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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2011; 13(2):133-145



Relato de Caso

Suspeita de abuso sexual: um caso de psicoterapia de uma criança de cinco anos

Suspected sexual abuse: a psychotherapeutic case of a 5-year-old child

Luciana Terra*

Resumo

Este relato de caso propoe-se apresentar o atendimento de uma criança de cinco anos de idade que, no decorrer de suas sessoes de psicoterapia, pôde comunicar à terapeuta o abuso sexual que vinha sofrendo. Para a compreensao dinàmica do caso, faz-se uma breve revisao da literatura sobre conflitiva edípica, abuso sexual e contratransferência. Paciente e terapeuta podem encontrar uma saída quando ambos se opoem ao abuso; nao havendo, dessa forma, meios para manter o trauma "esquecido".

Descritores: maus-tratos infantis, psicoterapia, psicanálise, infància.

Abstract

This case report presents the psychotherapeutic work of a 5-year-old boy who, as the sessions developed, was able to report the sexual abuse he had been subject to his therapist. To understand the case dynamics, a brief literature review on Oedipus conflict, sexual abuse and countertransference is presented. Patient and therapist can find a way out when both oppose the abuse in order that by no means the trauma is kept "forgotten."

Keywords: child abuse, psychotherapy, psychoanalysis,childhood.

 

 

"Se a gente só se define opondo-se,
eu era o indefinido em carne e osso"
Sartre, As Palavras1.


INTRODUÇAO

Este trabalho apresenta o caso de uma criança de cinco anos de idade que, no decorrer de suas sessoes de psicoterapia, pôde comunicar à terapeuta o abuso sexual ao qual era sujeita. Além disso, procura-se discutir aqui os diversos questionamentos que passam pela mente do terapeuta: será mesmo abuso ou apenas manifestaçao exagerada da conflitiva edípica? Como reagir frente a uma realidade tao assustadora? Para tanto se faz uma breve revisao teórica sobre conflitiva edípica, contratransferência e abuso sexual. Segue-se entao a apresentaçao do caso e o relato de alguns trechos das sessoes acrescidos de compreensao dinâmica e conclusao.


REVISAO TEORICA

Três temas norteiam a compreensao deste caso, estando, aqui, entrelaçados: a conflitiva edípica, a contratransferência e o abuso sexual.


A QUESTAO DA CONFLITIVA EDIPICA

Ao longo de sua obra, Freud fala de uma etapa no desenvolvimento sexual infantil em que a criança tem seu desejo despertado pelo genitor do sexo oposto, rivalizando com o genitor do mesmo sexo e nutrindo sentimentos hostis por ele2.A criança, durante os primeiros anos de vida, nao apresenta em seu psiquismo a diferenciaçao entre feminino e masculino3.

Quando caracteriza o complexo de Édipo, Blos3 exemplifica separadamente a situaçao vivenciada pelos meninos e aquela experimentada pelas meninas. Segundo o autor, no caso dos meninos, para o ingresso na conflitiva edípica, nao é necessário que a criança faça uma troca de objeto de amor. O menino transforma, aos poucos, os primeiros anseios ativos de identificaçao com a mae em um apego emocional que adquire um colorido edípico. O pai passa a ser um intruso e o menino fica ressentido com ele, já que a possibilidade de perder a mae é sentida como ameaçadora. Apesar disso, o pai também é objeto de admiraçao, o que se deve, em grande parte, à questao narcísica, já que o pai é como ele. O apego com o pai é ambivalente, sendo a identificaçao com este acompanhada de amor e rivalidade pela mae, o que caracteriza o conflito triangular chamado complexo de Édipo3.

