Rev. bras. psicoter. 2011; 13(2):92-114
Hartmann IB, Schestatsky S. Transmissao do psiquismo entre as geraçoes. Rev. bras. psicoter. 2011;13(2):92-114
Artigos Originais
Transmissao do psiquismo entre as geraçoes
The Psychic Transmission Between Generations
Ingrid Borba Hartmann*; Sidnei Schestatsky**
Resumo
Abstract
"Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu".
Goethe, Fausto.
INTRODUÇAO
O debate sobre a transmissao psíquica é contemporâneo ao nascimento da psicanálise1, embora este tema esteja presente desde a Antiguidade2. Na literatura, é possível observar a repetiçao de tramas em que tragédias familiares imobilizam o sujeito da açao3. A questao da herança transgeracional e intergeracional é um dos aspectos das tragédias clássicas, sempre em trilogias, desenvolvidas a partir do mesmo núcleo - o crime terrível no interior da família, que exige vingança através de outro crime sangrento, desencadeando nova vingança e assim por diante, sem a possibilidade de se interromper a sucessao dolorosa das mortes4. A problemática do Édipo, no plano da tragédia, é transmitida através das geraçoes desde seu avô, pai de Laio. Assim, o discurso de Édipo é também um discurso do outro, que remete ao outro, em uma articulaçao interminável que se dirige, por sua vez, a uma comunidade de homens, deuses e semideuses, cujas origens se confundem com o próprio mito da criaçao do mundo4.
A inscriçao do sujeito em uma cadeia da qual é um elo e à qual se submete - seu desenvolvimento psíquico em relaçao àquilo do qual é herdeiro e que lhe é inconscientemente transmitido e seu forte per-tencimento psíquico a um grupo - todas essas interrogaçoes abordam a questao da transmissao intergeracional e da imposiçao, para o sujeito, de ser herdeiro forçado, beneficiário, mas também pensador e criador daquilo que lhe foi transmitido.
Para compreender a transmissao do psiquismo entre sujeitos, e entre geraçoes, é fundamental compreender a relevância do papel do outro na formaçao do psiquismo do sujeito. As consideraçoes pertinentes à transmissao psíquica entre geraçoes sao encontradas já em Freud, em Totem e tabu (1913), ao se referir à continuidade psíquica na série das geraçoes - e também em Introduçao ao narcisismo (1914), ao destacar que o indivíduo é, em si mesmo, seu próprio fim, mas se encontra vinculado a uma corrente geracional como elo da transmissao, sendo herdeiro da mesma5.
Essas ideias foram ampliadas por Klein, Bion e Winnicott, e se deve a eles a introduçao dos conceitos de relaçao de objeto, funçao alfa e capacidade de rêverie. Outro conceito, o de sujeito do grupo, indica que o sujeito do inconsciente está sempre ligado a um conjunto intersubjetivo de sujeitos do inconsciente, um elo na cadeia genealógica que herda os desejos que precedem sua existência e que organizam seu próprio desejo. É assim que as formaçoes do inconsciente se transmitem pela cadeia das geraçoes1:
Neste conjunto que recebe a criança e que a nomeia, que terá sonhado com ela, que nela investe e lhe fala, o sujeito do grupo se torna sujeito falante e sujeito falado, nao somente pelo efeito da língua, senao pelo efeito do desejo dos que - como... a mae - se fazem também porta-vozes do desejo, da proibiçao, das representaçoes do conjunto, ou seja, ocorrem inúmeras açoes psíquicas que fazem com que o sujeito, em seu inconsciente, perceba uma necessidade dupla: de 'ser para si mesmo seu próprio fim' e também de ser 'o elo de uma cadeia à qual está submetido, sem a participaçao de sua vontade'1.
Nada pode escapar a ser transmitido de uma forma ou de outra. Nenhuma falta, nenhuma transgressao, nenhuma morte, nenhum delito e sua carga de culpa e vergonha podem ser abolidos; obrigados a serem transmitidos... com os impedimentos, interditos, mecanismos de defesa que suscitam, e colocados para evitar que seja conhecido, sabido ou dito o que deveria nao ter sido, o que foi traumático... acontecimentos que irromperam em um momento da história... (e em que) fracassaram as formaçoes e os processos capazes de metabolizá-los, de torná-los pensáveis, de integrá-las em uma psique e em uma história.
A identificaçao projetiva supoe sempre uma confusao, onde algo pertencente ao sujeito passa ao objeto, com o que aquele perde sua individualidade, e este fica investido pelo que, em propriedade, nao lhe pertence. Com isto se outorga ao sujeito uma identidade que lhe é alheia e excêntrica, que borra seus limites, que o sobrepoe com o outro (apud Trachtenberg, p. 47).
... podemos presumir, com segurança, que nenhuma geraçao pode ocultar à geraçao que a sucede nada de seus processos mentais mais importantes, pois a Psicanálise mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um "apparatus" que os capacita a interpretar as reaçoes de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformaçoes que os outros impuseram à expressao de seus próprios sentimentos (Freud, 1913, apud Pereira da Silva, 2003, p. 20).
(...) a açao desse narcisismo de morte se dá através de um radical desinvestimento afetivo e representacional. O desinvestimento ameaça qualquer encontro, qualquer objeto, qualquer experiência que, para ter uma existência psíquica, implique a possibilidade de uma atividade de ligaçao. Qualquer trabalho de desinvestimento bem-sucedido nao deixa traço algum que possa indicar que algo existiu, que algo ocorreu. Esse algo é substituído pelo vazio. Nenhuma saudade, nenhum traço de um objeto perdido. Nada de representaçoes recalcadas (apud Trachtenberg, 2005, p. 61).
O inelutável é que somos postos no mundo por mais de um outro, por mais de um sexo, e que nossa pré-história nos faz, muito antes do nascimento, o sujeito de um conjunto intersubjetivo cujos sujeitos nos têm e nos sustentam como os servidores e herdeiros de seus 'sonhos de desejos irrealizados', de suas repressoes e de suas renúncias na rede de seus discursos, de suas fantasias e de suas histórias. De nossa pré-história tramada antes de nascermos, o inconsciente nos terá feito contemporâneos, porém só chegaremos a ser seus pensadores por ressignificaçao. Essa pré-história, de onde se constitui o originário, está arraigada à intersubjetividade (Kaës, 2001, apud Trachtenberg, 2005, p. 25).
Todas as palavras que nao puderam ser ditas, todas as cenas que nao puderam ser rememoradas, todas as lágrimas que nao puderam ser vertidas, serao engolidas, assim como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa da perda. Engolidos e postos em conserva. O luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta (Abraham e Torok, 1995, p. 248).
1. O pai adotivo de Vera que decide acompanhar o pré-natal e parto da filha biológica, sem que houvesse nenhuma situaçao de emergência que o justificasse: foi uma escolha do pai e da filha, autorizada pela mae, que também serviu de anestesista...
2. A negaçao, por parte de Vera, da longa relaçao entre o marido e suas duas irmas, dentro da própria casa, sem que percebesse "nada" até que o marido lhe contasse. A parte uma crise inicial (histérica?), a paciente também nao quis saber de mais nada sobre o assunto e manteve o casamento inalterado.
3. A negaçao do aspecto incestuoso do relacionamento com Pedro, seu "filho adotivo", que a chama de mae enquanto estao deitados juntos, e a persistência, sem crítica, de planos de casamento com o mesmo.
4. A negaçao da relaçao incestuosa entre os filhos, na adolescência, só revelada anos mais tarde pela filha, com o auxílio de uma pessoa de fora da família para poder ser ouvida.
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