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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2011; 13(2):169-187



Artigos Especiais

Incesto e resiliência1

Incest and resilience

Gérard Ostermann*

 

 

Nao me considero um especialista em questoes de incesto. Fui levado a me interessar pela problemática posta pelo incesto a partir de uma clínica para problemas de comportamento alimentar que comportava certo número de pacientes - muitos pacientes - que tinham sido abusados na infância ou que haviam vivido - e voltaremos a isso - uma atmosfera incestuosa.

É fato que, hoje em dia, os holofotes da mídia se voltam com insistência sobre a questao dos abusos sexuais com os quais infelizmente se confrontam muitas crianças. Gostaria de dizer que se trata de um problema aterrorizante e, ao mesmo tempo, fascinante.

Fascinante, pois, em nome do que, ou o que justifica uma inibiçao emocional e uma interdiçao social de um ato biologicamente possível?

Nesse domínio, as coisas tomam rapidamente um caminho passional, ao ponto de podermos nos perguntar se, por exemplo, a frequência dos incestos aumenta.

Nao faz muito tempo o jornal Le Monde publicou gráficos onde se percebia um aumento no número de incestos. Eu me coloquei a questao, e cheguei a falar com Boris Cyrulnik, pois faço parte com ele de um grupo de trabalho sobre "Biologia e apego"; pedi sua opiniao e ele me respondeu que também pensava que a frequência dos incestos estava aumentando.

Isso nao é só um efeito de ótica ligado à ruptura da lei do silêncio, à maior expressao desses fatos e maior capacidade dos meios de informaçao.

Há, provavelmente, um aumento no número de casos de incesto, porque, em minha opiniao, observa-se hoje em dia, no nível das relaçoes de parentesco, uma confusao nos códigos e talvez também uma falência dos cuidados paternos e maternos. Há uma anulaçao da interdiçao ao incesto associada à anulaçao das estruturas familiares.

O arranjo incestuoso se organiza em torno da ausência de uma lei "interditora" e "separadora".

Separar é um ato cultural, ou seja, implica o sujeito tanto em sua intimidade quanto na esfera social onde ele evolui. No fundo, a evoluçao individual se faz sempre sobre a cena daquilo que Jacques André nomeou "o ser psíquico coletivo".

A obra humana caminha sempre em direçao a maiores diferenciaçoes e o faz por separaçoes sucessivas. Lembremos que os grandes mitos fundadores das civilizaçoes funcionam assim e fundam nossas civilizaçoes por separaçao. É suficiente lembrar-se do Genesis, que inicia pela divisao entre o Céu e a Terra; de um lado, o território do homem e, para além, o território de Deus.

No entanto, a separaçao nao impede a tentaçao megalomaníaca da fusao "unária" ou de retornar àquela unidade primordial, sempre regressiva, que se poderia chamar de "desdiferenciadora". Assim, por exemplo, quando os homens se arrogam poder reconquistar o domínio celeste e reunir a Terra e o Céu, constroem a Torre de Babel. E para impedir a construçao dessa torre, Deus multiplica as línguas. Daí se segue uma grande confusao.

Seria, entao, essa confusao uma regressao à indiferenciaçao? Nem um pouco, dizem os talmudistas, pois a multiplicaçao de línguas é uma nova progressao cultural. A nova separaçao introduziu uma traduçao entre as línguas do homem e, assim, a interpretaçao. E o paradoxo, de fato, é apenas aparente, pois Freud nao diz outra coisa quando escreve que a tendência entrópica unificante e a massificaçao das pulsoes ou a repetiçao estao a serviço de Tânato. Que eu saiba, Freud nunca fez referência a Tânato strictu sensu. Falou de Eros, mas nao de Tânato. Mas enfim, sabe-se que é a pulsao de morte que está em questao aqui. Em "Além do princípio do prazer", ele diz: "No fundo, o que buscam os homens? Nao buscam senao uma coisa: buscam ser amados."

É aí que a dificuldade começa, pois há um conflito basal, incontornável, entre dois grupos de pulsoes: as pulsoes de vida e a pulsao de morte. Imagino que Ferenczi tivesse em mente a história bíblica de Babel quando mudou o título primeiro - admito, bastante confirmador - de uma conferência que pronunciaria em 1932 em Wiesbaden, intitulada "As paixoes dos adultos e suas influências sobre o desenvolvimento do caráter e da sexualidade da criança". O título se tornou bem mais sucinto: "Conferência sobre as línguas entre os adultos e as crianças", com um subtítulo assaz interessante: "A linguagem da ternura e da paixao". Daí se compreende o título desse artigo de referência: o adulto abusador fala a linguagem da paixao e se engana sobre a demanda de ternura por parte da criança.

Há, entao, confusao de línguas, confusao entre línguas, se poderia dizer "erro de traduçao". Mas o próprio Ferenczi nao comenta seu título, poderia, por exemplo, ter proposto "Confusao de registros ou de espaços psíquicos ou de geraçoes". Mas aí me arrisco um pouco...

Hoje, as associaçoes de apoio mútuo, os livros, os programas televisivos etc. fazem com que nunca se fale demais da questao do incesto. Eu diria que é necessário falar, pois é isso que permite mudar a forma como se veem as "vítimas": à medida que a escuridao diminui, confirma-se que a prática do incesto concerne a todos os meios; nao é, bem entendido, simplesmente um assunto de gabinete.

Verifica-se igualmente que as consequências sao tao mais devastadoras para o futuro afetivo e sexual de quem foi abusado quanto mais duradouramente essa violência é inscrita; infelizmente, isso é bastante frequente.

A vivência incestuosa representa o modelo de todas as violências, o trauma fundamental e paradigmático. Anna Freud dizia que, para se estabelecer um trauma, sao necessários dois golpes. Um primeiro, que será chamado de trauma, é um golpe no real; e um segundo golpe na representaçao do real.