Segundo Green4, integrado ao complexo de Édipo encontra-se o complexo de castraçao, centrado na fantasia de castraçao, sendo uma resposta ao enigma da diferenciaçao anatômica entre os sexos. A diferença representada pela presença ou nao do pênis é atribuída à amputaçao do membro na menina5. O complexo de castraçao é a lei do complexo de Édipo, que efetua a separaçao dos sexos e das geraçoes. Estes mesmos autores, entretanto, consideram que tanto o complexo de castraçao pode ser entendido como uma lei como pode ser considerado uma puniçao pela transgressao da mesma6.

Segundo Freud7, no auge do desenvolvimento sexual infantil, a criança demonstra grande interesse no que diz respeito aos genitais e seu funcionamento, nao estando tao aquém daquele experimentado na maturidade. A grande diferença com relaçao à organizaçao genital final do adulto encontra-se no fato de que na infância apenas um órgao genital é considerado: o masculino. Diante disso, nao se pode falar que exista nessa época, segundo Freud, um primado genital e sim um primado do falo7.

Freud7 afirma que o complexo de castraçao apenas pode ser corretamente considerado quando assim também o for a sua origem na fase da primazia do falo. Laplanche e Pontalis5 compartilham desta ideia, acreditando que a unidade do complexo de castraçao só é possível, em ambos os sexos, em funçao do valor atribuído ao falo, tanto pela menina quanto pelo menino, nessa fase do desenvolvimento chamada fase fálica. O que está em questao é ter ou nao ter falo, o que, portanto, tem um grande impacto sobre o narcisismo. O falo representa para a criança uma parte essencial para a imagem egoica, sendo que a ameaça de perda deste poe em perigo essa imagem.

O complexo de castraçao vivido pelos diferentes sexos apresenta-se de formas diversas com relaçao ao complexo de Édipo. Na menina, ele constitui-se na entrada da conflitiva edípica, fazendo-a desejar o pênis paterno. Já no menino, o complexo de castraçao vem a interditar à criança o objeto materno, representando a crise terminal do complexo de Édipo, que leva ao período de latência e precipita a formaçao do superego5. Blos3 partilha dessa ideia, afirmando que o reconhecimento da castraçao na menina provoca o complexo de Édipo, enquanto no menino, provoca a destruiçao de tal complexo.

Os traços próprios da fase fálica sao os jogos, atitudes e fantasias das crianças, sendo a agressividade parte integrante. Aquilo que se refere ao desejo de penetrar fica evidente, assim como o desejo de vencer. Existem também traços diretamente relacionados ao erotismo uretral e fálico, além de defesas contra a angústia de castraçao, em funçao da identificaçao com o agressor e em relaçao ao sadismo do estágio anal precedente 4.


SOBRE O ABUSO SEXUAL

Segundo Ballone8, define-se abuso sexual como qualquer conduta sexual com uma criança cometida por um adulto ou por outra criança mais velha. Pode-se considerar abuso, além da penetraçao vaginal ou anal na criança, também tocar seus genitais ou fazer com que ela toque os genitais do adulto ou de outra criança mais velha, ou o contato oral-genital ou, ainda, friccionar os genitais do adulto com os da criança. A interaçao sexual pode incluir toques, carícias, sexo oral ou relaçoes com penetraçao (digital, genital ou anal). O abuso sexual também inclui situaçoes nas quais nao há contato físico, tais como voyeurismo, assédio e exibicionismo. Essas interaçoes sexuais sao impostas às crianças ou aos adolescentes por meio de violência física, ameaças ou induçao de sua vontade9,10.

A maioria dos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes ocorrem dentro de casa e sao perpetrados por pessoas próximas, que desempenham papel de cuidador. Nesses casos, os abusos sao denominados intrafamiliares ou incestuosos11,12. Dessa forma, as relaçoes sexuais, mesmo sem laços de consanguinidade, envolvendo uma criança e um adulto responsável (tutor, cuidador, membro da família ou familiar à criança) sao consideradas incestuosas13. Isso inclui madrastas, padrastos, tutores, meios-irmaos, avós e até namorados ou companheiros que morem junto com o pai ou a mae, caso eles assumam a funçao de cuidadores14. A familiaridade entre a criança e o abusador envolve fortes laços afetivos, tanto positivos quanto negativos, colaborando para que os abusos sexuais incestuosos possuam maior impacto cognitivo comportamental sobre a criança e sua família12,15. Essa pessoa normalmente é alguma figura de quem a criança gosta e em quem confia. Por isso, pode convencer a criança a participar dos seus atos8.

