagens, possivelmente aumentará sua presença nos cursos de pósgraduaçao e nas sociedades psicanalíticas, contribuindo tanto para um refinamento metodológico quanto para um maior conhecimento dos processos e efetividade dos tratamentos, assim como para ampliar o conhecimento sobre as múltiplas áreas do desenvolvimento e da patologia. [...]Em todas essas dimensoes, certamente os conflitos nao estarao ausentes, opondo os que buscam formas hegemônicas de pensar, ensinar e pesquisar, e os que advogam a indispensável integraçao de abordagens, por seu possível efeito potencializador10.
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