Rev. bras. psicoter. 2011; 13(2):169-187
Ostermann G. Incesto e resiliência. Rev. bras. psicoter. 2011;13(2):169-187
Artigos Especiais
Incesto e resiliência1
Incest and resilience
Gérard Ostermann*
Nao me considero um especialista em questoes de incesto. Fui levado a me interessar pela problemática posta pelo incesto a partir de uma clínica para problemas de comportamento alimentar que comportava certo número de pacientes - muitos pacientes - que tinham sido abusados na infância ou que haviam vivido - e voltaremos a isso - uma atmosfera incestuosa.
É fato que, hoje em dia, os holofotes da mídia se voltam com insistência sobre a questao dos abusos sexuais com os quais infelizmente se confrontam muitas crianças. Gostaria de dizer que se trata de um problema aterrorizante e, ao mesmo tempo, fascinante.
Fascinante, pois, em nome do que, ou o que justifica uma inibiçao emocional e uma interdiçao social de um ato biologicamente possível?
Nesse domínio, as coisas tomam rapidamente um caminho passional, ao ponto de podermos nos perguntar se, por exemplo, a frequência dos incestos aumenta.
Nao faz muito tempo o jornal Le Monde publicou gráficos onde se percebia um aumento no número de incestos. Eu me coloquei a questao, e cheguei a falar com Boris Cyrulnik, pois faço parte com ele de um grupo de trabalho sobre "Biologia e apego"; pedi sua opiniao e ele me respondeu que também pensava que a frequência dos incestos estava aumentando.
Isso nao é só um efeito de ótica ligado à ruptura da lei do silêncio, à maior expressao desses fatos e maior capacidade dos meios de informaçao.
Há, provavelmente, um aumento no número de casos de incesto, porque, em minha opiniao, observa-se hoje em dia, no nível das relaçoes de parentesco, uma confusao nos códigos e talvez também uma falência dos cuidados paternos e maternos. Há uma anulaçao da interdiçao ao incesto associada à anulaçao das estruturas familiares.
O arranjo incestuoso se organiza em torno da ausência de uma lei "interditora" e "separadora".
Separar é um ato cultural, ou seja, implica o sujeito tanto em sua intimidade quanto na esfera social onde ele evolui. No fundo, a evoluçao individual se faz sempre sobre a cena daquilo que Jacques André nomeou "o ser psíquico coletivo".
A obra humana caminha sempre em direçao a maiores diferenciaçoes e o faz por separaçoes sucessivas. Lembremos que os grandes mitos fundadores das civilizaçoes funcionam assim e fundam nossas civilizaçoes por separaçao. É suficiente lembrar-se do Genesis, que inicia pela divisao entre o Céu e a Terra; de um lado, o território do homem e, para além, o território de Deus.
No entanto, a separaçao nao impede a tentaçao megalomaníaca da fusao "unária" ou de retornar àquela unidade primordial, sempre regressiva, que se poderia chamar de "desdiferenciadora". Assim, por exemplo, quando os homens se arrogam poder reconquistar o domínio celeste e reunir a Terra e o Céu, constroem a Torre de Babel. E para impedir a construçao dessa torre, Deus multiplica as línguas. Daí se segue uma grande confusao.
Seria, entao, essa confusao uma regressao à indiferenciaçao? Nem um pouco, dizem os talmudistas, pois a multiplicaçao de línguas é uma nova progressao cultural. A nova separaçao introduziu uma traduçao entre as línguas do homem e, assim, a interpretaçao. E o paradoxo, de fato, é apenas aparente, pois Freud nao diz outra coisa quando escreve que a tendência entrópica unificante e a massificaçao das pulsoes ou a repetiçao estao a serviço de Tânato. Que eu saiba, Freud nunca fez referência a Tânato strictu sensu. Falou de Eros, mas nao de Tânato. Mas enfim, sabe-se que é a pulsao de morte que está em questao aqui. Em "Além do princípio do prazer", ele diz: "No fundo, o que buscam os homens? Nao buscam senao uma coisa: buscam ser amados."