Por estarem desorientadas, as crianças chegam a sentir-se culpadas, desvalorizadas, têm sentimentos de serem sujas e nao amadas. Essa autopuniçao e destruiçao é frequentemente uma expressao de apego continuado, forte e destrutivo, em relaçao à pessoa que abusa15. Anne Alvarez16 cita Joseph, ao comentar que, durante algum tempo, o terapeuta deve conter sentimentos indesejados do paciente a fim de poder lidar melhor com esses sentimentos e nao ser também abusado através da contratransferência.

A criança de cinco anos ou pouco mais, mesmo conhecendo e apreciando a pessoa que o abusa, tem sentimentos profundamente conflitantes entre a lealdade para com essa pessoa e a percepçao de que essas atividades sexuais estao sendo terrivelmente más. Para aumentar ainda mais esse conflito, a criança pode experimentar profunda sensaçao de solidao e abandono. A criança vítima de abuso sexual prolongado usualmente desenvolve uma perda intensa da autoestima, tem a sensaçao de nao valer nada e adquire uma representaçao anormal da sexualidade. Ela pode tornar-se muito retraída, perder a confiança em todos os adultos e chegar até a considerar o suicídio, principalmente quando existe a possibilidade de a pessoa que abusa ameaçá-la de violência se ela se negar aos seus desejos15.

Uma falsa crença é a de que a criança abusada avisará sempre sobre o que está acontecendo. Na grande maioria das vezes, as vítimas de abuso sao convencidas pelo abusador de que nao devem dizer nada a ninguém. A primeira intençao da criança é, de fato, avisar a alguém sobre seu drama, mas em geral nao consegue fazer isso com facilidade, apresentando um discurso confuso e incompleto. Por isso os pais precisam estar conscientes de que as mudanças na conduta, no humor e nas atitudes da criança podem indicar ser ela vítima de abuso sexual. No momento em que esse incidente vem à tona, deve-se considerar que o bem-estar da criança é a prioridade. Se os familiares estao emocionalmente muito perturbados nesse momento, o assunto deve ser interrompido para que as emoçoes e ideias possam ser mais bem organizadas. Depois disso, deve-se voltar a tratar do assunto com a criança, explicando sempre que as emoçoes negativas sao dirigidas ao agressor e nunca contra a criança8.


SOBRE A CONTRATRANSFERENCIA

Atualmente, existem três conceitos de contratransferência a serem considerados17. O conceito clássico a vê como algo alheio, decorrente dos conflitos neuróticos do terapeuta, anormal no processo terapêutico e perturbador do mesmo, em concordância com a descriçao original de Freud18. Existe o chamado conceito totalístico proposto por Heimann19 no seu trabalho On countertransference, no qual a contratransferência começou a ser entendida como possível ferramenta para o tratamento e compreensao do paciente, sendo concebida como todos os sentimentos e atitudes do analista em relaçao ao paciente - um acontecimento normal no processo terapêutico, originado pelo paciente e transmitido ao analista por identificaçao projetiva. Racker20 definiu a contratransferência como "a totalidade da resposta psicológica do analista ao paciente", uma combinaçao entre identificaçoes concordantes (identificaçao de cada parte da personalidade do analista com a correspondente parte psicológica do paciente) e complementares (identificaçao do analista com os objetos internos do paciente). O terceiro conceito, chamado específico, denomina contratransferência as reaçoes específicas do analista às qualidades particulares do paciente21. Sentimentos pessoais do terapeuta, nao relacionados à transferência e às identificaçoes projetivas do paciente, seriam considerados como transferências do terapeuta. O contato com vítimas de trauma comumente gera sentimentos contratransferenciais intensos em quem os atende, nao só por estar frente a pessoas em grande sofrimento psíquico, como também pelo fato de as situaçoes traumáticas deixarem evidentes a fragilidade e a impotência também dos profissionais como pessoas comuns17.

