ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2011; 13(2):146-168



Artigos Especiais

Anorexia: domínio familiar ou família sob domínio1

Anorexia: Family domain or family domained

Gérard Ostermann*

 

 

"O osso, sou eu.
A gordura, a pele e tudo que está grudado em cima
é o exterior, é a maldade, o mal.2"
D. Aubrey, paciente anoréxica

Certa tendência em terapias sistêmicas da anorexia nervosa levou à crença de que a família é intrinsecamente culpável pelos transtornos da conduta alimentar. Hoje se reconhece que nem todas as famílias sao disfuncionais, mas é certo que pacientes advindos de famílias perturbadas têm a tendência a evoluçoes pouco favoráveis, e esse fator tem tanto mais peso quanto mais jovem é o paciente anoréxico. Em vez de adotar uma postura culpabilizante, nos parece essencial considerar os pais como aliados no tratamento, valorizando as competências familiares em todas suas etapas. A vivência traumática dos pais ligada à separaçao nao é eliminada quando desaparece a causa, e a abordagem terapêutica deve levar em conta a dimensao conflitual subjacente.

Algumas ideias relacionadas à anorexia se destacam:

  • a alimentaçao é, com frequência, um ponto sensível por três geraçoes;
  • a anorexia foi a melhor soluçao encontrada pela pessoa para tenta sair de seu impasse; trata-se de um tipo de "greve de fome". A doença, em uma atitude de recusa, é a última defesa de uma identidade ameaçada de entrar em colapso;
  • a anorexia é uma forma de oposiçao quando nao se sabe dizer "nao"!
  • o que mudou nos últimos 20 anos foi o fato de se levar em conta o sintoma (a toxicomania do jovem) e o entorno familiar.
  • há, no entanto, um paradoxo: de ano em ano, e cada vez que se demonstra um pouco melhor que as famílias nao sao patogênicas e nao têm nada de particular se comparadas a uma populaçao controle, surgem cada vez mais estudos que mostram que é trabalhando com a família que se têm as melhores chances de um resultado favorável.


  • A anorexia nervosa com certeza sempre existiu, mas a exposiçao social dos transtornos da conduta alimentar remonta ao final dos anos de 1960, momento em que a imagem da mulher mudou radicalmente (com a açao das mídias visuais). A anorexia é uma pedra no sapato dos médicos na medida em que é difícil fazer surgir uma visao do todo, que nos permita ajudar essas pacientes com seu sofrimento.

    Dessa forma, a anoréxica se desliga do mundo de uma maneira brutal, e esse corte é extremamente desestabilizador para seu entorno. As anoréxicas de repente se ocupam totalmente de outra coisa. Nesse momento específico da adolescência, uma preocupaçao se apossa de suas vidas, e elas a traduzem nesse sintoma, o qual ocupa todo o espaço.

    Para os pais, o mais doloroso é ver se instalar uma situaçao contra a qual nao podem fazer nada: sua filha está cercada por uma barreira, em isolamento, pois sua anorexia nervosa é testemunha de um sofrimento físico e psíquico. A sintomatologia é visível pela família na hora das refeiçoes, podendo ser assustadora. Tudo é ensaiado: a polidez, o punho fechado sobre a mesa, a indiferença simulada, a solicitude, mas todas essas tentativas sao ineficazes. A filha nao chega a restabelecer um comportamento natural e simples diante da alimentaçao. A incompreensao mútua torna a comunicaçao cada vez mais complicada. A morosidade, a inquietaçao, a desolaçao, a depressao invadem a cena familiar. Há algo perdido, que parece irrecuperável.

    A anorexia, essa patologia complexa, se expressa justamente por uma crise nos elos: o elo entre o corpo e a psique em primeiro lugar, pela destruiçao progressiva de um invólucro carnal que rapidamente vem ostentar os estigmas de um sofrimento ignorado.

    Como propoe com muita justeza François Galinon3, a anorexia nervosa da jovem é uma interrupçao na imagem. A partir do início da doença, os elos afetivos se encolhem cada vez mais em volta da família. As jovens nao saem mais, trabalham. Passam horas no quarto, sentadas, absorvidas em seus cadernos. Nao veem o tempo passar, o dia progredir e que, pouco a pouco, a vida nelas vai se interrompendo. Em sua cabeça, nao há mais imagens: nao mais sonham sobre seus livros. Nao estao mais na vida, e sim na sobrevida, e a sobrevida nao é a vida.

    A anorexia nervosa parece, neste início de século, ter encontrado um sucesso midiático. Numerosos programas de televisao sao regularmente consagrados a ela; neles o espectador atento pode perceber o estabelecimento de uma versao psicossociológica da patologia onde o qualificativo "nervosa" é contestado em favor de uma definiçao mais identitária. O corpo médico, psiquiátrico, psicológico, forçado a constatar sua impotência diante da valência enigmática da afeiçao, abandona seu lugar. O transtorno se organiza: as adolescentes vao à televisao testemunhar sua experiência, dando início a uma promissora carreira de Miss Anorexia em uma turnê por colégios; outros programas se ocupam diretamente de jovens em dificuldade através de seu serviço telefônico4.

    O todo é agrupado sob o elegante termo de novas adiçoes, algo como um "buraco negro" no céu da consumaçao, em que P. Jeammet denuncia a preocupaçao em promover uma negaçao do patológico pelo cultural. Seria a anorexia nervosa, como o era a histeria no século passado, o terreno de escolha para o encontro de uma patologia com uma sociedade em uma figuraçao recíproca? Seria ela o aspecto extremo de uma busca pelo corpo ideal? Se comer é um ato social (comer é falar com os outros, diz Brillat-Savarin), na anoréxica há qualquer coisa que nao quer falar, a palavra está como que amputada.

    A anoréxica exibe seu corpo, o expoe, o joga em relaçao. Há até sites na internet que fazem a perigosa promoçao da anorexia (pro-ana). E ao mesmo tempo, por um paradoxo que nao deixa de nos surpreender, a anoréxica se dessolidariza de seu ser material, recusando-se a satisfazer suas necessidades mais elementares, tendendo à negaçao da realidade de seu corpo-prisao. Desde que as maes sao, pelo exemplo, contaminadas pelo medo da obesidade e sofrem a pressao médica-dietética, toda a sinfonia da oralidade se infiltra. A alimentaçao em sua necessária cotidianidade, absorvida por cada um de nós, repentinamente reveste a máscara de uma inquietante estranheza pelo emaranhamento orgânico do corpo e do alimento, quer seja sob o selo dos hábitos saudáveis, quer na secreta irrupçao das pulsoes - e sao Histórias sem fome nas quais a alimentaçao está ausente (anorexia) ou por demais presente (bulimia); histórias que parecem nao ter fim, pois sua evoluçao será por vezes longa, imprevisível, em recaídas, se delongando por muitos anos.

    O importante na questao dos transtornos da conduta alimentar é que há infinitos pontos de vista possíveis. Com efeito, é um conjunto de signos e sintomas. No começo, nao se trata verdadeiramente de uma doença privarse de comer ou comer muito, mas acaba por tornar-se, pois o corpo é atingido, e o que conta, no final, é a pessoa que o vive.

    Para Pascal Quignard, a anorexia é a própria anacorese. O autor lembra-se de uma enfermeira, em sua infância, que preferia ler a cuidá-lo. Privado de uma afeiçao que ela dedicava mais às palavras que à criança que ele era, tornou-se anoréxico: "Súbito minha garganta se fecha, evocando aquelas horas em que ainda nao falava. Elas mascaram um outro mundo que sempre se furtará à minha busca. Uma espécie de suspiro seco fazia sufocar o alto do corpo. Nao mais engolia. Nada era mais sofrido que um garfo ou uma colher se aproximando de meus lábios.