Quando Boris Cyrulnik fala do trauma e da representaçao psíquica que existe, após o trauma, após o primeiro golpe, diz: "há qualquer coisa de morto na pessoa". Com efeito, com bastante frequência nas sessoes psicoterápicas ou psicanalíticas, ouve-se o seguinte: "tem algo em mim que foi morto." É verdade que a infância foi morta, é verdade que a esperança foi morta, é verdade que, em um mesmo golpe, a identidade e a sexualidade da criança, da jovem adolescente ou jovem mulher foram mortas, mas a pessoa nao morre de uma vez; no fundo ela é morta, mas nao morre. Imagine que você tenha cometido um crime e percebe que há uma testemunha: ou você consegue o silêncio da testemunha, ou você a elimina. E para eliminá-la, como se pode fazer? Bem... pode-se pagar um assassino de aluguel, como se diz.

A diferença nas histórias de incesto é que, nas ocorrências, o gênio infeliz e malfeitor das famílias incestuosas faz com que a vítima e a testemunha sejam uma única pessoa; mas a testemunha é a vítima, e é a mesma vítima que vai, de alguma forma, cumprir o "contrato". A vítima vai, de certa maneira, se matar, e efetivamente teremos um crime perfeito: desaparecimento do corpo, desaparecimento da testemunha, tudo se faz da melhor for-ma, pois o silêncio foi totalmente respeitado. É o que acontece quando uma jovem violentada se suicida, seria dizer: "se mate, para que tenhamos certeza de que o silêncio será respeitado."

Tive a oportunidade de vivenciar a situaçao de um suicídio no caso de uma jovem que fora violentada e repito: é o crime perfeito se nada é efetivamente revelado.

É verdade que uma penetraçao, no sentido incestuoso, é uma agressao física abominável, isso nao se discute. Mas o mais devastador, compreendi sobretudo na palestra de Françoise Héritier2, é a desorganizaçao das demarcaçoes sexuais, pois o incesto é, antes de qualquer coisa, um atentado identitário que desorganiza as demarcaçoes psíquicas, se estao construídas, e que cria um mundo inverso, se elas nao estao invertidas. É entao essa desorganizaçao dessas demarcaçoes sexuais, dessas demarcaçoes identitárias, que se coloca no centro desse trauma.

Há uma numerosa literatura sobre o incesto; apesar disso, geralmente se fala da metamorfose do incesto - é suficiente reler todas as peças de teatro, romances, por exemplo, Chateaubriand, Motherlant e outros... Édipo, sem dúvida, ou ainda filmes como Le souffle au coeur, de Louis Malle, que retrata um incesto entre mae e filha - mas nao se fala da realidade dos enredos. É que a realidade é insuportável, a obscenidade da realidade faz com que nao se fale, entao se fala da representaçao da realidade, que, ela sim, é suportável.

Se a intençao é controlar o fenômeno, se a intençao é prevenir para diminuir as passagens ao ato, sobretudo se a intençao é buscar resgatar os agredidos sexualmente, é preciso tentar compreender por qual mistério esse fenômeno é impossível, ou seja, inibido e interdito, e por qual mistério ele organiza o social. Entra-se entao completamente naquilo que se chama resiliência.

Esse termo, "resiliência", é um conceito que, segundo Boris Cyrulnik, adquiriu rapidamente tal amplitude que pode levar a um contrassenso. Ele diz também que, no fundo, a exata origem desse termo nao é conhecida. Supostamente, essa palavra foi usada pela primeira vez por Emmy Werner3. Apoiando-se na etimologia, "resalire" ou "resilire" significa "recuar para retornar". Pouco importa! É a metáfora que permite ajudar a pensar. A resiliência nasceu da psicanálise, ela se nutre da psicanálise, mas ela nao é a psicanálise. É essa atitude ao mesmo tempo interior e impressa pelo coletivo, pelo entorno - os tutores da resiliência serao referidos o tempo todo - que permite a certas pessoas, claramente traumatizadas, reatar. E se verá se, do lado dos abusadores, também há possibilidades ditas de resiliência.

Podemos nos perguntar também por que é tao difícil romper o silêncio. Em realidade, por mil razoes. Surpreendente quanto possa parecer, lembro-me de uma paciente abusada pelo pai durante anos que me confidenciou: "Leva muito tempo até a gente descobrir que o que a gente viveu nao é normal."

Na maioria das vezes, evidentemente, a criança sabe, sente que aquilo por que passa é estranho, mas pode ser submetida a ameaças, pode ser dominada pelo medo de ser punida, faltam-lhe palavras para dizer aquilo que nao compreende, ela tem medo de que nao creiam nela, tem medo de eventualmente machucar sua mae, desestabilizar a família e se dedica a fabricar a culpabilidade, geralmente com a cumplicidade do abusador. E o terrível segredo vai se instalar como um tipo de abscesso psíquico, com todas as somatizaçoes engendradas, e também com todos os problemas da relaçao.

E o terror provocado por um pai incestuoso, sabe-se, é contagioso e funciona em pequena escala, exatamente como uma ditadura. É o que diz Eva Thomas4, fundadora do "SOS Inceste" e autora do livro recentemente publicado Le sang des mots5, com prefácio de Marie Balmary.

Da mesma forma, as crianças nao falam se nao forem separadas do contexto familiar. É essencial que a palavra possa ser dita pela vítima a um adulto exterior à família. É muito importante e muito custoso ao mesmo tempo!

Desde a votaçao de 1989 sobre a proteçao da infância maltratada que permite às vítimas entrar na justiça durante os dez anos que se seguem à maioridade, os processos têm se multiplicado. Seria preciso desejar, como defendem alguns, que esse atraso de prescriçao passe de dez a vinte anos, ou até que se torne imprescritível?

Jean-Claude Guillebaud6 escreve em Le principe d'humanité esta frase extraordinária em seu sentido: "O pai que possui sexualmente o corpo de seu filho cede a um desejo inumano. Ele rompe o curso do tempo, destrói o parentesco, interdita a criança de encontrar seu lugar na corrente das geraçoes. O incesto é, entao, primo em primeiro grau do genocídio, pois acaba por destruir seu elo de parentesco. O que ele violenta, em resumo, nao é só o corpo da criança ou um de seus órgaos, mas exatamente aquilo que funda sua humanidade."

É preciso reconhecer o caráter específico desse crime para que se permita a imprescritibilidade do incesto, quer dizer, reconhecer que o incesto é um crime contra a humanidade, o que, de resto, é o único caso jurídico de imprescriçao. O incesto é um crime dessa humanidade nascente, da criança que está em construçao.