Pearlman22 assinala que o processo primário de cura na psicoterapia de pacientes vítimas de abuso sexual na infância ocorre no contexto da relaçao terapêutica, sendo esta a oportunidade do paciente reviver e ressignificar danos ocorridos em suas relaçoes iniciais. O autor considera ainda que o processo de construçao da relaçao terapêutica é a terapia com sobreviventes de trauma, sendo o self do terapeuta fundamental para que se estabeleça uma relaçao terapêutica clara e aberta.


CASO CLINICO

Guilherme tem 5 anos de idade é filho único de Joana e Rodrigo. Joana é usuária de drogas e já teve uma internaçao na qual foi diagnosticada com Transtorno da Personalidade Borderline. Os pais de Guilherme se separaram quando ele tinha 3 anos e meio. Joana saiu de casa e foi morar com outro homem, deixando o filho com o pai. Ela buscava Guilherme na creche em dias de semana sem haver tido feito uma combinaçao prévia com o pai. Ficava com Guilherme por alguns dias e nesse período nao o levava à creche, pois seu atual marido gostava muito do menino e cuidava dele enquanto trabalhava. O pai, Rodrigo, procurou atendimento para o filho, pois achava que, desde a separaçao, Guilherme havia mudado seu comportamento. Ficava muito retraído, quieto, sem falar com ninguém e o que mais o deixava assustado era o interesse do filho por pênis. Disse que o menino queria tocar no pênis de todo mundo e ficava "esfregando-se nos outros" como se tivesse "chafurdando", o que o deixava muito constrangido.

Após seis meses de tratamento psicoterápico, Guilherme deixou de lado uma postura mais introvertida para uma mais participativa. Paralelamente a esse processo, Rodrigo, o pai, começou a trazer para as sessoes suas dúvidas em relaçao ao que acontecia quando seu filho ficava com o padrasto e a mae. Quando ocorriam essas visitas, Guilherme voltava choroso e nao queria novamente ir com a mae. Rodrigo estava muito assustado, pois Guilherme começou a propor para o filho de sua madrasta a brincar de sexo. O menino, com a mesma idade, estranhou. Em determinado momento, Joana nao devolveu o filho no dia combinado, e Rodrigo foi buscá-lo. Ficou sabendo que Joana nao estava mais com o parceiro com o qual deixava o filho. Ela apenas o entregava lá e saía durante vários dias sem voltar. No decorrer dos atendimentos, a suspeita de que o padrasto estava abusando de Guilherme foi ficando cada vez mais evidente. A mae foi proibida de ver o filho, e Rodrigo ganhou a guarda definitiva de Guilherme na justiça. Guilherme foi encaminhado para a perícia psicológica e física, tendo também assessoramento judicial.


DISCUSSAO

O caso de Guilherme inicialmente nao difere de muitos outros. Um menino em plena conflitiva edípica, tendo os pais separados e apresentando um comportamento de interesse e curiosidade sobre o pênis. No entanto, essa curiosidade começou a ficar exacerbada e acrescida de uma série de indícios que levaram o terapeuta a se questionar sobre o que mais poderia estar acontecendo com o menino.

Freud, na Conferência XXIII23, fala sobre os caminhos da formaçao dos sintomas e, em determinado ponto, coloca que existem fantasias primitivas, as quais constituem um acervo filogenético. É através delas que o sujeito se conecta, além de sua própria experiência, com a experiência primeva. Essas fantasias incluem, entre outras, seduçao de crianças, observaçao do coito dos pais, castraçao (imaginária e real, como foi em determinada época). Freud salienta que é bem possível que o que é relatado na análise como fantasia possa ter ocorrido na realidade em tempos primitivos da família humana. Dessa forma, as crianças, na fantasia, preencheriam a realidade individual com aspectos da verdade histórica.