É aí que a dificuldade começa, pois há um conflito basal, incontornável, entre dois grupos de pulsoes: as pulsoes de vida e a pulsao de morte. Imagino que Ferenczi tivesse em mente a história bíblica de Babel quando mudou o título primeiro - admito, bastante confirmador - de uma conferência que pronunciaria em 1932 em Wiesbaden, intitulada "As paixoes dos adultos e suas influências sobre o desenvolvimento do caráter e da sexualidade da criança". O título se tornou bem mais sucinto: "Conferência sobre as línguas entre os adultos e as crianças", com um subtítulo assaz interessante: "A linguagem da ternura e da paixao". Daí se compreende o título desse artigo de referência: o adulto abusador fala a linguagem da paixao e se engana sobre a demanda de ternura por parte da criança.
Há, entao, confusao de línguas, confusao entre línguas, se poderia dizer "erro de traduçao". Mas o próprio Ferenczi nao comenta seu título, poderia, por exemplo, ter proposto "Confusao de registros ou de espaços psíquicos ou de geraçoes". Mas aí me arrisco um pouco...
Hoje, as associaçoes de apoio mútuo, os livros, os programas televisivos etc. fazem com que nunca se fale demais da questao do incesto. Eu diria que é necessário falar, pois é isso que permite mudar a forma como se veem as "vítimas": à medida que a escuridao diminui, confirma-se que a prática do incesto concerne a todos os meios; nao é, bem entendido, simplesmente um assunto de gabinete.
Verifica-se igualmente que as consequências sao tao mais devastadoras para o futuro afetivo e sexual de quem foi abusado quanto mais duradouramente essa violência é inscrita; infelizmente, isso é bastante frequente.
A vivência incestuosa representa o modelo de todas as violências, o trauma fundamental e paradigmático. Anna Freud dizia que, para se estabelecer um trauma, sao necessários dois golpes. Um primeiro, que será chamado de trauma, é um golpe no real; e um segundo golpe na representaçao do real.
Quando Boris Cyrulnik fala do trauma e da representaçao psíquica que existe, após o trauma, após o primeiro golpe, diz: "há qualquer coisa de morto na pessoa". Com efeito, com bastante frequência nas sessoes psicoterápicas ou psicanalíticas, ouve-se o seguinte: "tem algo em mim que foi morto." É verdade que a infância foi morta, é verdade que a esperança foi morta, é verdade que, em um mesmo golpe, a identidade e a sexualidade da criança, da jovem adolescente ou jovem mulher foram mortas, mas a pessoa nao morre de uma vez; no fundo ela é morta, mas nao morre. Imagine que você tenha cometido um crime e percebe que há uma testemunha: ou você consegue o silêncio da testemunha, ou você a elimina. E para eliminá-la, como se pode fazer? Bem... pode-se pagar um assassino de aluguel, como se diz.
A diferença nas histórias de incesto é que, nas ocorrências, o gênio infeliz e malfeitor das famílias incestuosas faz com que a vítima e a testemunha sejam uma única pessoa; mas a testemunha é a vítima, e é a mesma vítima que vai, de alguma forma, cumprir o "contrato". A vítima vai, de certa maneira, se matar, e efetivamente teremos um crime perfeito: desaparecimento do corpo, desaparecimento da testemunha, tudo se faz da melhor for-ma, pois o silêncio foi totalmente respeitado. É o que acontece quando uma jovem violentada se suicida, seria dizer: "se mate, para que tenhamos certeza de que o silêncio será respeitado."
Tive a oportunidade de vivenciar a situaçao de um suicídio no caso de uma jovem que fora violentada e repito: é o crime perfeito se nada é efetivamente revelado.
É verdade que uma penetraçao, no sentido incestuoso, é uma agressao física abominável, isso nao se discute. Mas o mais devastador, compreendi sobretudo na palestra de Françoise Héritier2, é a desorganizaçao das demarcaçoes sexuais, pois o incesto é, antes de qualquer coisa, um atentado identitário que desorganiza as demarcaçoes psíquicas, se estao construídas, e que cria um mundo inverso, se elas nao estao invertidas. É entao essa desorganizaçao dessas demarcaçoes sexuais, dessas demarcaçoes identitárias, que se coloca no centro desse trauma.