Uma coisa é certa: é só após uma palavra socializada que pode chegar, para muitas das vítimas, o tempo da reparaçao, mesmo se, no começo, a atençao pública vá provocar deflagraçao e fazer com que todos sofram.

O diretor dinamarquês Thomas Vintenberg, em seu filme Festen, de 1997, coloca em cena um processo sofrido por um filho dito "de boa família". É a história dessa família, onde transbordam o incesto e a violência, em que o silêncio é obrigatório e, portanto, fala a todos. O filho, Christian, ousa falar e convencer convidados reunidos para a festa de 60 anos do pai de que este abusou dele durante toda sua infância.

Calar-se é manter o amor do pai, ou a ilusao do amor do pai, ao preço de nao poder existir como si mesmo. Ouvidas, as palavras da verdade nao curam totalmente, mas desferem um golpe à fatalidade. Christian também acusa a mae e, se pode dizer com Sabourin, que esta era a "incestigadora" na medida em que sabia e nada fizera para que o abuso sexual fosse interrompido. No fim do filme, o pai é desonrado, mas, sobretudo, vemos o filho liberado, que pode, enfim, pedir à mulher que ama que o acompanhe.

O incesto é tabu desde a origem do homem, e desde que é falado, e essa interdiçao fundamental inaugura, segundo Lévi-Strauss, a passagem do estado de natureza ao estado de cultura. Dito de outra forma, essa interdiçao é reservada à espécie humana. Mas Lévi-Strauss nao tinha razao de todo e, em outra ocasiao, escreveu: "Antes da palavra, é o caos."

Maurice Godelier7 diz: "Nao, Lévi-Strauss nao tem totalmente razao, pois antes da palavra, o mundo vivente é já bastante estruturado. Ora, o que caracteriza o incesto é a interdiçao, ou seja, a verbalidade. É um ato biologicamente possível e, portanto, interdito pela representaçao verbal." Boris Cyrulnik ajunta: "Ele é interdito também pela representaçao emocional. Sao necessários, entao, dois ferrolhos: um ferrolho emocional e um segundo ferrolho verbal. Como podem os dois se associar?"

Um dia em que estávamos reunidos para uma pequena conferência com Boris Cyrulnik, ele nos disse: "Escutem, essa noite vocês convidam alguém para jantar e, após um momento, chega o prato de carne. E vocês dizem: 'Entao, o que acham?' E discutem: 'Nada mal, pode-se dizer que tem gosto de bife de coelho.' E todo mundo conversa sobre o aspecto da carne, seu gosto... Nesse momento, vocês percebem: 'Estao comendo o gato ou o cachorro de vocês!'" E Boris Cyrulnik acrescentou: "Afirmo que, nesse momento, a pessoa nao engole o pedaço que tem na boca!" Ou seja, há um bloqueio, uma tranca emocional evidente na medida em que se trata de um ser amado, que foi amado ou continua sendo. Acredito que esse exemplo ajuda a compreender o que é um ferrolho emocional.

A etologia muito contribuiu para a compreensao dessa interdiçao de certos acasalamentos. Há, é claro, Boris Cyrulnik, houve Norbert Bishop, mas já os trabalhos de Konrad Lorenz de 1936 acrescentam que a mae ganso cinzento nao copula com o filho e reciprocamente; e Konrad Lorenz pôde testemunhar, em 1940, a existência, na mesma espécie, de uma profunda aversao pela cópula entre irmao e irma.

Depois de ter estudado as gaivotas, como a maior parte dos animais, Boris Cyrulnik afirma com humor que finalmente as gaivotas contestam Lévi-Strauss, pois, efetivamente, nao precisaram de uma interdiçao verbal para se inibir a si mesmas. E acrescenta: "Para ser lógico, seria necessário concluir que os animais sao mais civilizados que os homens." Escreve em outra obra, Mémoire de singe, parole d'homme8, após lembrar que a sexualidade dos hipopótamos é rigorosamente regulamentada: "Bem... nesse caso, segundo Lévi-Strauss, os hipopótamos fariam parte dos mais civilizados seres vivos."

Outra observaçao considerável na compreensao desses fenômenos provém claramente de trabalhos sobre o apego, particularmente os de John Bowlby e seus sucessores.

Boris Cyrulnik explica em Si les lions pouvaient parler9 que é a urdidura do apego que instila nos animais um sentimento e que este impede o ato sexual. Ele acrescenta: "Todos os termos dessa frase foram experimentalmente verificados."

Há entao uma lei da vida que interdita o incesto, há um primeiro ferrolho biológico que interdita o incesto. E esse primeiro aferrolhamento será amplificado pela palavra, o tabu verbal, e pelo enunciado da lei que vai amplificar qualquer coisa que já está lá, antes da linguagem.

Édipo, nao tendo se apegado à sua mae, nao pôde inibir sua pulsao. Lá também se pode reforçar esse ponto com a tese do apego. Mas quando Édipo descobre, após um simples enunciado verbal, que é culpado do crime do incesto, passa por tal sofrimento que arranca os próprios olhos.

Inibiçao biológica no animal, a prática do incesto torna-se, para o homem, tabu verbal; tabu ao qual o pai da psicanálise, inventor do complexo de Édipo - chama "complexo", em que Freud diz "que foi um genial achado" que se deve a Jung (as dissidências entre Freud e Jung sao bem conhecidas...).

Mas, por volta de 1895, quando o jovem Freud sugere, em sua contribuiçao aos estudos da histeria, que os transtornos somáticos observados em suas pacientes adultas têm por origem as relaçoes sexuais que elas haviam tido durante a infância com o pai, sua teoria da seduçao provoca barulho - pode-se imaginar! - na virtuosa Viena da época. Dois anos mais tarde, ele se retratará, pois pensa: será possível que haja pais assim tao perversos?

As recordaçoes incestuosas relatadas por certos pacientes nao correspondem a qualquer elemento sexual de seu passado. E Freud diz que "as recordaçoes nao sao senao fantasmas", nasce sua hipótese sobre a existência de uma sexualidade infantil.