No caso de Guilherme, surgiu a dúvida se a fantasia nao se assemelharia à realidade, se o espaço para fantasiar ficaria preenchido por sua realidade individual traumática que encontraria respaldo em suas fantasias primitivas. A realidade externa poderia pressionar seu ego com uma demanda avassaladora para sua idade e a realidade encontraria eco na fantasia.

É o adulto que apresenta à criança a realidade. Ele a vai inserindo no princípio da realidade. Lacan24 diz que esse momento é o encontro com o real na medida em que se supoe a apresentaçao de algo inassimilável por parte do sujeito. Para Guilherme, o outro, o adulto, parece revelar-lhe algo dramático e incompreensível.

Eu, como terapeuta, também sou o outro, em quem Guilherme, no começo do atendimento, nao sabia se podia confiar. No início de nossos encontros, ele se mantinha de costas para mim. Eu nao entendia seu brinquedo, me sentia desanimada, como se houvesse uma barreira entre nós e como se as sessoes nao fossem ficar diferentes. Um incômodo começou a me envolver frente a essa posiçao de Guilherme. Resolvi intervir, mostrando-lhe o que estava sentindo e disse-lhe: "As vezes quando a gente fica muito chateado com alguma coisa, nao consegue nem falar" e acrescentei "sabe, Guilherme, às vezes fico pensando que, quando ficas de costas pra mim, é o jeito que tu tens de também nao te aproximares de mim, porque tu podes pensar que eu posso te fazer algo". Com minhas intervençoes, Guilherme começou a criar um maior vínculo e confiança nas sessoes. Para Mees25, em casos de suspeita de abuso, a relaçao terapêutica é essencial, uma vez que é através dela que o trauma será revelado, reestruturado e o self, reintegrado.

Segue, a partir de um vínculo estabelecido, o trecho de uma sessao em que o brinquedo do menino começou a revelar seu mundo. É importante salientar que os trechos das sessoes apresentados estao inseridos em um contexto em que a terapeuta e o pai do menino já estavam alerta para um possível abuso, tendo em vista o comportamento da mae, relato de vizinhos e o próprio comportamento de Guilherme.

Guilherme começou a apertar com força o giz no quadro e depois de cada desenho apagava-os. Fez isso inúmera vezes.

L: sabe o que eu pensei, Guilherme? (Ele vira-se para mim e fica me olhando, esperando eu falar). Que quando tu desenhas e é algo que te assusta ou que tu nao gostas, tu podes apagar e fazer de conta que isso nunca existiu, apaga tudo. E lá fora, como é quando acontece alguma coisa que a gente nao gosta muito?

G: A gente apaga tudo.

Guilherme continuou brincando no quadro por mais um tempo. E resolveu desenhar um palhaço.

G: Aqui é os olhos, o nariz, o cabelinho e o chapéu. As maos e as pernas. Agora vou fazer outro palhaço. (Faz um palhaço idêntico a um pênis). Ah nao! Esse palhaço é fedorento, agora vou brincar!

L: Ele é fedorento por quê?

G: Por que sim!

Guilherme vira-se para a casinha e pega um homem.

G: Eu vou descer as escadas, tictictic, e mais essas... agora vou subir. Agora vai voar!

Ele leva o boneco até o quarto onde tinha uma mulher deitada e começa a fazer que os dois estao brigando (canta uma música que nao entendo, apenas vejo o movimento).