    A atraçao que exercem sobre mim os livros é de uma natureza que será por toda vida misteriosa e mais imperiosa que pode parecer a outros leitores. Vida, vida, repouso o velho livro colorido lá onde o peguei - desvio-me do balcao do livreiro. Nao posso mais falar."5

    Anorexia e afonia, esclarece Isabelle Meuret, sao as duas mamas do autor, que anuncia logo de início sua desconfiança com relaçao aos alimentos e às palavras. Um pedaço da maça original segue entalado no centro de sua garganta.

    Pascal Quignard propoe ainda em Vie secrete6 sua própria definiçao de anorexia:

    "Oregô significa estender a mao, implorar, visar, matar.

    A anorexia se recusa a matar, pegar, engolir, orar.

    A anorexia recusa o seio, repele o sexo, rejeita a religiao, se aparta da sociedade. A anorexia é a própria anacorese."

    A aproximaçao entre anorexia e ascese parece agora mais evidente. De fato, as duas condutas consistem na privaçao voluntária de um prazer ou de um bem, de forma que essa privaçao é a fonte mesma de potência. Trata-se, para o anoréxico, de criar um vazio entao vivido como recinto de plenitude: "A ascese seria uma cultura de aniquilaçao ou um esforço por respirar no vazio sem produçao específica de subjetividade"7.


    DA BOCA A GARGANTA

    A anorexia, como a bulimia, é algo que se passa na boca e, como Colette Colombe8, por muito tempo tive a sensaçao de que a compreendia por meio do fato de fechar a boca; sempre fui sensível ao fato de que, para curá-la, é necessário reaprender a morder, a degustar. Ou em um em cada dois casos relativos ao transtorno alimentar, houve uma agressao ao corpo feminino. A zona que se encontra no nível da boca teve dificuldades no nível amoroso. A garganta é o fundo da boca e a zona com a qual cantarolamos. É também através da garganta que sentimos que vibramos quando lemos em voz baixa. Nao é, portanto, surpreendente que essa zona vibre na intimidade, que ela seja de natureza amorosa ou da intimidade de si com si, a Escritura faz igualmente viver essa zona. É o local por onde se engole, mas também o local onde se sente o ser mais íntimo. O íntimo é aquilo que nao se diz e que lá vibra (é o que se vê em si e nao se diz) e é também aquilo que se compartilha na vida amorosa. Casais que atingem uma intimidade duradoura sao capazes de acolher o incompartilhável, de respeitar o mistério do outro e de conhecêlo com coisas que ele, ou ela, nao diz. Há nisso um elo com a palavra, assim como com o silêncio.

    O que se passa quando alguém escolhe exprimir sua revolta por meio dela? O que significa nao poder ter intimidade, nao poder guardar?

    No trajeto que permitirá sair da anorexia ou da bulimia, há a paciência, a entrada em um tempo ao qual se chega ao guardar pacientemente e conservar no interior. O íntimo é também o invisível: isso nao se diz, isso nao se vê! A garganta é a zona até onde chega a visao quando se olha para dentro da boca. Para além nao se vê mais. É talvez por isso que ela vem simbolizar aquilo que há de mais interior dentre o que há de interior; aquilo que em nós há de mais íntimo é de fato algo que nos poe em contato com o fora, que nao é visível, que nao é nem dentro nem fora, mas uma zona de passagem, que nao está de todo escondida, mas sim em contato, com si e com o outro, como a pele em certo sentido (como a pele da carícia).

    O fim do caminho da cura é poder ter uma intimidade, poder estar só de modo tranquilo e o prazer de partilhar uma intimidade com outros. Para doxalmente, quando se entra em um transtorno alimentar, cria-se uma intimidade, pois o transtorno permanece por muito tempo em segredo. É algo que a pessoa vive só, como se a ausência de intimidade que às vezes existe, a ausência dessa parte invisível de si que está no fundo da garganta, fosse preenchida por uma forma clandestina que é um substituto da intimidade, mas talvez também um início.

    É isso que faz poder pensar que entrar em um transtorno alimentar é ter alguma coisa em si e é, portanto, algo bastante precioso. Inicialmente nao é, por necessidade, algo de tao patológico. Afinal, o jejum é uma prática milenar para o ser humano, já que, quando se jejua por dois ou três dias, entra-se em um estado de vigilância e leveza diferenciado, que é utilizado no domínio do sagrado. Mas, em seguida, vem o ataque ao corpo...


    AS REFEIÇOES EM FAMILIA

    No centro da vida quotidiana, as refeiçoes fazem parte do ritmo familiar, refeiçoes que se querem sempre agradáveis e calorosas, que por vezes se tornam amargas, mas que permanecem sendo uma realidade fundamental de nossa vida juntos. Por que a refeiçao é tao importante? Como vivê-la da melhor forma em família? Que lugar a alimentaçao tem em nossa vida cotidiana?

    A alimentaçao é parte integral do mito familiar, quer dizer, do todo das crenças implícitas partilhadas por todos os membros de uma família, que a veem como única e singular, dando forma aos elos e tecendo a trama intersubjetiva entre cada sujeito se reconhecendo como pertencente àquela família. A alimentaçao é um dos vetores mais importantes da transmissao ao seio da família; ela solicita aquilo que é da ordem da sensaçao e da percepçao, aquilo que poe água na boca ou desperta a náusea, aquilo que suscita inveja ou desgosto... Ela está no centro da instauraçao das relaçoes precoces com a mae, participa da propagaçao de um conjunto de relaçoes complexas que acompanham o desenvolvimento da criança e sua descoberta do mundo.

    A partir do momento em que se sabe cozinhar, ou quando o fogo é dominado, a humanidade começa. E a refeiçao é, por sua vez, desde o início, a refeiçao para a sobrevivência, para a vida, para se ter energia, mas também a refeiçao no sentido sagrado, pois os ritos religiosos de sepultamento marcam o início da humanidade ao mesmo tempo em que o fogo, ao mesmo tempo em que a música.

    O comer nao é próprio aos humanos, entao qual é a diferença entre homens e animais? Há já de início um ponto comum: o comer em grupo, e em família; a relaçao mae-bebê se vê também entre os animais. A diferença é que os homens falam, e a refeiçao é igualmente um local de palavras: a boca é, entao, convocada ao mesmo tempo pelo gosto do que se come e pelo das palavras e da fala. Há geralmente uma fala que acompanha a transmissao da alimentaçao, isso se vê desde a infância, desde a relaçao mae-bebê. A mae já tem o instinto de cantarolar ou cantar, logo após ter alimentado e antes de adormecer o filho.

    No ser humano, há um duplo movimento no ato de comer: há aquele que dá o alimento e aquele que o recebe. Isso é extremamente importante, pois é um ato de troca e a estreia simbólica da troca. Também se encontra na dimensao sagrada, pois a simbólica de dar e receber é sagrada desde o início e a boca é o local desse encontro.