Há uma numerosa literatura sobre o incesto; apesar disso, geralmente se fala da metamorfose do incesto - é suficiente reler todas as peças de teatro, romances, por exemplo, Chateaubriand, Motherlant e outros... Édipo, sem dúvida, ou ainda filmes como Le souffle au coeur, de Louis Malle, que retrata um incesto entre mae e filha - mas nao se fala da realidade dos enredos. É que a realidade é insuportável, a obscenidade da realidade faz com que nao se fale, entao se fala da representaçao da realidade, que, ela sim, é suportável.
Se a intençao é controlar o fenômeno, se a intençao é prevenir para diminuir as passagens ao ato, sobretudo se a intençao é buscar resgatar os agredidos sexualmente, é preciso tentar compreender por qual mistério esse fenômeno é impossível, ou seja, inibido e interdito, e por qual mistério ele organiza o social. Entra-se entao completamente naquilo que se chama resiliência.
Esse termo, "resiliência", é um conceito que, segundo Boris Cyrulnik, adquiriu rapidamente tal amplitude que pode levar a um contrassenso. Ele diz também que, no fundo, a exata origem desse termo nao é conhecida. Supostamente, essa palavra foi usada pela primeira vez por Emmy Werner3. Apoiando-se na etimologia, "resalire" ou "resilire" significa "recuar para retornar". Pouco importa! É a metáfora que permite ajudar a pensar. A resiliência nasceu da psicanálise, ela se nutre da psicanálise, mas ela nao é a psicanálise. É essa atitude ao mesmo tempo interior e impressa pelo coletivo, pelo entorno - os tutores da resiliência serao referidos o tempo todo - que permite a certas pessoas, claramente traumatizadas, reatar. E se verá se, do lado dos abusadores, também há possibilidades ditas de resiliência.
Podemos nos perguntar também por que é tao difícil romper o silêncio. Em realidade, por mil razoes. Surpreendente quanto possa parecer, lembro-me de uma paciente abusada pelo pai durante anos que me confidenciou: "Leva muito tempo até a gente descobrir que o que a gente viveu nao é normal."
Na maioria das vezes, evidentemente, a criança sabe, sente que aquilo por que passa é estranho, mas pode ser submetida a ameaças, pode ser dominada pelo medo de ser punida, faltam-lhe palavras para dizer aquilo que nao compreende, ela tem medo de que nao creiam nela, tem medo de eventualmente machucar sua mae, desestabilizar a família e se dedica a fabricar a culpabilidade, geralmente com a cumplicidade do abusador. E o terrível segredo vai se instalar como um tipo de abscesso psíquico, com todas as somatizaçoes engendradas, e também com todos os problemas da relaçao.
E o terror provocado por um pai incestuoso, sabe-se, é contagioso e funciona em pequena escala, exatamente como uma ditadura. É o que diz Eva Thomas4, fundadora do "SOS Inceste" e autora do livro recentemente publicado Le sang des mots5, com prefácio de Marie Balmary.
Da mesma forma, as crianças nao falam se nao forem separadas do contexto familiar. É essencial que a palavra possa ser dita pela vítima a um adulto exterior à família. É muito importante e muito custoso ao mesmo tempo!
Desde a votaçao de 1989 sobre a proteçao da infância maltratada que permite às vítimas entrar na justiça durante os dez anos que se seguem à maioridade, os processos têm se multiplicado. Seria preciso desejar, como defendem alguns, que esse atraso de prescriçao passe de dez a vinte anos, ou até que se torne imprescritível?
Jean-Claude Guillebaud6 escreve em Le principe d'humanité esta frase extraordinária em seu sentido: "O pai que possui sexualmente o corpo de seu filho cede a um desejo inumano. Ele rompe o curso do tempo, destrói o parentesco, interdita a criança de encontrar seu lugar na corrente das geraçoes. O incesto é, entao, primo em primeiro grau do genocídio, pois acaba por destruir seu elo de parentesco. O que ele violenta, em resumo, nao é só o corpo da criança ou um de seus órgaos, mas exatamente aquilo que funda sua humanidade."
É preciso reconhecer o caráter específico desse crime para que se permita a imprescritibilidade do incesto, quer dizer, reconhecer que o incesto é um crime contra a humanidade, o que, de resto, é o único caso jurídico de imprescriçao. O incesto é um crime dessa humanidade nascente, da criança que está em construçao.
