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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2011; 13(2):81-91



Artigos Originais

Falso self, pseudomaturidade, segunda pele e identificaçao adesiva: uma revisao sobre os conceitos

False self, pseudomaturity, second skin and adhesive identification: a conceptual review

Márcia Knijnik*

Resumo

Neste trabalho a autora apresenta, descreve e compara os conceitos de falso self, pseudomaturidade, segunda pele e identificaçao adesiva, baseando-se nas definiçoes originais de Winnicott, Melzer e Esther Bick. No final do trabalho, conclui que os quadros clínicos descritos pelos autores sao semelhantes. O que difere sao as formas como cada autor os pensa ou explica, uma vez que eles partem de postulados teóricos bastante diferentes.

Descritores: Falso Self; Pseudomaturidade; Segunda Pele; Identificaçao Adesiva; Psicanálise; Identificaçao; Teoria Psicanalítica

Abstract

In this article, the author presents, describes and compares the concepts of false self, pseudomaturity, second skin and adhesive identification based on original definitions of Winnicott, Melzer and Esther Bick. At the end of the study, it is concluded that the clinical features described by the authors are similar. The differences between these concepts are the way each author thinks or explains these clinical features, since they start from different theoretical postulates.

Keywords: False Self; Pseudomaturity; Second Skin; Adhesive Identification; Psychoanalysis; Identification; Psychoanalytic Theory

 

 

INTRODUÇAO

O objetivo deste trabalho é descrever e tentar estabelecer possíveis semelhanças e/ou diferenças entre os conceitos de falso self, pseudomaturidade, segunda pele e identificaçao adesiva. A motivaçao para o estudo foi buscar uma maior clareza entre estes conceitos, pois, na minha experiência em discussoes clínicas, percebo que muitas vezes os utilizamos de modo intercambiável, quase como sinônimos.

Assim, na primeira parte do trabalho, baseando-me nos textos clássicos dos autores que cunharam esses termos, Winnicott, Meltzer e Esther Bick, busquei expô-los tais como foram descritos em sua forma original. Na parte final, tentei fazer uma discussao e chegar a algumas conclusoes a respeito de pontos convergentes e divergentes entre os conceitos.


FALSO SELF

O estudo das origens do falso self nos remete ao estágio das primeiras relaçoes objetais. Winnicott1 afirma que, neste estágio, o bebê funciona em um estado de nao integraçao na maior parte do tempo, prevalecendo apenas sensaçoes. Neste contexto, o papel da mae é muito importante. Ela funciona como um ego auxiliar ao do bebê, que o leva a integrar suas sensaçoes corporais, os estímulos ambientais e suas capacidades motoras nascentes. Assim, a mae protege, com seu próprio apoio, o débil núcleo do self infantil. A partir do holding materno, que é o suporte físico e emocional da mae ao bebê, é que ele vai obtendo uma maior coesao entre seus vários elementos sensório-motores.

Se a mae fornece essa proteçao necessária ao ego frágil do bebê, Winnicott1 a descreve como uma mae suficientemente boa. A mae suficientemente boa repetidamente alimenta a onipotência do bebê nesta fase e assim dá força ao seu ego fraco e o self verdadeiro começa a se formar. A mae decodifica e se adapta ao gesto espontâneo e às necessidades do bebê e ele começa a acreditar na realidade externa, resultando no fortalecimento do sentimento de ser real. Isso capacita a criança a gerar uma vida expressiva e a construir um senso de realidade pessoal. O próprio exercício da funçao materna capacita a mae a pressentir as expectativas e necessidades mais primitivas do seu bebê, promovendo uma identificaçao com ele, que lhe possibilita protegê-lo. Winnicott1 define como devoçao esse relacionamento especial da mae com o bebê. A mae, com o suporte do pai, proporciona um meio ambiente sadio e uma resposta conectada ao self postural e sensório-motor do bebê.

Moore e Fine2 afirmam que o self verdadeiro é o "potencial herdado" que constitui a essência da criança (p.223) e que Winnicott1 o considerava mais próximo da representaçao espontânea do id. O impulso espontâneo gestual do bebê (processo primário) expressa o seu self verdadeiro, é a ideia pessoal.

Por outro lado, a mae nao suficientemente boa nao complementa a onipotência do bebê e, assim, repetidamente falha em satisfazer o gesto espontâneo dele e, voltada para si mesma, o substitui por seu próprio gesto, ao qual o bebê se submete para garantir o reconhecimento do amor materno. É a inabilidade da mae de sentir as necessidades do bebê que a leva a impor ao mesmo as suas próprias necessidades. O bebê é seduzido à submissao e, ao submeter-se à mae, inicia a formaçao do falso self. Entao, o falso self é resultante desse estado de privaçao ambiental inicial sobre o desenvolvimento do bebê, no seu relacionamento inicial com a mae.