    Isso começa já no início, na Bíblia: nao contei com precisao, mas lá se encontra o verbo "comer" com mais frequência que o verbo "rezar", por exemplo. Nao se devem tirar conclusoes apressadas e dizer "nao se reza na Bíblia!" No entanto, isso quer dizer que a Bíblia situa de início seu propósito em um ato vital. Tudo o que vem depois está enraizado, de alguma forma, na mais vital de nossas maneiras de estar no mundo, a mais biológica, de certa maneira, e nao devemos nos surpreender com o fato de Deus falar logo de início daquilo que se deve e daquilo que nao se deve comer. Já no capítulo II, face a face com Adao (Eva ainda nao existe), Ele diz: "Tu podes comer de todas as árvores do jardim; mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, tu nao podes comer." É a serpente que chama nossa atençao sobre o "tu nao podes comer de um certo fruto", bastante misterioso, mas Deus diz no início: "Tu podes comer de todas as árvores" e creio que engaja Adao na experiência muito humana de experimentar tudo: tudo está disponível, pode-se experimentar... Logo, esse convite à experimentaçao, se há qualquer coisa da ordem do conhecimento, seria algo sobre estar aberto a tudo que há ao redor de si para esse Adao que descobre o mundo? Creio que Deus engaja Adao nesses tipos de experiência: a alimentaçao me é dada, mas talvez nem tudo possa ser absorvido neste momento.

    E faltou, creio eu, no Começo, um diálogo entre Adao e Deus: chegará um tempo em que esse fruto do conhecimento poderá ser consumido, em que ele estará maduro e eu mesmo estarei suficientemente maduro para colhê-lo? Mas o diabo, a serpente, sem demora dirá: "Nao, nao, este Deus, ele te recusa tudo." Entao é possível que, se Deus o proíbe, é por haver um tempo mais favorável, em que isso poderá ser considerado, mas nao se come tudo de súbito. Tudo.

    A ideia de nao poder comer tudo de súbito sublinha a questao da insaciabilidade, que é um dado humano por excelência: querer tudo de uma vez, ou entao nada, nunca. E esse modo de pensar as coisas no imediato acompanha a avidez de engolir; logo, desde a infância, é importante disciplinar essa força, essa força que será verdadeira para o comer, mas que será também verdadeira para o "comer com os olhos", para o devorar o outro. E ao mesmo tempo, é bom aprender a ter essa força, a nao a impedir completamente, mas é preciso dominá-la.

    É o papel dos pais fala-se aqui de refeiçoes em família justamente indicar até onde se pode ir, impor limites. Pois quando é chegado o tempo de reter, a refeiçao em família é favorecida; o tempo em que tudo no mundo será servido, se espera, se fala. A latência, essa possibilidade de suspender, faz parte da experiência da refeiçao: nao se deve se precipitar como um selvagem sobre a bandeja sem precauçao, também se aprende a usar a colher, a faca, e tudo isso é uma arte na qual a fala terá seu lugar. Entao nao se trata apenas de incorporar a refeiçao, trata-se também de interiorizar. É o mesmo movimento de introduzir no interior, mas com uma certa latência.

    Comer e falar, é fazer duas coisas de uma vez, e essa alternância de dois funcionamentos cerebrais é extremamente interessante. Mas nao é tao fácil para os menores se aproximar da bandeja e se interessar pelo que se diz, pelo tempo a se respeitar. A atmosfera da refeiçao com certeza dependerá do entendimento entre o casal e de sua capacidade de ser pais ao mesmo tempo em que sao um casal o que é na verdade muito difícil, pois se trata de dar a palavra às crianças e se centrar em uma conversa de adultos. Logo, poder dialogar e falar junto é algo que depende muito da calma e dessa presença parental: talvez hoje seja preciso repetir por que nao se deve comer vendo televisao, por exemplo. Eu diria, com a experiência de cuidar de pessoas que têm dificuldade em sua relaçao com a alimentaçao, que é recuperando a arte das palavras, o gosto das palavras, da palavra correta, da palavra simples ou da imagem certa é, muitas vezes, o que uma conversa simples pode prover que se recupera o gosto da alimentaçao. Poderia ser traduzido por reencontrar o gosto pela comida (o gosto por amar)9.

    A boca é, de qualquer forma, o local central de nosso corpo... É, ao mesmo tempo, o local pelo qual se fala, pelo qual se canta, pelo qual se beija e pelo qual se come: toda nossa energia vital passa por esse local tanto para dar quanto para receber. E é, portanto, muito natural que se associem o comer e o falar. A fala, de fato, é um ritmo que corresponde bem à assimilaçao digestiva, ao fato de ter seu tempo.

    A casa, as refeiçoes em família, nao é, por acaso, a aprendizagem da democracia, do respeito e das diferenças? Se se permite que uma criança coma todos os dias a mesma coisa, prefigura-se uma atitude geral na vida em seguir: de nao ir em busca de coisas desconhecidas, de nao se forçar a buscar algo de diferente daquilo que já se conhece. É fato que hoje em dia as famílias sao, com frequência, fragmentadas; nem sempre estao todos juntos ao mesmo tempo, há pais também que criam sozinhos seus filhos: como manter, nesse novo contexto, o ritual da refeiçao em família? Em todo caso, como fazer para que se transmita um gosto pela palavra, ao redor da mesa, de rituais de alimentaçao partilhada?


    "ANORÉXICOS-BULIMICOS, APERTEM SUAS CINTURAS!"

    Todo encontro com um doente é encontro com um sofrimento que se buscará explicar somente em um segundo momento. Entretanto, precisamos compreender para nao nos perdermos, mesmo que saibamos que compreender e saber nos distanciam da escuta e da intersubjetividade do encontro. Lembro-me da frase de Dolto: "Nao compreendia nada, mas era toda ouvidos." Quando, além disso, se constata que basta ter uma teoria sobre a anorexia ou a bulimia para que os pacientes a ponham em dúvida, é entao que nao se compreende nada.

    A aplicaçao dessa ficçao a uma prática com os pacientes que sofrem de anorexia ou bulimia nos parece tao mais exemplar quanto mais próximos estamos da interface entre o somático e o pulsional. A violência desse pulsional e a irreprimível repetiçao do sintoma nos paralisa logo de início e nos leva imediatamente a tentar compreender qualquer coisa, malgrado a urgência de agir. O problema da prática de uma teoria sobre o corpo se resume em duas palavras: narcisismo e representaçao os dois narcisismos, do observador e do observado, e as representaçoes de sua intersubjetividade total.

    Malgrado suas expressoes singulares, os comportamentos sao os mesmos: nao comer, esvaziar-se a qualquer custo daquilo que foi absorvido e ocultar essas práticas. Sao raras as palavras que falam do que é experimentado e motiva esses comportamentos; sao palavras mentirosas quando se trata de justificar os fatos observados. Nossa época é bulímica. Nosso ritmo é frenético. Nosso tempo é destrutivo. Passamos de uma sociedade de raiz a uma sociedade de fluxo, com uma amplificaçao desmesurada em termos de mobilidade, do invisível, do insaciável, do virtual. Essa sociedade de fluxo nos conduz a um estado de precariedade onde nao há mais consenso sobre os valores que nos unem, nos conduz a uma posiçao de desencantamento plena de desvinculaçoes. Uma das preocupaçoes atuais é poder religar.