Uma coisa é certa: é só após uma palavra socializada que pode chegar, para muitas das vítimas, o tempo da reparaçao, mesmo se, no começo, a atençao pública vá provocar deflagraçao e fazer com que todos sofram.
O diretor dinamarquês Thomas Vintenberg, em seu filme Festen, de 1997, coloca em cena um processo sofrido por um filho dito "de boa família". É a história dessa família, onde transbordam o incesto e a violência, em que o silêncio é obrigatório e, portanto, fala a todos. O filho, Christian, ousa falar e convencer convidados reunidos para a festa de 60 anos do pai de que este abusou dele durante toda sua infância.
Calar-se é manter o amor do pai, ou a ilusao do amor do pai, ao preço de nao poder existir como si mesmo. Ouvidas, as palavras da verdade nao curam totalmente, mas desferem um golpe à fatalidade. Christian também acusa a mae e, se pode dizer com Sabourin, que esta era a "incestigadora" na medida em que sabia e nada fizera para que o abuso sexual fosse interrompido. No fim do filme, o pai é desonrado, mas, sobretudo, vemos o filho liberado, que pode, enfim, pedir à mulher que ama que o acompanhe.
O incesto é tabu desde a origem do homem, e desde que é falado, e essa interdiçao fundamental inaugura, segundo Lévi-Strauss, a passagem do estado de natureza ao estado de cultura. Dito de outra forma, essa interdiçao é reservada à espécie humana. Mas Lévi-Strauss nao tinha razao de todo e, em outra ocasiao, escreveu: "Antes da palavra, é o caos."
Maurice Godelier7 diz: "Nao, Lévi-Strauss nao tem totalmente razao, pois antes da palavra, o mundo vivente é já bastante estruturado. Ora, o que caracteriza o incesto é a interdiçao, ou seja, a verbalidade. É um ato biologicamente possível e, portanto, interdito pela representaçao verbal." Boris Cyrulnik ajunta: "Ele é interdito também pela representaçao emocional. Sao necessários, entao, dois ferrolhos: um ferrolho emocional e um segundo ferrolho verbal. Como podem os dois se associar?"
Um dia em que estávamos reunidos para uma pequena conferência com Boris Cyrulnik, ele nos disse: "Escutem, essa noite vocês convidam alguém para jantar e, após um momento, chega o prato de carne. E vocês dizem: 'Entao, o que acham?' E discutem: 'Nada mal, pode-se dizer que tem gosto de bife de coelho.' E todo mundo conversa sobre o aspecto da carne, seu gosto... Nesse momento, vocês percebem: 'Estao comendo o gato ou o cachorro de vocês!'" E Boris Cyrulnik acrescentou: "Afirmo que, nesse momento, a pessoa nao engole o pedaço que tem na boca!" Ou seja, há um bloqueio, uma tranca emocional evidente na medida em que se trata de um ser amado, que foi amado ou continua sendo. Acredito que esse exemplo ajuda a compreender o que é um ferrolho emocional.
A etologia muito contribuiu para a compreensao dessa interdiçao de certos acasalamentos. Há, é claro, Boris Cyrulnik, houve Norbert Bishop, mas já os trabalhos de Konrad Lorenz de 1936 acrescentam que a mae ganso cinzento nao copula com o filho e reciprocamente; e Konrad Lorenz pôde testemunhar, em 1940, a existência, na mesma espécie, de uma profunda aversao pela cópula entre irmao e irma.
Depois de ter estudado as gaivotas, como a maior parte dos animais, Boris Cyrulnik afirma com humor que finalmente as gaivotas contestam Lévi-Strauss, pois, efetivamente, nao precisaram de uma interdiçao verbal para se inibir a si mesmas. E acrescenta: "Para ser lógico, seria necessário concluir que os animais sao mais civilizados que os homens." Escreve em outra obra, Mémoire de singe, parole d'homme8, após lembrar que a sexualidade dos hipopótamos é rigorosamente regulamentada: "Bem... nesse caso, segundo Lévi-Strauss, os hipopótamos fariam parte dos mais civilizados seres vivos."