Sem refazer o traçado histórico da psicanálise, é a partir de entao que ele organizará o fundamento conceitual da psicanálise. Pois se o incesto nao fosse tabu, o grupo acabaria deixando de existir e voltaria a ser "a horda selvagem". E se o Édipo nao se fizesse complexo, o indivíduo nao chegaria ao estatuto de sujeito falante. Nos dois casos, nao haveria nem pais, nem filhos. A interdiçao do incesto impede, ao ser humano, duas tendências fundamentais: matar o pai e apropriar-se da mae. Em outros termos, a interdiçao do incesto e a lei edipiana vêm se conjugar para codificar as mudanças no grupo e na família. Tudo isso com o estrito fim de manter sua própria existência ao seio de um quadro coerente.

A história de Édipo mereceria ser mais longamente desenvolvida. Há, aliás, várias versoes do Édipo. O crime de origem nao é só a morte do pai, Laio10, e o incesto com a mae, Jocasta. Em seguida haveria certa perversao, pois se sabe que Laio havia seduzido um jovem, Crisipo11, inclusive filho de seu anfitriao, o rei Pélops. Há, entao, um crime e, ao mesmo tempo, em certas versoes, tem-se a impressao - é Jean Laplanche que o aponta - que Laio e seu filho Édipo eram rivais em relaçao ao jovem Crisipo. Você vê que, por detrás de Édipo, há coisas bem complicadas.

Logo, que a interdiçao do incesto seja uma organizaçao da cultura parece um dado essencial. Que ela repousa sobre a necessidade de doaçao e trocas entre diferentes grupos humanos é outro dado de base.

Mas é importante, antes de falar mais diretamente da obra Et alors papa?..., introduzir a noçao de incestual. Esta me parece uma noçao fundamental e, ao mesmo tempo, tao desestruturante, para muitos dos pacientes que pude atender, quanto o incesto propriamente dito.

Esse conceito de incestual foi apresentado por Paul-Claude Racamier12. Para ele, trata-se de "aquilo que, na vida psíquica individual ou familiar, guarda a marca do incesto nao fantasmático, sem que haja, necessariamente, as formas genitais". Como diz o autor: "O incesto fantasmático, como o assassinato fantasmático, diz respeito ao Édipo"; mas o incesto e o incestual nao surgem do fantasma. Surgem do "agido" ou, mais rigorosamente, do "fantasma agido", o que quer dizer que lá, em verdade, nao se está no âmbito do fantasma, ao ponto de Racamier dizer: "O incesto nao é o Édipo, é, inclusive, o contrário."

Pode-se definir o incestual como uma relaçao extremamente estreita entre duas pessoas que o incesto poderia reunir e que, no entanto, nao o faz, mas oferece algo equivalente sob uma forma aparentemente banal e benigna. O incestual, em minha opiniao, pode ser considerado um equivalente do incesto, pois começa com uma atmosfera e nao há limites à atmosfera, que tudo impregna; é como o odor, ele impregna as imagens, os gestos, a forma como se passam os fins de semana e, diria eu, impregna também as maneiras de pensar.

Há famílias que pensam de uma certa maneira incestual: uma família ou um cla onde se produzem espécies de transaçoes que estao um pouco do lado de dentro do cercado. Nesses sistemas fechados, nao há amigos, nem projeto, nem saída, nem convite, ou seja, nao há rituais de interaçao familiar. Daí que exista uma moldagem emocional nos animais.

Tomemos, por exemplo, os gestos dos pais: foi um beijo paternal ou um beijo malicioso? Um tipo de clima incestual pode gerar um transtorno e ser bastante desestruturante, pois a menina dirá a si mesma: "O que é isso? Eu me sinto pouco à vontade." Há sem dúvida um problema na relaçao, uma espécie de inibiçao que se impoe, e a filha se sente prisioneira desse problema.

Precisamente a funçao da interdiçao da espécie é deixar claro nosso código relacional, familiar, cultural; em todas as famílias onde há transaçoes incestuosas, pode-se dizer que reina a confusao. Toda uma série de comportamentos, gestos, atitudes provoca na criança ou adolescente um mal-estar ou uma angústia.

Penso mais uma vez nesse desejo que nao é completamente ausente por parte dos pais: beijos que tendem a escorregar, de brincadeira, à boca, maos que se demoram; sao, assim, discursos do gênero "É brincadeira!" ou "Ela é maliciosa" ou, no caso do pré-adolescente, "Entao, já está grandinha?"

O que é interessante é quando é dito diante da mae. Sobretudo quando isso é dito diante da mae e ela nao diz nada. Se a mae nao reage, é grave. Pois isso tende a banalizar a coisa, e aí está a organizaçao incestual ou incestuosa.

Alguns pensam que esses climas incestuosos nao sao graves, ou sao menos graves. Eu creio que é um erro, pois seu caráter vago e impreciso, seus contornos nao definidos fazem com que, mais tarde, na idade adulta, a pessoa nao possa sequer dizer que "aconteceu tal coisa comigo" e reconhecer em si um sentimento de vítima legítimo. De forma que, se alguém interpela o adulto nesse momento, este pode sempre dizer "Tu estás sonhando! O que estás vendo ali?" e mesmo retribuir: "Céus, tu realmente tens cada ideia!"

Com frequência se encontra nessas famílias uma grande proximidade, que eu chamo de "uma grande proteçao de todos por todos", assim como uma falta de distância intergeracional entre a geraçao dos pais e a dos filhos. O que efetivamente carrega todo um conjunto de comportamentos e transtornos. Podem-se achar essas nao separaçoes em diversos níveis, pelo menos três, mas podem-se distinguir outros:

  • no nível dos corpos, observam-se colagens de corpos entre eles, com promiscuidades de sexos que sao organizados na medida em que, em certas famílias, nao se usam mais que um pano para cobrir as partes íntimas. Cheguei a ver uma família em que se usava um único lenço para todos!
  • no nível das intimidades, pode ser como nas famílias em que nunca se fecha a porta do banheiro, ou do lavabo; e os adultos se mostram assim diante das crianças;
  • no nível das cabeças, na medida em que, por exemplo, os pais querem saber tudo sobre seu filho e nao o autorizam a ter qualquer vida privada. Este é possuído em todos os sentidos que o termo possa ter.


  • O triângulo é claramente o fundador da condiçao humana e lembremo-nos de que um pai nao é de forma alguma uma mae; se poderia quase dizer: um pai é uma nao-mae. Essa triangulaçao se estabelece muito antes do Édipo: distância e diferença sao fundadoras do desenvolvimento psicoafetivo da criança.