    O adolescente é, entao, o herdeiro de uma ruptura a ser considerada como um fato social fundamental. "Ser jovem" nao tem, provavelmente, o mesmo sentido que tinha cinquenta anos atrás. Os universos limitados, fechados e coerentes onde se reproduziam os jovens provindos de meios populares se romperam. A interrogaçao identitária torna-se cada vez mais atual. E sabe-se bem que a adolescência é a travessia de dúvida entre as ligaçoes com os outros e a identidade. Como todos os outros, o adolescente se confronta com uma construçao identitária maior: ser parecido sem ser idêntico, se afirmar como singular sem romper os elos com os seus, aqueles a quem ele está ligado, tornar-se outro sem deixar de ser o mesmo. Esse período da adolescência oferece, entao, uma dupla necessidade: religar-se e desligar-se. Os mais frágeis, mas nao necessariamente os de menos potencialidades, exprimem o peso dessas duas angústias humanas fundamentais: nao ser visto e considerado, sentindo-se ameaçado de abandono e desinteresse; fundir-se com aquilo que lhes falta, ser um só com um outro que logo se torna uma angústia de intrusao. "Tu nao me olhas, eu nao existo"; "Tu me olhas, o que queres de mim?" Nos dois casos, o elo com o outro, necessário para que se seja a si mesmo, tem também esse poder de tornar a si mesmo estranho, do que constitui representaçao extrema a loucura. Falsa contradiçao, mas verdadeiro paradoxo, no centro da organizaçao da personalidade humana: "É disso que preciso, pois o preciso, e na medida em que preciso, é isso que ameaça minha autonomia incipiente", nos diz Philippe Jeammet. O elo de dependência nao se elabora por meios intrapsíquicos. Esse desejo pelo outro pode se transformar em um poder sobre si intolerável concedido ao outro.

    É isso que traduzem, de forma um pouco metafórica, expressoes comuns como "tu és uma enxaqueca", "tu me enches", "tu me incomodas", onde se vê a expectativa quanto ao outro se tornar um medo de invasao que os transtornos do comportamento (em particular a toxicomania) e as passagens ao ato buscaram dissimular como o falso domínio da situaçao que parecem oferecer. O elemento comum central a essas angústias é o medo de nao ser mais si mesmo, de nao se pertencer mais. A expressao-chave é "perda de controle", o medo de ser ou ficar louco é a expressao mais forte disso. Mas também pode tomar formas mais atenuadas onde se exprime sempre o mesmo medo de nao ser mais o senhor de si mesmo, o senhor em si mesmo. Isso vai da crise de pânico à perda do reconhecimento de si no espelho, passando por todas as outras crenças mais centradas sobre tal ou tal aspecto de seu corpo que é preciso mudar a qualquer custo para se sentir novamente como si mesmo, se sentir bem em sua pele. É claro que a gravidade e a morbidade dessas situaçoes sao bem diferentes umas das outras. Mas, em graus diversos, todas elas participam desse medo da passividade, de sofrer e, logo, de nao mais definir seus limites, sua identidade. O medo de ser louco e, por reflexo, o medo da loucura dos outros sao a representaçao extrema dessa ameaça de nao ser mais si mesmo e, afinal, de nao mais se pertencer.

    A defesa do território se torna, entao, para o Eu, uma tarefa emocional vital. Esse espaço nao é mais somente geográfico, mas diz respeito igualmente, e mesmo essencialmente, para o adolescente, à representaçao dele mesmo e àquela que ele imagina que os outros tenham dele. A anorexia nervosa, no nível social, é a perfeita vitória do sistema, pois ele controla tudo: pensamentos, afetos, relaçoes.


    O DOMINIO ESTA EM RESSONANCIA COM A IDEIA DE CONTROLE EM NOSSA CULTURA

    Essa estereotipia nos leva a pensar que a anorexia nervosa responde a uma lógica interna que, como a de todo sintoma psíquico específico - obsessao, fobia ou fetichismo - pode ser definida em termos de metapsicologia freudiana. O sintoma, aqui como alhures, deve cumprir uma funçao econômica na dinâmica pulsional e no conflito interno que opoe o Id ao Superego e ao ideal do Ego. É sem dúvida a complexidade da dinâmica do sintoma que o torna opaco. Acredito que, entre as diferentes facetas da problemática anoréxica, há uma que predomina, a do domínio.

    A crise anoréxica com frequência se estabelece na adolescência, quando, no nível da apropriaçao subjetiva da sexualidade adulta, se instala um paradoxo: companhia impossível, solidao impossível. Essa problemática do "nem um nem o outro" é testemunha de um trabalho de negativaçao que remaneja a realidade psíquica. É essencial entender esse paradoxo para criar uma situaçao terapêutica em que a paciente possa se sentir real a partir desse retorno ao nada que é a anorexia.

    Uma das expressoes que nos ajudam a qualificar a adolescência é a de um trovao em um céu sereno, mas essa imagem só dá conta do processo de maneira imperfeita. A adolescência surge, em verdade, sobre um fundo contínuo e se desenvolve em relaçao a esse fundo. É, naturalmente, em relaçao ao meio familiar, em reaçao a, mas também sobre o apoio desse meio, que o momento adolescente se desenrola. Mas é sobretudo na continuidade interna e em referência às capacidades de tolerar uma descontinuidade dos investimentos e um certo grau de distorçao narcísica que se elabora e joga a ruptura da adolescência. A expressao popular "cortar o galho onde se está sentado" simboliza o conjunto dos movimentos de ataque aos quais os adolescentes se entregam deliberadamente. Esses movimentos de ataque sao particularmente irritantes para os pais, mas sua funçao essencial é dupla: atacar para distanciar ou manter à distância e atacar para testar a solidez da estrutura parental. Pois nao há provavelmente nada mais desorganizador para um adolescente que constatar que seus ataques de fato destroem a coerência paterna.

    Esse duplo movimento necessita uma qualidade fundamental da relaçao: o adolescente, como, de resto, a criança menor, precisa testar a realidade do objeto, realidade que nao se confunde absolutamente com seu caráter vivo. Há entao situaçoes - é o caso das anorexias - nas quais o objeto é reconhecido vivo, mas sem espessura, sem resistência nem coesao. A separaçao entre o adolescente e o meio familiar é um processo que necessita a capacidade dos pais de tolerar a separaçao e a dificuldade de aceitar tal separaçao. Esse processo implica uma resistência dos pais.

    Cortar o galho onde se está sentado nao deve, portanto, ser algo natural: é preciso que seja suficientemente difícil, que o galho resista, pois ao cortá-lo, o adolescente faz certo esforço que o permite sentir-se vivo. Esse esforço é essencialmente psíquico, mas, vendo de perto, deriva fundamentalmente de processos que a criança pequena utiliza para, segundo a expressao de Freud, tornar-se o mestre de seus próprios membros.


    A HIPOTESE DE UM TRABALHO DE DOMINIO

    Ela responde em parte às questoes que propoem os enigmas encontrados pela clínica do adolescente e especificamente da anorexia. A funçao de domínio, até entao relegada ao campo da psicopatologia, da neurose de contençao ou das perversoes, deve ser levada em conta para se abordar o processo da autoapropriaçao do ego no qual a criança pequena e o adolescente necessariamente se encontram.

    A autoapropriaçao designa o trabalho pelo qual um ser humano se desenvolve apoiado por e contra os objetos, mas também integrando em seu interior, ao seio do ego e na relaçao entre as diferentes instâncias, as principais funçoes desses objetos. Esse processo engloba entao autoestima, identificaçao e os inevitáveis lutos por meio dos quais um sujeito dolorosamente acha sua identidade.