Assim, o fator relevante é a forma como a mae responde à onipotência infantil revelada nesta comunicaçao gestual inicial do bebê. Ao submeter-se às exigências do ambiente, o bebê perde a espontaneidade e o processo que leva à capacidade de usar símbolos é interrompido. O principal aspecto do falso self é a submissao e a imitaçao, pois o bebê constrói um conjunto de relacionamentos falsos. Por meio de introjeçoes, se torna igual à figura dominante externa do momento, como forma de adaptar-se e preencher suas expectativas e obter seu amor. Essa configuraçao gera no observador uma sensaçao de irrealidade e futilidade. No entanto, se torna inevitável para o bebê, pois mostrar o verdadeiro self seria equivalente a aniquilá-lo, e o falso self surge como uma defesa, com a funçao de ocultar e proteger o self verdadeiro. Em outras palavras, é "melhor" para a criança manter a organizaçao do falso self do que nao sobreviver às condiçoes anormais do ambiente.

A partir da formaçao do falso self, o bebê permanece isolado, nao investe no objeto externo. Inicialmente protesta a esta imposiçao de sobreviver de maneira falsa, podendo manter-se em um quadro de irritabilidade generalizada, ou com distúrbios na alimentaçao. O falso self se implanta e aparece ao observador externo como se fosse a pessoa real. No entanto, ele falha em situaçoes em que o que se espera é uma pessoa inteira. Sao pessoas com pouca capacidade para o uso de símbolos e uma pobreza de vida cultural.

Winnicott1 acrescenta que o convívio social com boas maneiras, de forma conciliadora, é uma manifestaçao normal do falso self, mesmo sendo uma submissao do verdadeiro self a regras de convivência social, a fim de nao se expor. É o equivalente a um self social, que requer uma certa quantidade de falso self. Assim, pode-se dizer que todas as pessoas apresentam algum grau de falso self, necessário para o convívio social e que há um gradiente desse funcionamento em termos de falso e verdadeiro self. A outra extremidade deste espectro é a pessoa que funciona essencialmente com o falso self, com uma rigidez defensiva.

Moore e Fine2 consideram importante salientar que os conceitos de verdadeiro e falso self nao se referem a uma ordem moral, mas à possibilidade de expressao espontânea (self verdadeiro) ou o viver reativo (falso self). Esses autores descreveram o falso self como uma estrutura continuamente operativa, estável e recorrente, tal como o ego.

Winnicott1 descreve o verdadeiro e o falso self, relacionando-os com a divisao de Freud do self em uma parte central, controlada pelos instintos (equivalente ao self verdadeiro) e outra parte que é orientada para o mundo externo (relacionada ao falso self).

Zimerman3, descrevendo o falso self, referiu-se a pessoas que desde criança desenvolvem uma forma imperiosa de adaptaçao e de preenchimento das expectativas da mae e que isto ocorre para garantir o reconhecimento do amor da mae. Essas pessoas utilizam esse mesmo recurso inconsciente de adivinhar o que o outro deseja para obter reconhecimento social. Usam a intelectualizaçao e podem alcançar destaque profissional, mas sua construçao precoce de um falso self faz com que carreguem permanentemente uma desconfortável sensaçao de futilidade e falsidade, por nao conseguirem discriminar o que é o seu rosto e o que é máscara.


PSEUDOMATURIDADE

Em seu artigo "A masturbaçao anal e sua relaçao com a identificaçao projetiva"4, Meltzer enfatiza a contribuiçao dos processos anais na formaçao do caráter. Ele define os processos anais como uma combinaçao de alguns fatores, tais como a valorizaçao narcísica das fezes, as confusoes em torno da zona anal (ânus-vagina e pênis-fezes) e aspectos de identificaçao nos hábitos e fantasias anais baseados em identificaçao projetiva. Ele afirma que o conceito de identificaçao projetiva descrito pela primeira vez por Melanie Klein5 abriu o caminho para essa investigaçao dos aspectos da analidade, que até entao nao haviam sido explorados.

Meltzer4 diz que experiências vividas pelo bebê, tais como o afastamento da mae, o desmame ou o nascimento de novos irmaos contribuem para uma forte idealizaçao do reto e de seus conteúdos fecais. Essa idealizaçao baseia-se em uma confusao de identidade devido à operaçao da identificaçao projetiva, por meio da qual as nádegas do bebê e da mae sao confundidas umas com as outras e ambas sao equacionadas aos seios da mae. A fantasia do bebê seria de uma intrusao secreta no ânus da mae para roubar as suas fezes idealizadas, que o bebê sente que ela retém para alimentar o pai e os outros bebês em seu interior. Os conteúdos no reto do bebê ficam confundidos com as fezes idealizadas da mae, e o bebê começa a explorar seu próprio bumbum. Entao, se as suas nádegas sao equivalentes ao seio da mae, o bebê pode explorar seu próprio reto, autoidealizando-se, e, sem precisar depender do seio, ele se basta, se sente onipotente. Assim, a identificaçao projetiva é usada como defesa contra a dependência.