    ENTENDER O ABUSO DE UM PAI

    Certo dia, o editor e doutor em sociologia Christian Sallenava me chamou: "Veja só, quando estive em Paris, encontrei uma pessoa que me perguntou se seria possível publicar o diário de alguém que abusou de seu filho, sua filha e de um sobrinho. Esse homem se entregou à polícia e foi julgado pela corte criminal. O desafio é o seguinte: eu te confio o texto, tu me dizes o que achas. Eu o entrego igualmente a um psicolinguista; eu o analiso com meu viés sociológico e depois pedimos a Boris Cyrulnik seu ponto de vista."

    E foi o que aconteceu. O contrato era simples: nós nao devíamos nos comunicar uns com os outros e fazer nosso "dever de casa" - inicialmente, nao era certo nem que o diário seria publicado em formato de livro. O texto de fato poderia ser objeto de uma discussao interessante.

    Foi surpreendente ver que, nessa obra chamada Et alors, papa?..., chegamos todos praticamente às mesmas conclusoes a respeito do pai abusador. Outro elemento do contrato inicial: todos os direitos autorais seriam vertidos a associaçoes de defesa a vítimas de incesto (entre elas, a ARSIONE13).

    A dificuldade dessa abordagem é que entender o abuso de um pai é se confrontar com "a violência de pensar a violência do outro". É se confrontar com o impossível pensar sobre a violência do outro, pois nao é só o abuso sexual que é violento, como se viu, o desvelamento da verdade também o é.

    Mas a emergência de uma verdade é a condiçao incontornável do tratamento de abuso para quem o sofreu. Poderia se dizer que há violências fecundas.

    O mesmo trabalho já havia sido proposto a outros colegas, que ficaram escandalizados com o projeto, dizendo que "nao quero ouvir falar de gente desse tipo!" Outros nos disseram: "Está fora de questao eu me envolver com uma leitura ou até um escrito sobre um pai abusador!" Entao é essa a paixao do "desconhecimento"?

    Isso vem ao encontro, neste caso, do discurso social habitual: "Sao monstros, é preciso erradicá-los, emasculá-los!" Mas, como diz Boris Cyrulnik: "É certo que haveria puniçao, mas nao compreensao, nem soluçao, nao haveria qualquer prevençao."

    E quando alguém comete o irreparável - quase me sinto inclinado a dizer "o imperdoável" - pode reintegrar-se ao mundo dos humanos? Será que a pessoa humana continua existindo para além de seus atos mais monstruosos? É uma verdadeira questao. O arrependimento, o pedido de perdao sao aceitáveis sem que constituam uma forma de violência à vítima que pode ver uma minimizaçao do ato?

    Emocionalmente, sentimo-nos mais tentados a estigmatizar o agressor que a tentar compreender por que cometeu a agressao. Mas permanece a questao de compreender por que um drama como aquele ocorreu. É importante tentar compreender, mesmo que permaneçam muitas questoes, para que esse drama nao seja o fundador de toda a história familiar.

    Li há algum tempo um artigo de Jean Laplanche que diz: "Todo mundo tem em si as raízes do crime sexual e a questao é saber por que alguns sao mais bem simbolizados que outros." Essa proposta já nos poe, com vantagem, no campo da compreensao.

    Poderíamos dizer, com Gregory Bateson14, fundador da escola de Palo Alto15, que "todos habitamos casas de vidro e faríamos bem em nao jogar a primeira pedra". Ou com uma formulaçao elegante: "Dediquemo-nos à compreensao mais que à estigmatizaçao."

    É igualmente evidente que aqueles que sofreram agressoes sexuais têm maior propensao a reiterar esse comportamento. Com efeito, é claro que essas pessoas nao se tornam incestuosas ou "incesticidas"16, como diz Sabourin. Assim, esses pais nao se sentem pais, mas homens submissos a uma pulsao sexual à qual nao dao forma; eles se deixam conduzir por sua pulsao, pois ela nao é estruturada nem por seu desenvolvimento, nem por sua cultura. Poder-se-ia dizer que eles se sentem prisioneiros ou ainda "aculturados em sua própria cultura" e se há uma aculturaçao cultural, entao a passagem ao ato é obviamente amplificada.

    Isso quer dizer que eles têm o sentimento de nao representaçao de seu papel como pai. Quando alguém se sente pai, o ato nao só é impossível, ele sequer é pensado, ou mesmo representado. E o vemos nas coisas cotidianas. Pode ocorrer de alguém dar um beijo na filha no lado da bochecha e se atrapalhar, sentir-se constrangido e rir, mas se sabe que, de certa maneira, nao há nisso conotaçoes sexuais, o código permanece claro. Se isso é transferido a uma outra cultura, por exemplo, a russa, se pode dar um beijinho na boca da filha, o que é perfeitamente integrado na cultura. Mas em nossa cultura francesa isso é inaceitável!

    Por outro lado, se escutamos discursos de pais incestuosos, ouvimos com frequência: "Nós somos os iniciadores" ou "Eu a fiz descobrir o amor". E eles se apresentam com igual frequência como moralizadores, como é o caso aqui: Sr. P., ele moraliza, moraliza o procurador, moraliza até o advogado, tem expressoes como "Nao deveríamos chamar muito a atençao sobre isso". Enfim, ele contesta uma certa quantidade de coisas.

    Lembremo-nos de que os maiores perversos eram moralizadores. Justine, de Sade, é a introduçao à moral; Masoch acabou como professor de moral. Daí a dizer que todos os perversos sao grandes moralizadores, no mínimo chama a atençao.

    Mas quando se fala de resiliência, ou de prevençao das passagens ao ato, é preciso tentar compreender o que se passa quando o abusador nao tem o sentimento de ter cometido um crime. É o que se passa com os genocidas de Ruanda, que dizem: "Podemos eliminá-los, sao baratas, é bom que se eliminem as baratas." E na Segunda Guerra Mundial, os judeus eram ratos, e é bom que se eliminem ratos.

    Há essa espécie de moral perversa que faz com que essas pessoas nao tenham mais acesso à representaçao do mundo do outro. Creio que é isso que se passa com o abusador, que nao teve acesso ao mundo da criança. Dizse que ele tem um problema com sua "Einfühlung", um problema de empatia, nao chega a representar o mundo do outro.