    Essa questao do domínio, de seu desvio, está no cerne da problemática anoréxica na medida em que precisamente as pacientes que sofrem dessa condiçao exercem um domínio sobre o seu entorno, mas também sobre si mesmas, sob a forma de um autodomínio comedido. Nao se pode dizer que morrem pouco a pouco? Elas nos têm sob o domínio de seu sintoma ao estarem expostas à nossa vontade de dominar tal sintoma. Há algo de muito particular nessa afronta. É como se as anoréxicas precisassem de nosso desejo para se afirmar contra ele. Outras patologias também nos confrontam com a impotência. Na psicopatia, o alcoolismo ou a toxicomania, as passagens ao ato podem responder a uma carência de nossa parte, ou ao menos àquilo que as pacientes perceberam como tal, em sua sede insaciável de serem amadas por aqueles a quem estao vinculadas.

    A passagem ao ato da anorexia, que rejeita a alimentaçao, induz o vômito, ingere laxantes e diuréticos, pode responder à menor manifestaçao de um desejo de nossa parte, que seja o desejo de impedi-las de morrer. Esse desejo testemunha um domínio abusivo sobre aquilo que lhes surge como território, o corpo. Para a anoréxica, nossa simples existência é uma agressao; a simples percepçao de nossa diferença, de nossa alteridade, é insuportável, exacerbando a patologia. Poderíamos nós ser, diante delas, um puro reflexo delas mesmas, sem um desejo? Achamo-nos presos nesse duplo entrave de acompanhá-las à morte, respeitando seu desejo (de nao comer) ou de impeli-las contra a morte ao nos opormos e desejarmos outra coisa.

    É fato que, por nao serem as mais fortes no contexto de uma internaçao psiquiátrica, elas se submetem, comem, engordam. O objetivo é apenas se privar ainda mais ao sair, mais que nunca mostrando sua capacidade de resistir a qualquer domínio. Mesmo curadas do sintoma, a vontade pode permanecer igual. O domínio diz respeito tanto à autoconservaçao como à sexualidade, tanto à pulsao de vida como à pulsao de morte. E é aí que está o problema da anoréxica: ela se arrisca a morrer para afirmar que vive; precisa do outro para negar sua dependência do outro. Prefiro, como Marie-Claire Célérier10, partir de outro dualismo pulsional, o dualismo apego/domínio, e me interrogar, partindo da etologia, sobre o destino da pulsao de domínio, como Bowlby fez a propósito da pulsao de apego.

    Nos animais, é preciso que o apego consiga se satisfazer no contato com um objeto primeiro que o reassegure e que o marque para que a pulsao de domínio ponha-se à busca de objetos exteriores de satisfaçao. O jovem assim estende seu campo de açao e, graças aos limites fornecidos por aquele que foi o objeto de apego, ele aprende a delimitar o estranho familiar, para conhecer, possuir, dominar, e o estranho perigoso, do qual fugir ou ao qual aniquilar. O domínio, por sua vez, diz respeito à autoconservaçao: apropriaçao de bens necessários à sobrevivência, defesa do território contra o domínio dos outros, e à sexualidade, para determinar o lugar do macho na hierarquia social e submeter a fêmea. É necessário à sobrevivência do indivíduo e à da espécie. Conduz ao aniquilamento dos inimigos, ao afastamento dos rivais e também à defesa dos mais fracos sob a proteçao daqueles que têm mais forte domínio. Encontra-se nessas relaçoes complexas o substrato daquilo que no homem constitui a pulsao de domínio e relaçao de domínio.

    Se, de início, o domínio está na ordem da pulsao ligado a uma sustentaçao corporal, destinada à satisfaçao das necessidades primárias, em seu pleno desenvolvimento, ela se desencarna para tornar-se domínio psíquico, domínio do sujeito sobre seu corpo e do sujeito sobre o outro. Restam, porém, pontos em comum com o que ocorre no animal. É óbvio que o domínio do objeto primeiro, o objeto de apego é, aqui também, primordial.

    E é o interdito que esse primeiro objeto, em geral a mae, submeteu à satisfaçao de suas próprias pulsoes de domínio, pela interdiçao de tocar (problemática desenvolvida por D. Anzieu em sua obra, Le Moi-peau), e em seguida a interdiçao edipiana, que permitem à criança voltar-se ao exterior, destacar-se do domínio do objeto de apego para desenvolver seu próprio domínio. Com efeito, trata-se entao, acima de tudo, de controle, no sentido que parece necessário ser oposto ao domínio, como o faz R. Dorey: "O domínio está fundado sobre a negaçao dessa realidade específica que é a falta do objeto; o controle, ao contrário, se apresenta como fundado no reconhecimento de aceitaçao dessa falta." É o equilíbrio que o primeiro outro soube achar em suas relaçoes com terceiros, em especial o pai, que condiciona o equilíbrio que a criança pode encontrar no desenvolvimento conjunto do apego e do domínio por sua própria economia psíquica e suas relaçoes com seus objetos.

    Um excesso de apego pode redundar em negligência de necessidades próprias em favor da submissao ao domínio do outro e à satisfaçao dos desejos desse outro. Um excesso de vontade de domínio pode também redundar em negligência às próprias necessidades, uma vez que o sujeito nega ser assim assujeitado, na medida em que ele nega estar assujeitado ao desejo de um outro que nao o seu. Veremos que a anoréxica oscilou entre um e outro desses extremos.

    A clínica da anorexia nos confronta com uma forma específica de falha no trabalho de domínio ligado ao limite do objeto. O resultado só é pensável na repetiçao de um elo libidinal com objetos vivos, que necessita do desvio para o investimento sadomasoquista. A anorexia nao nos confronta com uma forma de sadismo ou masoquismo na medida em que se poderia pensar que a paciente recusa-se a se alimentar por prazer ou gozo com o sofrimento ao seu entorno. Ela nos leva antes de tudo a considerar que o eixo sadomasoquista nao vem a se estabelecer de forma suficiente, que nao é de forma alguma "bom para simbolizar" e que ele permanece enquistado, em expectativa de um retorno.

    A anorexia nervosa pode começar bem cedo com uma amenorreia primária, quando o escape de características sexuais secundárias que transformam o corpo toma, prematuramente, um sentido sexual para o eu. Ao tempo em que a vida sexual é ainda a de uma criança, o corpo adota ritmos diferentes, estranhos à vivência interna até entao familiar. O sujeito que aí perde sua identidade recusa-se a acolher esse feminino. A experiência subjetiva do encontro sexual, encontro do desconhecido de si e do desconhecido do outro, é inacessível, pois se choca contra um impasse. Uma clivagem do ego se faz presente. Uma parte do ego passa a viver fora do tempo, suprime a inscriçao do corpo na temporalidade de seus ritmos e dissolve o apoio da vida pulsional sobre a autoconservaçao. Trata-se de anular sistematicamente o ritmo da refeiçao, do sono, do repouso, do ciclo menstrual; de mutilar o tempo linear em que o depois pode se tonar um antes, ao decapitá-lo de seu futuro. As pacientes anoréxicas sofrem de um transtorno da capacidade de estar só em presença de outro e de um transtorno da percepçao de si mesmas. Sua dificuldade de desprender-se é um sinal de uma falha de transicionalidade.

    No seio da emergência mutativa da feminilidade, o desencadeamento de uma anorexia é sinal de desespero e de apelo. A força da revolta nao encontra palavras para se dizer nem mesmo se pensar. Ela oferece esperança, por seu vigor, uma reorganizaçao psíquica mais adequada se ela encontra o interlocutor capaz de ter a paciência de esperar, de dar o tempo e a fala para acompanhar o devir consciente daquilo que se repete. Fascinante e enigmática, a anorexia nervosa grave se contrapoe, no entanto, a um quadro estereotipado.