Segundo Furniss15, é comum que as crianças abusadas sexualmente acreditem que seu corpo está sujo ou contaminado. Neste momento do atendimento, meus pensamentos eram múltiplos, igualmente o eram minhas fantasias a respeito do que estava se passando com ele. Somente as sessoes poderiam me ajudar a entendê-lo melhor. Nao estava claro se esse interesse de Guilherme por pênis era apenas em funçao da conflitiva edípica e se as cenas de sexo reproduzidas na brincadeira eram algo que ele via ou de que fazia parte. Seria mesmo abuso? O monstro a que Guilherme se referia surge nesta sessao, em que ele parece dar àquilo que sofreu de forma passiva uma forma ativa:

G: Tu é o monstro, fica aí bem quietinha... agora eu vou cantar uma música: Tanananan, tanananan. Fica aí!

L: É para eu cantar uma música?

F: Nao!


Guilherme, no escuro, começou a rastejar pela sala com a espada, voltou-se para a porta, e eu estava sentada no chao, encostada nas "patas" de uma cadeira. Ele colocou a espada no meio das pernas, segurando-a com as duas maos, apontando-a para mim (a espada ficou posicionada no mesmo local de seus genitais, como se fosse um enorme pênis). Abaixou-se e rastejou por trás de mim, ou seja, em baixo da cadeira e cantava:

Aivi gotiu beibe!!!!!! Aivi gotiu beibe!!!!!! (I've got you baby, em inglês).

No término desta sessao, minha sensaçao de que Guilherme estava sendo abusado era clara. Senti-me uma personagem de uma história na qual eu nao tinha sido questionada se queria atuar. Tentei, depois deste atendimento, pôr em palavras o que senti: Um menino agoniza. Ele expressa através de seus movimentos tudo que se passa por trás daquilo que é visível, mostra um fantasma interior, baseado em uma realidade traumática. E eu?Pois muito bem, eu me atenho àquilo que se reflete diretamente no meu mundo interior. Que será que ele quer me dizer? Sinto afliçao, medo, quase um horror.

Paula Heimann19 observa que, em relaçao à contratransferência, é necessário que o terapeuta suporte os sentimentos que sao despertados em si próprio em oposiçao à descarga dos mesmos (que é o que o paciente faz) a fim de subordiná-los à tarefa analítica, servindo como espelho para o paciente. Anne Alvarez16 enfatiza que o terapeuta que está atendendo vítimas de abuso deve, primeiramente, lidar melhor com esses sentimentos despertados para nao ser também abusado através da contratransferência.

Em casos de abuso, é difícil discernir, quando nao há indícios físicos como laceraçoes, infecçoes urinárias, se o abuso está mesmo ocorrendo. Conta-se com o relato da criança muito pequena, a qual reflete em sua brincadeira muito de seu mundo interno, que nao é necessariamente a realidade externa. A contratransferência se faz, ainda mais nesses casos, um importante instrumento para a compreensao do paciente. Além disso, os responsáveis pela criança muitas vezes tendem a negar a realidade do abuso por ser muito assustadora. Neste caso, procurei formar um bom vínculo com o pai para que rapidamente pudéssemos proteger Guilherme até que o assunto pudesse ser esclarecido, se fosse possível. Rodrigo prontamente tomou uma série de atitudes para impedir que a mae buscasse Guilherme. Ela podia visitá-lo na casa de Rodrigo. No entanto, sua ambivalência era evidente; seguidamente dizia: "Ele fica se chafurdando...fica em cima das pessoas e nao para......Eu falo pra ele que isso é coisa de boiola... boiola que fica se esfregando".

Segue trecho da sessao seguinte à da brincadeira relatada acima.

Guilherme faz desenhos, um atrás do outro, nos quais começa a tentar desenhar árvore, casas, mas em seguida mistura todas as tintas, em um comportamento francamente ansioso de maneira que seu desenho fique incompreensível e que eu nao possa perguntar-lhe sobre o mesmo.

L: Sabe, Guilherme, fico pensando, quando tu desenhas desse jeito e misturas as tintas assim, que tu tens um segredo, e que por um lado queres me contar, por outro fica difícil.

Guilherme fica me olhando com os olhos bem atentos.