    Isso é ainda mais grave se a criança abusada sente prazer, pois vai se sentir cúmplice. Nao só fica desestruturada, desorganizada em seus limites identitários, mas também experimentou algo. Como ir à polícia quando a pessoa se sente cúmplice daquilo que se passou? Indiscutivelmente, o ato é abominável, o ato é inegavelmente monstruoso.

    Os abusadores sao pessoas que se desenvolveram mal, têm um problema com a representaçao do outro. O abusador nao vivencia senao seu próprio mundo mental e é "da forma mais sincera do mundo" que ele desfrutará da filha ou filho como objeto de curiosidade. Ele é incapaz de representar a si as emoçoes do outro e, certamente, somos levados a pensar no ciclo do abuso sexual, ou seja, estabelecer os elos entre a violência sofrida e a violência perpetrada.

    As estatísticas mostram hoje que os abusadores foram eles mesmos vítimas de agressao sexual durante a infância. Essa repetiçao nao é advinda de uma libido desencadeada, com vistas só à satisfaçao genital. Nao, creio que o gozo seja de outra ordem: da ordem da repetiçao de uma situaçao infantil nao resolvida com uma compulsao a revivê-la de novo e de novo até que seu sentido se revele e libere o sujeito de sua alienaçao mórbida.

    A análise que foi feita - e a literatura psicanalítica sobre o assunto é bastante numerosa hoje - de homens e mulheres que repetem com seus próprios filhos as violências sofridas na própria infância mostra que a agressao sexual deixou um traço particular e que o transtorno de identidade resultante está na origem do cenário incestuoso.

    Mas se a hipótese da relaçao entre abuso vivido na infância e perpetraçao desse abuso é esclarecedora, ela nao explica tudo. É importante cuidar com slogans tóxicos: filho abusado será pai abusador. Isso evidentemente nao é uma lei absoluta.

    Atençao também às profecias "autorrealizadoras": essas crianças que sao acompanhadas ou comparecem à justiça sempre se perguntam quem é o bom e quem é o mau. Por vezes os que sao pagos para ajudar sao os que vao acrescentar ao trauma, dizendo: "Você sabe, com o que ele viveu - isso diante da criança - ele está perdido!"

    É preciso que se diga que eu nao fazia ideia de quem era essa pessoa que chamarei aqui de sr. P. É com base apenas em um texto e na subjetividade de seu autor tal como expressa que apresento aqui minhas primeiras reflexoes.

    A primeira dificuldade que encontrei foi ler o manuscrito! Realmente, tive que voltar atrás muitas vezes para compreender o que estava escrito, cheguei a me perguntar se nao tinha problemas cognitivos! Isso me levou a duas hipóteses que nao sao exaustivas, nem contraditórias. Poderia ser o reflexo da própria confusao interior do autor, um tipo de caos interno ou preexistente, ou consecutivo ao encarceramento; ou poderia estar ligado ao seu nível intelectual.

    O que igualmente me surpreendeu, e que ecoa o trabalho de Françoise Perrin, psicolinguista, é que na primeira página, "A porta do silêncio que range e se cerra", há 37 ocorrências do pronome pessoal "eu" ou "mim", ou seja, há uma inflaçao do "eu".

    No conto de Eva Thomas ou de outras vítimas que contaram sua história, o "eu" nao aparece. Ou aparece de longe. As vítimas vao falar de si geralmente na terceira pessoa, como se para criar um terceiro, para tentar compreender e ter uma narraçao que as permita existir verdadeiramente.

    Ele, ele é verdadeiramente em seu mundo, e Francine Perrin, com quem falei mais tarde, quando as cópias já haviam sido feitas, disse: "O que há de extraordinário é que se tem a impressao de que é o mundo real que é irreal nele." Há uma espécie de confusao permanente e essa inflaçao narcísica e, sobretudo, esse nao sentimento de culpabilidade.

    O tema inicial era a resiliência; depois de ter lido as primeiras 80 páginas do texto, o leitor diz a si mesmo: "Nao há qualquer elemento que deixe pensar, mesmo por trinta segundos, que ele possa estar em uma dinâmica de resiliência; ou no fim, onde começa a se deprimir e a dizer coisas em que fala 'um pouco a verdade'." O leitor pode até dizer a si mesmo: "Continua, pode ser que haja um começo de embriao de alguma coisa."

    Havia muitos comentários a ser feitos no contexto em que ele fala, no fundo, um pouco mais do universo carcerário.

    Outra coisa também surpreendente é que tudo é lógico. No seu mundo próprio, tudo é lógico, e se o outro nao está de acordo, é o outro que é ilógico. Algumas vezes ele ataca seu advogado ou a própria justiça. Também se observa que o mundo onde ele está provoca a regressao psíquica. Ele diz: "Agora começo a me sentir um garotinho."

    Também é importante apontar que, no contexto carcerário, nada está disposto de forma a permitir uma elaboraçao psíquica, nao há contençao psíquica paliativa onde os pensamentos possam se elaborar, tomar seu lugar e ser analisados ou "psiquicizados". Parece só poder existir "o aqui e agora" com seus atos correspondentes.

    Tudo parece funcionar como uma câmara de eco. O sr. P. diz também que se mescla com sua mulher de uma forma bastante fusionada e é sem dúvida isso que ele vivia de uma certa maneira, nesse enclausuramento incestuoso. O que significa dizer que o casal nos capturou, fomos capturados pela fusao do casal. Ele diz: "Minha mulher e eu estávamos de acordo em que eu fizesse o que tinha de fazer."

    Estamos entre a passividade latente e a determinaçao ativa. Mas, na verdade, se vê que nao há um elo verdadeiramente construído entre o ato condenado, as vítimas implicadas e a situaçao consequente. Os elos nao sao feitos, pois ele está em seu mundo interior, longe dos rumores do mundo. "A porta do silêncio que range", aí está uma figura metonímica, e os rumores do mundo sao exteriores.

    De resto, o elo com sua mulher também mereceria ser aprofundado, pois se vê bem a fusao entre esses dois seres: uma só entidade em dois corpos, que luta diante das dificuldades da vida.

    É certo que se poderia postular que eventos traumáticos de sua infância o obrigaram a pôr em funcionamento ou manter operantes mecanismos de defesa arcaicos, e o impediram de estruturar seu pensamento e sua lógica em certos domínios.