    UMA INFANCIA SOB DOMINIO

    As anoréxicas sao conhecidas por terem sido crianças modelo, nao tendo representado problemas, dóceis e inteligentes, cálidas, muito ligadas à mae, quando nao a um pai que nao soube se contentar em ser pai e desempenhou o papel de pai-mae. De fato, elas nao se desenvolvem com uma existência própria, mas permanecem "o objeto que tem por funçao ocultar a falta do outro". A relaçao da mae com o filho entra no enquadre do que Dorsey definiu como relaçao de domínio: uma apropriaçao por desapossamento do outro. Se nos referimos aos critérios do autor, esse domínio se associa mais a um domínio perverso que obsessional, no sentindo em que a arma utilizada é da ordem da seduçao, mesmo que nao uma seduçao sexual. As maes (ou talvez os pais) edificam "a ilusao na qual o outro se perderá [...] uma verdadeira captura pela imagem", onde o desejo da criança se modela como reflexo do desejo da mae. As anoréxicas nao se ressentem da infância.

    A anorexia é, entao, uma questao de sobrevivência, radical, de sobrevivência do desejo, do desejo tout court. Mesmo no caso das histéricas. É como as fobias. Todo o mundo, em especial as garotas, passa por momentos anoréxicos ou bulímicos. Elas passam entao por um momento anoréxico que é uma interrogaçao radical sobre a existência de seu próprio desejo em relaçao ao desejo do outro ou, para ser mais exato, de seu próprio desejo em relaçao à demanda do outro. Essa questao anoréxica é entao uma questao de um desejo, assim como a questao bulímica é a de um desejo que nao sabe o que fazer com os objetos que lhe sao propostos.

    O engorde nao é necessariamente alimentar. O modelo, evidentemente, é o alimento - como se vê no engorde de gansos e patos para a obtençao do foi gras -, mas trata-se de um modelo metafórico. Nas sociedades burguesas e ainda assim evoluídas, come-se, ao contrário, com refinamento. Entao, nao se trata da dimensao alimentar. O que se ressente nao é o objeto, é o próprio engorde mesmo na forma de uma demanda opressora. A anorexia autêntica diz respeito a supor o engorde do Outro, uma demanda do Outro que a engorda. Pode ser um pouco de escrúpulo, um pouco de amor, um pouco de tudo que se queira. Se o domínio está fundado sobre a negaçao da falta do objeto, se a mae da anoréxica nao pôde suportar o desenvolvimento de uma criança diferente, a anoréxica que cresceu nesse sistema fechado nao sabe... até que exploda a anorexia. E ainda assim, sabe ela nesse momento? O que as anoréxicas manifestam com seu comportamento é pensável por elas? Sua necessidade velada de exercer o domínio, "o caráter verdadeiramente patético, pois desesperado, de suas condutas repetitivas que sao testemunha de sua impotência fundamental em controlar um perigo para elas insuperável", diz R. Dorey dos sujeitos que sao dominados pela pulsao de domínio, nao seriam eles ligados, aqui, ao fato de que as anoréxicas sao incapazes de identificar o perigo do qual buscam escapar? Perigo da alteridade, de uma separaçao enfim realizada com a mae, perigo da falta do objeto que surgirá em seguida. Na negaçao das diferenças que vigiam na família, a diferença dos sexos era ao mesmo tempo reconhecida e negada.


    O DOMINIO DO CORPO

    O corpo sob domínio da infância, saciado, e, devido à necessidade, esvaziado por supositórios e lavagens, vestido e modelado pela mae, se revelará diferente, como estranho, na adolescência.

    As transformaçoes da puberdade refletem a imagem de uma luta, a da futura mulher. A imagem nao está desacompanhada, sem dúvida, de sensaçoes novas. Nao ouvi falarem nada. O horror ao fluxo menstrual, aos cabelos e aos seios suplanta toda evocaçao de uma sensaçao de prazer. Nessa época, qualquer observaçao sobre a imagem do corpo que confirme nao ser ele o corpo ideal, nem para si, nem para outrem, é suficiente para desencadear a privaçao de alimentos que nunca mais terminará. Palavras fatídicas que ainda envenenam sua vidas, anos depois, após ter emagrecido, engordado, emagrecido de novo, engordado de novo em clínicas renomadas, e viu que seu objetivo cada vez mais se distanciava, tornar-se dançarina, fraca demais nos períodos de anorexia, inchada demais nos de bulimia, para conseguir treinar.

    Nao teriam razao as anoréxicas de nao confiar no corpo que nao aprenderam a habitar durante a infância, ao mesmo tempo em que outras faziam delas o testemunho de uma anarquia pulsional? Entre o masoquismo de umas e as pulsoes insaciáveis de outras, tudo coberto pela mais exemplar normalidade, talvez elas tenham razao, essas meninas, de pensar que nao se pode confiar no corpo.

    Mas é apenas a oralidade que deve ser controlada? Nao seriam também as outras pulsoes, a agressividade, a sexualidade? A anoréxica jamais habitou seu corpo. Na infância, o corpo sob domínio pertencia mais à mae que a ela. Escapando do domínio da mae na adolescência, a anoréxica o ressente como ela mesma exercendo seu domínio. O excesso de suas manifestaçoes pulsionais nao pode ser integrado. Jamais postas em palavras no discurso familiar que quer negá-las, elas irrompem, ao tempo em que a vontade da menina, que agora substitui a de sua mae, se choca tanto com essa força pulsional que parece tao estranha a si mesma quanto com os limites corporais que ela nao percebe como seus próprios limites, mas como os limites que lhe sao impostos. Seu corpo nao lhe é nem mais nem menos exterior que o desejo de sua mae encarregado de contê-la até entao.


    O DOMINIO SOBRE O CORPO

    A energia das anoréxicas parece, entao, consagrada essencialmente a se subtrair ao domínio do corpo para exercer o domínio sobre o corpo. A oralidade fica inteiramente sob controle. O cálculo de calorias e de conteúdos químicos daquilo que é ingerido se sobrepoe a todas as sensaçoes. A contençao de alimentos é sempre fruto de uma decisao, nunca a resposta a uma necessidade, um desejo. O corpo que perdeu toda possibilidade de reenviar como feedback ao psiquismo o prazer ou o desprazer ligados ao vazio ou à repleçao passa ao lugar do objeto. Pouco importa a sensaçao corporal se o gozo é o do domínio. A necessidade de domínio é tao absoluta que ultrapassa seu alvo. Nao se trata mais do controle sobre aquilo que é retido antes de ser expulso, com a erotizaçao anal ligada a essa funçao e seus substratos simbólicos que sao perseguidos, mas da necessidade de esvaziar inteiramente o corpo daquilo que cometeu a infraçao e deve ser expulso a qualquer custo. Por vezes entende-se a que domínio esse domínio sobre o corpo impoe resistência.

    Nao saberia dizer se o controle da genitalidade se afirma com tanta força quanto o de pulsoes pregenitais. A amenorreia faz parte de um quadro de anorexia e a magreza anula as formas femininas. Manifestamente, as perturbaçoes sexuais da adolescência estao na origem de muitas anorexias. Mas o desejo sexual é frustrado, para nao dizer forcluído. Pois os amores das anoréxicas, em período de anorexia, mantêm-se desencarnados, platônicos, por rapazes dos quais muitas vezes jamais se aproximaram. Enfim, o controle do corpo vai além do controle dos sentidos.