Outra observaçao considerável na compreensao desses fenômenos provém claramente de trabalhos sobre o apego, particularmente os de John Bowlby e seus sucessores.
Boris Cyrulnik explica em Si les lions pouvaient parler9 que é a urdidura do apego que instila nos animais um sentimento e que este impede o ato sexual. Ele acrescenta: "Todos os termos dessa frase foram experimentalmente verificados."
Há entao uma lei da vida que interdita o incesto, há um primeiro ferrolho biológico que interdita o incesto. E esse primeiro aferrolhamento será amplificado pela palavra, o tabu verbal, e pelo enunciado da lei que vai amplificar qualquer coisa que já está lá, antes da linguagem.
Édipo, nao tendo se apegado à sua mae, nao pôde inibir sua pulsao. Lá também se pode reforçar esse ponto com a tese do apego. Mas quando Édipo descobre, após um simples enunciado verbal, que é culpado do crime do incesto, passa por tal sofrimento que arranca os próprios olhos.
Inibiçao biológica no animal, a prática do incesto torna-se, para o homem, tabu verbal; tabu ao qual o pai da psicanálise, inventor do complexo de Édipo - chama "complexo", em que Freud diz "que foi um genial achado" que se deve a Jung (as dissidências entre Freud e Jung sao bem conhecidas...).
Mas, por volta de 1895, quando o jovem Freud sugere, em sua contribuiçao aos estudos da histeria, que os transtornos somáticos observados em suas pacientes adultas têm por origem as relaçoes sexuais que elas haviam tido durante a infância com o pai, sua teoria da seduçao provoca barulho - pode-se imaginar! - na virtuosa Viena da época. Dois anos mais tarde, ele se retratará, pois pensa: será possível que haja pais assim tao perversos?
As recordaçoes incestuosas relatadas por certos pacientes nao correspondem a qualquer elemento sexual de seu passado. E Freud diz que "as recordaçoes nao sao senao fantasmas", nasce sua hipótese sobre a existência de uma sexualidade infantil.
Sem refazer o traçado histórico da psicanálise, é a partir de entao que ele organizará o fundamento conceitual da psicanálise. Pois se o incesto nao fosse tabu, o grupo acabaria deixando de existir e voltaria a ser "a horda selvagem". E se o Édipo nao se fizesse complexo, o indivíduo nao chegaria ao estatuto de sujeito falante. Nos dois casos, nao haveria nem pais, nem filhos. A interdiçao do incesto impede, ao ser humano, duas tendências fundamentais: matar o pai e apropriar-se da mae. Em outros termos, a interdiçao do incesto e a lei edipiana vêm se conjugar para codificar as mudanças no grupo e na família. Tudo isso com o estrito fim de manter sua própria existência ao seio de um quadro coerente.
A história de Édipo mereceria ser mais longamente desenvolvida. Há, aliás, várias versoes do Édipo. O crime de origem nao é só a morte do pai, Laio10, e o incesto com a mae, Jocasta. Em seguida haveria certa perversao, pois se sabe que Laio havia seduzido um jovem, Crisipo11, inclusive filho de seu anfitriao, o rei Pélops. Há, entao, um crime e, ao mesmo tempo, em certas versoes, tem-se a impressao - é Jean Laplanche que o aponta - que Laio e seu filho Édipo eram rivais em relaçao ao jovem Crisipo. Você vê que, por detrás de Édipo, há coisas bem complicadas.
Logo, que a interdiçao do incesto seja uma organizaçao da cultura parece um dado essencial. Que ela repousa sobre a necessidade de doaçao e trocas entre diferentes grupos humanos é outro dado de base.
Mas é importante, antes de falar mais diretamente da obra Et alors papa?..., introduzir a noçao de incestual. Esta me parece uma noçao fundamental e, ao mesmo tempo, tao desestruturante, para muitos dos pacientes que pude atender, quanto o incesto propriamente dito.