    Nessa história de casal e de família, o que mais surpreende é esse estado de incestualidade que constitui, em minha opiniao, os sintomas da intimidade familiar. No fundo, ele está aconchegado nesse casulo que foi preparado para ele. O pai tem todo o tempo de que precisa para anular sua identidade de marido ao sacrificar um por um os ingredientes da intimidade conjugal que, de resto, nunca foi cultivada.

    No lugar de uma terapia de casal, que teria permitido uma melhor gestao da conjugalidade, da culpabilidade, da parentalidade, da pulsionalidade, ele colocou atos incestuosos destinados a saciar uma sede de excitaçao que o recurso ao alcoolismo e ao tabagismo nao pôde suavizar.

    Podemos nos perguntar a partir disso quem sao esses pais abusadores, esses pais incestuosos.

    O sr. P., a seu tempo, está no início de um trabalho psíquico sobre ele, sem um verdadeiro sentimento de culpabilidade. Ele está nessa lógica interna, um pouco fria, e que produz um arrepio na espinha!

    Quando li esse diário do sr. P. - havia feito, entao, uma revisao de literatura sobre os pais abusadores ou sobre autores de agressoes intrafamiliares, ou ainda sobre suas características clínicas ou psicopatológicas - o que me surpreendeu foi a escassez de pesquisas sobre o assunto.

    Essa falta, creio, é preocupante em si, trata-se de um elemento a ser debatido. De resto, os esforços financeiros do corpo social para fundar estudos clínicos e epidemiológicos sao igualmente muito fracos nesse domínio.

    Além disso, eu desconfiaria das tipologias de agressores sexuais, pois, em minha opiniao, podem ser reduzidas para um público que procure estereótipos. Nao creio que haja retratos falados reducionistas ou, se houvesse um, conduziria inevitavelmente a uma "psiquiatrizaçao" sumária ou simples delaçao. De resto, autores como Jean Michel Darves-Bornoz17 ou Claude Balier18 deixam claro que os autores de incestos nao constituem verdadeiramente um grupo clínico homogêneo e que há diferentes formas de perversoes, até elementos de neurotizaçao.

    Uma obra notável, Questions d'inceste, acaba de ser publicada (2005, Odile Jacob). Os autores, Ginette Raimbault, Luc Massardier e Patrick Ayoun - que eu conheço bem e que dirige o centro adolescente em Bordeaux e no hospital Charles-Perrens - tentaram abordar diferentes questoes e evidentemente se viram diante da questao do agressor incestuoso: lá também se veem identidades desorganizadas nos pais incestuosos, sedutores e variedades clínicas bastante diferentes.

    Encontram-se, por exemplo, agressores que apresentam antecedentes de traumas com maus tratos ou outra carência educativa. Com bastante frequência nao há mentalizaçao desses traumas, nao houve trabalho de luto, trabalho de cicatrizaçao e fica uma espécie de lacuna identitária. Em outros, é a clivagem que é posta no lugar e, em todo caso, tudo lá parece existir para evitar uma ferida narcísica.

    Pode-se colocar a questao da culpabilidade.

    Com bastante frequência, percebemos que nos "incesticidas" ou nos incestuosos nao há verdadeiramente culpabilidade senao por si mesmos. Se eles se sentem culpados, é de ter alterado sua própria imagem e poderem ser assemelhados a um pedófilo ou delinquente sexual. Aí está a culpabilidade deles! Percebe-se, entao, a extensao do trabalho a ser feito.

    Logo, vamos nos recordar de que ajudar uma criança a crescer é auxiliar seus esforços de separaçao e individuaçao, de que a linha divisória entre pais nocivos, perigosos e pais "suficientemente bons" é muito imprecisa.

    Gostaria agora de abrir um pequeno parêntesis "inglês" a propósito de "Good enough", que é traduzido em português por "suficientemente bom ou boa". Bem, essa nao é, na verdade, a traduçao! Lembro-me de quando estava nos Estados Unidos. Alguém falava sobre um problema de saúde de sua mae, quando o perguntaram: "Como vai sua mae?", "Good enough" foi a resposta, o que queria dizer "Nao está terrível", ou seja, "em estado aceitável". Nao é exatamente o que se diz na traduçao "suficientemente boa".

    Entao a questao se coloca: como ser pai quando nao se sepultou em si uma mae ou um pai e quando as delimitaçoes estao ausentes?

    Assisti a uma conferência no Iowa, Estados Unidos, sobre uma comparaçao que fora feita entre cinquenta famílias tradicionais e cinquenta famílias ditas modernas. Famílias modernas sao famílias em que o pai participa nos cuidados dos filhos no mesmo nível que a mae. O que quer dizer que ele pode tomar banho com a criança, lhe dar mamadeira, pegá-la no colo... Um seguimento desse estudo ocorreu durante dezessete anos.

    Em novos pais de famílias ditas "modernas", nao se viu nenhum caso de incesto. No outro grupo amostral, havia por volta de 15%.

    Isso traz um problema sobre a prevençao. Isso quer dizer que, no fundo, mais contatos presentes, atentos à criança podem ser um bom elemento de prevençao, e se falamos em resiliência, falamos de "tutores de resiliência".

    O que se constata em pessoas que serao tutores de resiliência? É o que disse Jacques Lecomte19, em Guérir de son enfance, sao pessoas que manifestam empatia e afeiçao, que se interessam prioritariamente pelas características positivas da pessoa, que dao liberdade de falar e de se calar, que nao se desencorajam diante dos fracassos aparentes do outro, que respeitam o percurso de resiliência do outro, que facilitam a estima de si e do outro, que associam o elo, necessidade de afeiçao, e a lei simbólica, a saber, as necessidades de limites; e essas sao pessoas que evitam, sobretudo, as frases "gentis" como "Esqueça tudo isso! Nao vamos falar mais disso!"