    O sujeito substitui as sensaçoes espontâneas por uma motricidade agressiva. É conhecido o parentesco entre a anorexia e a síndrome dos "ciclistas obrigados" que se exaurem em maratonas até o limite de suas forças, fabricando, como as anoréxicas, endorfinas ao longo de suas proezas. Isso sempre está presente na anoréxica, como se ela tivesse necessidade, para ter certeza de que nao recairá sob o domínio de seu corpo, de mantê-lo em suspensao, de obrigá-lo a agir para impedi-lo de sentir, particularmente à noite, quando, sabe-se, as pulsoes descontroladas ameaçam, mais que em qualquer momento, de surpreender. A intelectualizaçao e, sobretudo, a quantidade de trabalho intelectual que se impoe a anoréxica têm, sem dúvida, o mesmo sentido de uma mobilizaçao permanente de atividades do pensamento, para impedi-los de divagar e de deixar surgir os élans pulsionais que possam originar mesmo a menor representaçao fantasmática.

    É evidente que essa dedicaçao ao controle das sensaçoes corporais e o todo das atividades psíquicas e físicas tende ao controle de um desejo inconsciente que a anoréxica deve ter sentido irromper na fase pré-anoréxica com tamanha violência que nunca havia se manifestado até entao, estando sob o domínio da seduçao materna. Esse desejo, tao perigoso que arriscaria a perda do amor dos pais e os limites identificatórios que até entao eles forneceram, esse desejo, que pode ser feito dele senao forcluí-lo e manifestar seu domínio sobre aquilo que poderia traí-la apesar dela mesma, seu corpo?

    A anoréxica, que assim chega a se subtrair a todo desejo que se fixa em seu corpo, vai progressivamente transformar a imagem que tem desse corpo. O corpo desencarnado, esquelético, torna-se para ela o Corpo Ideal, o único que pode dar testemunho do domínio que ela tem sobre ele e de sua capacidade de controlar todo élan pulsional. Ela chega entao a uma percepçao quase delirante do corpo, que me parece da mesma ordem que a percepçao do transexual: tal como a questao do transexual é admitir ter e ser um corpo submisso ao domínio da diferença anatômica dos sexos, é questao para a anoréxica admitir ter e ser um corpo submisso ao domínio pulsional. O dese-jo consciente suplanta o princípio da realidade. A anoréxica, agente e objeto do domínio, se dissocia de seu corpo. É, ao mesmo tempo, "o sujeito que exerce o domínio e se ausenta atrás do corpo-coisa e aquela que o sofre e 'está ausentada' de seu corpo obstruído". Pouco importa a sensaçao corporal real, pois o gozo é o do domínio.


    O DOMINIO SOBRE O OUTRO

    A anoréxica nao chega, entao, dessa forma, a um estado de autarquia. Na verdade, a reivindicaçao de autossuficiência da anoréxica tem um sentido contra o outro. Se ela se dedica tanto a afirmar seu todo-poder sobre seu corpo, é, ao mesmo tempo, para afirmar o nao-poder do outro. Nao só buscam convencer-se a si mesmas como também observar as comoçoes que causam em volta de si, quer na família, onde a discórdia se impoe a respeito delas, quanto nos serviços que se encarregam delas, onde elas acabam, algumas vezes sem dizer nada, por opor os profissionais uns contra os outros. Alguns querem ser mais permissivos, atender a algumas das demandas da anoréxica; os outros querem ser autoritários, provar que ali elas nao imporao a lei. Aqui sao as pulsoes de domínio dos próprios profissionais que estao em jogo. Cria-se uma rede de identificaçoes múltiplas, ligada aos conflitos preexistentes, em que alguns tomam o partido dos agredidos, os outros, o do agressor, as alianças com frequência se invertem no curso da evoluçao.

    Sob a aparência da normalidade, as famílias das anoréxicas nao as permitiram afrontar a angústia de castraçao ligada à diferença dos sexos. Tornarse mulher é, para elas, tornar-se tudo ou nada. Nada para um pai que nao reconhece qualquer lugar à sua mulher, ou tudo... mas como uma mae que já ocupa o local. De qualquer forma, nao há um lugar de mulher para elas. É porque a questao da castraçao nao é vivida somente no nível sexual, mas no nível narcísico. É preciso que sejam tudo para que nao sejam nada. É porque também as coisas jogam para elas no nível da vida e da morte. Elas sentem como uma morte o domínio de outros sobre elas, e logo agem de forma a ser internadas e alimentadas, seu espaço interior e exterior à mercê do outro. Lá, elas podem ainda exercer o domínio ao ameaçar o outro com sua própria morte. É fato que elas negam o perigo, mas será que nao o veem no olhar do outro, nao o ouvem em suas palavras? Elas sabem reduzir o outro à impotência. Mas será necessário ir até a morte para que o outro se veja sem seu objeto de domínio e que sua castraçao narcísica e sexual seja exposta: é possível deixar impunemente que o filho morra de fome em um país sem fome? A anormalidade poderia entao passar da garota a seus progenitores. E talvez nao seja sem razao que, segundo Hilde Bruch, a anorexia se torne corrente nos Estados Unidos, país rico que produz as mais monstruosas obesidades, como se o desvio da oralidade e da imagem do corpo a que está ligada viesse dar testemunho da falência das fronteiras simbólicas que, em toda sociedade, limitam o domínio de uns sobre os outros.


    PARA ALÉM DO DOMINIO

    Portanto, tratar a anorexia é, antes de tudo, recusar-se a entrar na problemática do domínio. Eu diria que é jogar o apego contra o domínio. Quer se trate de adolescentes, crianças ou lactantes, constatamos que quando uma anoréxica começa a comer, é por apego a alguém que, antes de qualquer coisa, renunciou o exercício de seu domínio.

    É certo que a primeira condiçao para tratar a anorexia é evitar o máximo possível o enfrentamento direto, a prova de força em uma relaçao dual. A outra condiçao terapêutica é a qualidade das relaçoes entre cuidadores, relaçoes que nao sejam baseadas na vontade de domínio, mesmo que existam, bem entendido, relaçoes de poder em toda equipe institucional. A anoréxica poderá assim perceber a possibilidade de relaçoes triangulares onde a castraçao simbólica seja reconhecida. Para se retomarem as precisoes articuladas por R. Dorey sobre a distinçao entre controle e domínio, é preciso passar a um sistema de controle "assimilável ao funcionamento de um sistema aberto, adaptativo,produtor de diferenciaçao" em vez do sistema de domínio, sistema fechado de apropriaçao por desapossamento do outro.

    A eficácia das terapias familiares sem dúvida está relacionada a essa passagem de um sistema de domínio a um sistema de controle, a partir do momento em que os pais aceitarem repensar qualquer coisa em seu comportamento, ao mesmo tempo em que a anoréxica... e os terapeutas. Esse primeiro tempo vivido na transferência me lembra, nas formas graves, um preâmbulo necessário a toda a tomada de consciência da problemática em jogo para um trabalho psicoterápico.


    ALGUMAS NUANÇAS SOBRE O FENOMENO DO DOMINIO

    Prefiro o termo de invasao ao de domínio. Pode-se invadir como se pode caminhar sobre o quintal de outra pessoa de um modo negligente, enquanto o domínio evoca antes as garras da ave que se fecham, e nem sempre é assim. Nao se trata sempre da vontade de possuir. Nas formas em que há domínio, nao há nada a fazer se nao separar. Elas nao têm a força de se libertar.