Esse conceito de incestual foi apresentado por Paul-Claude Racamier12. Para ele, trata-se de "aquilo que, na vida psíquica individual ou familiar, guarda a marca do incesto nao fantasmático, sem que haja, necessariamente, as formas genitais". Como diz o autor: "O incesto fantasmático, como o assassinato fantasmático, diz respeito ao Édipo"; mas o incesto e o incestual nao surgem do fantasma. Surgem do "agido" ou, mais rigorosamente, do "fantasma agido", o que quer dizer que lá, em verdade, nao se está no âmbito do fantasma, ao ponto de Racamier dizer: "O incesto nao é o Édipo, é, inclusive, o contrário."
Pode-se definir o incestual como uma relaçao extremamente estreita entre duas pessoas que o incesto poderia reunir e que, no entanto, nao o faz, mas oferece algo equivalente sob uma forma aparentemente banal e benigna. O incestual, em minha opiniao, pode ser considerado um equivalente do incesto, pois começa com uma atmosfera e nao há limites à atmosfera, que tudo impregna; é como o odor, ele impregna as imagens, os gestos, a forma como se passam os fins de semana e, diria eu, impregna também as maneiras de pensar.
Há famílias que pensam de uma certa maneira incestual: uma família ou um cla onde se produzem espécies de transaçoes que estao um pouco do lado de dentro do cercado. Nesses sistemas fechados, nao há amigos, nem projeto, nem saída, nem convite, ou seja, nao há rituais de interaçao familiar. Daí que exista uma moldagem emocional nos animais.
Tomemos, por exemplo, os gestos dos pais: foi um beijo paternal ou um beijo malicioso? Um tipo de clima incestual pode gerar um transtorno e ser bastante desestruturante, pois a menina dirá a si mesma: "O que é isso? Eu me sinto pouco à vontade." Há sem dúvida um problema na relaçao, uma espécie de inibiçao que se impoe, e a filha se sente prisioneira desse problema.
Precisamente a funçao da interdiçao da espécie é deixar claro nosso código relacional, familiar, cultural; em todas as famílias onde há transaçoes incestuosas, pode-se dizer que reina a confusao. Toda uma série de comportamentos, gestos, atitudes provoca na criança ou adolescente um mal-estar ou uma angústia.
Penso mais uma vez nesse desejo que nao é completamente ausente por parte dos pais: beijos que tendem a escorregar, de brincadeira, à boca, maos que se demoram; sao, assim, discursos do gênero "É brincadeira!" ou "Ela é maliciosa" ou, no caso do pré-adolescente, "Entao, já está grandinha?"
O que é interessante é quando é dito diante da mae. Sobretudo quando isso é dito diante da mae e ela nao diz nada. Se a mae nao reage, é grave. Pois isso tende a banalizar a coisa, e aí está a organizaçao incestual ou incestuosa.
Alguns pensam que esses climas incestuosos nao sao graves, ou sao menos graves. Eu creio que é um erro, pois seu caráter vago e impreciso, seus contornos nao definidos fazem com que, mais tarde, na idade adulta, a pessoa nao possa sequer dizer que "aconteceu tal coisa comigo" e reconhecer em si um sentimento de vítima legítimo. De forma que, se alguém interpela o adulto nesse momento, este pode sempre dizer "Tu estás sonhando! O que estás vendo ali?" e mesmo retribuir: "Céus, tu realmente tens cada ideia!"
Com frequência se encontra nessas famílias uma grande proximidade, que eu chamo de "uma grande proteçao de todos por todos", assim como uma falta de distância intergeracional entre a geraçao dos pais e a dos filhos. O que efetivamente carrega todo um conjunto de comportamentos e transtornos. Podem-se achar essas nao separaçoes em diversos níveis, pelo menos três, mas podem-se distinguir outros:
- no nível dos corpos, observam-se colagens de corpos entre eles, com promiscuidades de sexos que sao organizados na medida em que, em certas famílias, nao se usam mais que um pano para cobrir as partes íntimas. Cheguei a ver uma família em que se usava um único lenço para todos!
- no nível das intimidades, pode ser como nas famílias em que nunca se fecha a porta do banheiro, ou do lavabo; e os adultos se mostram assim diante das crianças;
- no nível das cabeças, na medida em que, por exemplo, os pais querem saber tudo sobre seu filho e nao o autorizam a ter qualquer vida privada. Este é possuído em todos os sentidos que o termo possa ter.
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