L: Nao precisas me falar que segredo é, mas podes me dizer se o que eu estou pensando, que há um segredo, está certo?

Guilherme me olha no fundo dos olhos e diz: Tá! (com a voz seca e alta).

Continua com as tintas e volta-se para a caixa, coloca seus desenhos ali dentro, abre e fecha até que deixa a chave dentro da caixa e acaba trancadoa lá dentro, já que a fechadura estava virada na posiçao de fechar.


Ficamos, eu e Guilherme, com a caixa, na sessao, impossibilitada de ser aberta. Entao falei:

L: Acho que desse jeito tu estás me mostrando aquilo que estávamos falando antes, que há um segredo contigo e que realmente precisa ficar guardado. Assim como a chave que ninguém consegue tirar da caixa, pois nao tem como abri-la. Mas nós podemos juntos tentar abrir...

Falar com a criança para avaliar uma revelaçao coloca os profissionais sob grande pressao, no sentido de que é necessário obter informaçoes verdadeiras e objetivas. Uma criança ameaçada de puniçao jamais falará sobre o assunto se perguntada diretamente. É preciso ter calma, fazer perguntas neutras, isto é, nao direcionadas para que ela nao perceba que está sendo investigada. O cuidado deve ser no sentido de que a criança nao sinta sua mente invadida como um objeto de pesquisa. As sugestoes de qualquer tipo de agressao precisam vir da criança e nao ser colocadas em sua cabeça. Por outro lado, as deixas oferecidas pela criança sobre a violência sofrida devem ser seguidas. O fundamental é que o profissional vá lhe transmitindo confiança para que ela possa lhe contar sem receios 15.


CONSIDERAÇOES FINAIS

Este caso foi escolhido para ser relatado devido à complexidade dos fatores envolvidos na avaliaçao e à riqueza dos conteúdos revelados nas sessoes de psicoterapia psicanalítica. Procurei mostrar a dificuldade do atendimento de uma criança pequena e já com uma série de vivências importantes a serem pensadas. Embora a comprovaçao física do abuso muitas vezes nao seja alcançada, como no caso de Guilherme, temos, como psicoterapeutas, nossos próprios instrumentos para avaliar a possível existência de abuso sexual. Como foi demonstrado no relato, a contratransferência faz-se muito importante em casos como este. Temos a obrigaçao de proteger nossos pacientes quando entendemos que possa estar acontecendo algum tipo de abuso, mesmo que isso nunca possa ser provado. É claro que, por outro lado, também devemos ser cautelosos. Em primeiro lugar, porque podemos estar fazendo uma inferência de algo que nao é verdadeiro; em segundo, podemos alertar o abusador sobre nossa suspeita de forma que ele interrompa os abusos temporariamente para retomá-los após o período de tratamento; e, em terceiro, exigir confirmaçoes e nao receber o segredo de maneira que a criança possa se sentir segura acaba sendo um abuso do psicoterapeuta com o psiquismo do paciente.

A frase de Sartre1 que citei no início do artigo serve para finalizá-lo "Se a gente só se define opondo-se, eu era o indefinido em carne e osso". Só será possível "repetir, recordar e elaborar" no momento em que paciente e terapeuta tomam uma posiçao, a de se opor ao abuso. É dessa forma que paciente e terapeuta poderao encontrar uma saída. Nao haverá meios, entao, para manter o trauma "esquecido"; os sentimentos emergirao na sessao de forma viva e plena.


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* Psicóloga, especialista em psicoterapia psicanalítica UFRGS/CELG; Mestre em Ciências Médicas: Psiquiatria - UFRGS; especializanda em Neuropsicologia UFRGS.

Endereço para correspondência:
Luciana Terra
Rua Carvalho Monteiro, 234 sala 502
Porto Alegre, RS
E-mail: lucianaterra1@hotmail.com

Recebido em:10/02/2011
Aceito em:03/12/2011

 

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