    O domínio é redutor, impede o crescimento, limita os movimentos, mata, é a teia da aranha. Quando o detecto, digo à paciente que há apenas uma soluçao: cortar, partir; e diria aos pais que é a única indicaçao possível para que a filha viva. É algo doloroso de se fazer, mas doloroso de forma cirúrgica: corta-se, o que é doloroso, mas a pessoa se recupera. De outra forma, a garota nao poderá adquirir aquilo que é ser adulta. Cada um entre nós precisa fazer o luto e mudar sua relaçao com os pais, inverter as geraçoes para se tornar um suporte para eles depois. É necessária uma linhagem geracional em que as pessoas se ajudem mutuamente, cada uma de sua vez, onde a noçao de família permita justamente o confronto com situaçoes por vezes difíceis: doença, dificuldades de trabalho ou financeiras, consolaçao em momentos de sofrimento verdadeiro. Assim deveria ser uma família!

    Quanto à passagem à idade adulta, mesmo sendo um domínio feito pelo outro, é preciso se desidentificar, é preciso um trabalho de desidentificaçao e identificaçao como no trabalho de luto: de uma vez digerir, expelir, assimilar. Assim, nao se pode ver a questao da oralidade como de todo diferente da questao da analidade. Como se transmite a competência de se alimentar a si mesmo? É abrir-fechar. Sao locais do corpo que se abrem e se fecham.


    TAMBÉM É UMA QUESTAO DE DIFERENCIAÇAO

    Estar em impasse é separar-se um do outro. Diferir soa em nossa língua com o duplo sentido de sua origem. Differre, em latim, significa se inclinar ao destacar-se, se deportar. Diferir é, entao, ser dessemelhante. É também repudiar, reportar. É o olhar que sabe reconhecer que o outro é o outro, que na funçao parental um assimila o outro como sujeito e nao como uma coisa. O domínio é a perversao no sentido em que o outro é meu objeto. Tenho medo de estar só e, entao, mantenho meu filho comigo: nao há sujeito lá dentro! Ao contrário, a educaçao é dizer a si: esse outro ser que nao compreendo senao em parte, pois é diferente de mim e seu crescimento nao depende de mim, esse ser, como posso dar a ele armas para poder fazer da vida alguma coisa, para poder ao mesmo tempo suportá-la e fazer alguma coisa que o situe na comunidade humana?

    Se a família nao está aberta sobre o mundo, está-se sob domínio. Isso faz com que, por vezes durante muitas geraçoes, se viva a duras penas. Conhecer os pais também é para melhor conhecer a paciente nas capacidades e incapacidades parentais que a acompanham, um pouco como todo mundo, mas como ela está presa em uma espécie de cegueira, negaçao, ela nao tem outra soluçao senao fazer mal a si mesma. Existem coisas insuportáveis. Podese, ao falar com os pais, pressentir um pouco da vitalidade de seu ser, as zonas de sofrimento no casal que os impedem de ser o que eles gostariam de ter sido com seus filhos.


    OS FATORES FAMILIARES

    A influência dos fatores familiares na etiologia, incidência e evoluçao da anorexia nervosa conduziu à pesquisa da especificidade de interaçoes familiares que podem favorecer ou manter os problemas de condutas alimentares. A estrutura familiar dos pacientes anoréxicos é, segundo Hilde Bruch11, caracterizada por uma fachada de bom entendimento, de coesao e apoio. Essas famílias sao com frequência descritas como orientadas para o sucesso, com padroes elevados em relaçao ao corpo e à saúde que a todos servem para completar essa imagem idealizada.

    A adolescência é um período muito difícil no que toca à estima de si e à imagem do corpo. Há um alto nível de insatisfaçao corporal. Um bom meio de se controlar ou de controlar suas emoçoes é fazer um regime. O fator predisponente é o perfeccionismo. O controle dá um sentimento de ser melhor. A anorexia aparece como uma soluçao ao ser mal.

    Sabe-se que a família nao é mais que um fator etiológico entre outros, mas ela tem um papel importante na evoluçao. O modo de funcionamento intrafamiliar pode condicionar em grande parte uma evoluçao favorável ou desfavorável. A terapia nao avança ao se corrigir a família, mas ao se associar, apoiando-se nela, trabalhando no nível intergeracional (aquilo que os pais viveram em sua infância ou adolescência) e transgeracional (ligada aos segredos de família que geram o sofrimento de qualquer coisa nao digerida).

    O trabalho familiar é entao "integrado" e se funda sobre diversas práticas e teorias para elaborar uma "moldura organizadora" de cuidados com a anorexia. Pois a anorexia é igualmente um chamado. Mas para que se entenda isso, é necessária a intervençao de um terceiro, de fora da família. A anorexia é um grito, para que se ouça uma recusa que se desconhece, mas que é vital. É preciso que o sofrimento da anorexia seja ouvido fora da família. Em si, a anorexia é uma chance de se tomar consciência de problemas subjacentes, ela designa um estado de crise existencial da passagem à idade adulta. Com o passar do tempo, aquilo que dificultou o desenvolvimento da feminilidade na família (depressao, luto infantil, divórcio, desrespeito à intimidade e à autonomia...) aparece.

    O desafio terapêutico é lançado: tratar a anorexia é antes de tudo recusar-se a entrar na problemática do domínio. É, como diz Marie-Claire Célérier, jogar o apego contra o domínio. Com frequência, de fato, pode-se constatar que quando uma anoréxica volta a comer, é por apego a alguém que abriu mao de exercer sobre ela seu domínio.










    * Médico internista, psicoterapeuta, professor de terapêutica, responsável pelo diploma da Universidade de Patologia da Oralidade (Bordeaux 2).

    Endereço para correspondência:
    Gérard Ostermann
    E-mail : gerard.ostermann@wanadoo.fr

    Recebido em: 13/11/2010
    Aceito em: 20/12/2011

    1 Trata-se de um capítulo do livro de Joyce Aèin, Familles, Explosion ou evolution. France: éditions Eráes 2008.
    2 B.Blanchard, Étude de La fonction Du symptom dans l'anorexie mentale, mémoire de maîtrese de psychologie clinique, Bordeaux 2, 2001.
    3 F. Galinon, Clinique Castelviel, 31240 Saint - Jean.
    4 C. Mondiet-Colle, L'organisation psychique de l'anorexie mentale à l'épreuve du Rorschach, mémoire de maîtrise de psychologie clinique, Bordeaux 2, 1999.
    5 P. Quignard, Les ombres errantes, Paris, Gallimard, Folio, 2002.
    6 P. Quignard, Vie secrète, Paris, Gallimard, Folio, 1998.
    7 E. Bidaud, Anorexie mentale, ascèse, mystique, une approche psychanalytique, Paris, Denoël, 1997.
    8 C. Combe, Soigner l'anorexie, Paris, Dunod, 2002, et Comprendre et soigner la boulimie, Paris, Dunod, 2004.
    9 Aqui o autor se utiliza de um trocadilho, irreproduzível no português, entre goût des mets (gosto pela comida) e goût d'aimer (gosto por amar), baseado na semelhança de pronúncia entre as duas expressoes. (N. do T.)
    10 M.-C. Célérier, « Anorexie mentale ou maladie d'emprise », Rev. de méd. psychosom., 23, 1990, p. 83-96.
    11 H. Bruch, L'énigme de l'anorexie, Paris, PUF, 1979.

     

    artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
         
    artigo anterior voltar ao topo próximo artigo