    Diferentemente das neuroses, que funcionam principalmente de maneira dinâmica (conflitos e mecanismos de defesa), como escreve Michel Faruch: "As perversoes sao tributárias, devidamente, de uma economia arcaica baseada sobre a descarga pulsional e o primado do princípio do prazer." Sem retornar às noçoes dadas por Freud, creio que, como recentemente escreveu Serge Lesourd20, "nao é a psicanálise que interdita as formas perversas do gozo, ela mesma lhes deu um tipo de status social. A psicanálise nao interdita uma forma de gozo, nem a homossexual nem outra - com exceçao das do gozo pedófilo - pois elas tocam no que há de mais profundo da destrutividade inerente ao homem. Nao, a psicanálise simplesmente impoe o limite de todo gozo."

    Em uma obra magnífica, L'homme sans gravité21 (o subtítulo é: "Gozar a qualquer custo"), Charles Melman discute com um colega, Jean-Pierre Lebrun. E os dois falam de uma nova economia psíquica. É muito importante, pois passamos de uma cultura fundada sobre a repressao, logo, a neurose, a uma outra que recomenda a livre expressao e incita à perversao. A saúde mental surge hoje em dia da harmonia, nao mais com o ideal, mas com um objeto de satisfaçao.

    Assistimos a uma mutaçao que nos faz passar de uma economia organizada pela repressao a uma economia psíquica organizada pela exibiçao do gozo.

    Nao mais é possível abrir uma revista, admirar personagens ou heróis de nossa sociedade, sem que sejam marcados pelo estado específico de uma exibiçao do gozo. É bem aquele "gozo sem entrave!" de que ouvimos falar já há alguns anos.

    É bem claro que o conceito de resiliência contribui para mudar o ponto de vista do clínico e, portanto, sua prática: a partir do momento em que se considera o sujeito nao somente com seu sofrimento e suas patologias eventuais, mas igualmente com seus recursos e suas competências.

    E, no fundo, Michel Faruch nao diz nada mais quando escreve: "É preciso que mantenhamos vivas e eficazes as categorias clínicas que nos fornecem grades de leitura necessárias para situar, compreender, entender, escutar um discurso que nos parecerá sempre aberrante, centrado sobre a problemática do desafio, da negaçao, do delito. Para o ser, trata-se de habitar suas falhas, suas fissuras, suas fraturas, cicatrizes, confrontar-se com sua impossibilidade de completude e absoluto para abrir as portas de sombra, as zonas interiores obscuras e ir em busca dessa confrontaçao tao difícil consigo mesmo."

    E crer, entao, na sua própria criatividade, em um segundo nascimento e sem dúvida se apoiar sobre seu ser essencial, sua identidade profunda, essa interioridade profunda que possibilita, como adora dizer Boris Cyrulnik, "retricotar as malhas do tricô de sua vida."










    * Médico internista, psicoterapeuta, professor de terapêutica, responsável pelo diploma da Universidade de Patologia da Oralidade (Bordeaux 2).

    Endereço para correspondência:
    Gérard Ostermann
    E-mail: gerard.ostermann@wanadoo.fr

    Recebido em: 13/11/2010
    Aceito em:20/12/2011

    1 Trata-se da obra coletiva de Boris Cyrulnik, Gérard Ostermann, Francine Perrin, Christian Sallenave, Et alors papa? Question de résilience: récit biographique et analyses, éditions Bastingage, collection "Témoignages et point de vue", outubro, 2004.
    2 Françoise Héritier, antropóloga, autora de Les deux soeurs et leur mère. Anthropologie de l'inceste, Odile Jacob, 1994.
    3 Emmy Werner, psiquiatra americana, especialista em primeira infância (com John Bowlby) que, na década de 1990, utiliza o termo de "resiliência".
    4 Eva Thomas, Le viol du silence, Paris, Aubier, 1986.
    5 Le sang des mots : les victimes, l'inceste et le droit, Paris, Desclée de Brouwer, 2004.
    6 Jean-Claude Guillebaud, jornalista, escritor, editor. Autor de Le principe d'humanité, Seuil, setembro de 2002.
    7 Maurice Godelier, grande antropólogo contemporâneo, especialista em sociedades da Oceania.
    8 Boris Cyrulnik, Mémoire de singe, parole d'homme, Hachette Littérature, 1988.
    9 Si les lions pouvaient parler. Essais sur la condition animale, obra coletiva organizada por Boris Cyrulnik, Gallimard, collection « Quarto », 1998.
    10 Na mitologia, se diz que Laio, rei de Tebas, foi o primeiro entre os gregos a trazer o amor aos rapazes
    11 Crisipo em grego quer dizer "Cavalo de ouro" e conta-se também que Crisipo, atormentado pela vergonha, se enforca.
    12 Paul-Claude Racamier (1924-1996), psiquiatra e psicanalista, autor de diversas obras, entre elas, Le génie des origines, L'inceste et l'incestuel...
    13 ARSINOE: Autres regards sur l'inceste pour ouvrir sur l'espoir.
    14 Gregory Bateson, antropólogo americano, considerado o fundador da escola de Palo Alto, autor de La peur des anges, Une unité sacrée, La nouvelle communication...
    15 Palo Alto, pequena cidade americana, próxima de Sao Francisco, designa um grupo multidisciplinar de cientistas (psicólogos, linguistas, sociólogos, etc.), especializado em comunicaçao. Esse grupo defende terapias sistêmicas breves.
    16 No original incestueur, trocadilho com as palavras inceste (incesto) e tueur (assassino, matador). (N. do T.)
    17 Jean-Michel Darves-Bornoz é psiquiatra, psicanalista, pesquisador na universidade de Tours. Ele publicou Problématique féminine en psychiatrie, pela Masson, 2000.
    18 Convidado do último Encontro "Perversoes". Especialista em psiquiatria e agressoes sexuais no meio carcerário.
    19 Jacques Lecomte é doutor em psicologia, encarregado do curo de Paris X, secretário geral do Observatório internacional da resiliência, autor de Guérir de son enfance, pela Odile Jacob, 2004.
    20 Serge Lesourd é psicanalista, professor de psicologia em Estrasburgo, autor de muitas obras consagradas à adolescência: La construction adolescente, 2005; Adolescence... Rencontre du féminin, 2002; Violente adolescence, 1998. Todos esses livros foram publicados há muito tempo.
    21 L'homme sans gravité: jouir à tout prix, discussoes de Charles Melman, psiquiatra e psicanalista, com um de seus colegas, Jean-Paul Lebrun. Publicado pela Gallimard, coleçao "Essais", 2005.

     

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