A idealizaçao narcísica do reto e das fezes como fonte de alimento e a identificaçao projetiva com a mae faz com que se apague a diferenciaçao entre adulto e criança no que se refere a capacidades e prerrogativas. A consequência disto na infância é uma estruturaçao pré-edípica (aos 2 ou 3 anos), de traços de caráter como a docilidade, prestimosidade, preferência por companhias adultas, atitude indiferente ou mandona com outras crianças, intolerância a críticas, uma grande capacidade verbal ou o afloramento de intensos ataques agressivos devido a frustraçoes ou ansiedade. No adulto observa-se um pseudoajustamento às tarefas da vida madura. Há, no entanto, sentimentos de insatisfaçao, de fraude como pessoa, de solidao interna, impotência ou frigidez sexual ou pseudopotência (excitada por fantasias perversas secretas), que apenas sao compensados pela atitude de presunçao e esnobismo que acompanha as pessoas que usam a identificaçao projetiva de forma maciça. Esse quadro Meltzer4 qualifica como pseudomaturidade, uma simulaçao de maturidade de pensamento, atitude, comunicaçao e açao.

O autor descreve a pseudomaturidade como um distúrbio de caráter frequente entre muitas pessoas inteligentes, bem dotadas e aparentemente bem sucedidas que procuram análise. Esta estrutura permite que a criança se desenvolva razoavelmente bem e tranquilamente na vida acadêmica e social. Homens e mulheres podem apresentar uma qualidade fálica dominante, especialmente nos casos em que uma reparaçao maníaca é mobilizada contra a grave depressao subjacente a todos esses casos4.

Até aqui Meltzer4 descreveu a identificaçao projetiva como ligada à zona anal, sugerindo que a fantasia do bebê é meter-se para dentro do reto da mae. Mais adiante, em 1992, diz que o processo de identificaçao com a mae se dá também em outros espaços. No capítulo 5 do livro Claustrum, intitulado "A vida no claustro", Melzer6 ressalta que há uma grande diferença entre uma concepçao do interior da mae que deriva da imaginaçao e outra que é produto da fantasia de intrusao onipotente. Quando predomina a fantasia de uma identificaçao intrusiva onipotente com o objeto interno cria-se uma vida no claustro. Assim, ele descreve mais detalhadamente como se processa a vida no interior do objeto interno, dividindo o corpo da mae em três compartimentos principais: cabeça-peito, o compartimento genital e o reto. Se a fan-tasia intrusiva onipotente leva o sujeito a meter-se dentro da cabeça do objeto, ele acredita ter adquirido a capacidade de olhar com os olhos e ouvir com os ouvidos da mae ou do pai. Isso o leva à convicçao de pertencer a uma elite e de ser possuidor de uma capacidade de compreensao onisciente, uma sensaçao de possuir todo o conhecimento e sabedoria - o que Melzer descreveu como um delírio de clareza do insight. As características do sujeito sao de pseudomaturidade e desprezo pelos demais7.

Assim, Meltzer6 modifica a sua visao, descrevendo a mesma caracterologia de pseudomaturidade como sendo própria de um enclausuramento no compartimento cabeça-peito e reserva para o enclausuramento no reto da mae os casos onde predominam o sadismo, a perversao, a adiçao e, sobretudo, os vínculos negativos.


A FORMAÇAO DA SEGUNDA PELE

Assim como Winnicott1 fala de um estágio de nao integraçao, no mesmo sentido Esther Bick8 estudou a funçao primária da pele do bebê e de seus primeiros objetos na uniao mais primitiva de partes da personalidade ainda nao diferenciadas de partes do corpo. A autora parte do estágio inicial nao integrado do bebê, onde ele necessita da introjeçao de um objeto externo capaz de cumprir a funçao interna de conter e unir as partes do self sentidas pelo bebê como nao integradas. Inicialmente, o que as une é a pele como limite, evitando que a personalidade se despedace em fragmentos. O bebê busca esse objeto intensamente, a autora afirma: "O objeto ótimo é o mamilo na boca, juntamente com a mae que segura a criança, fala com ela e tem um cheiro familiar"8 (Bick, p.195).

Para Bick8, esse objeto continente é sentido concretamente pelo bebê como uma pele e é com sua introjeçao que se cria a percepçao de um espaço interno no qual os objetos podem ser introjetados. A identificaçao com a funçao integradora do objeto é o que mais tarde substitui o estado nao integrado e dá origem à fantasia de espaços internos e externos. A partir daí é que a cisao primária e a idealizaçao do self e do objeto conforme descritas por Melanie Klein5 podem operar. Esther Bick8 salienta que há uma diferença entre a nao integraçao enquanto experiência passiva de total desamparo e a posterior desintegraçao defensiva ativa que se dá através do processo de cisao ao longo do desenvolvimento.

Hinshelwood9 coloca que, através da observaçao de bebês, Bick percebeu que o contato com a pele na interaçao mae-bebê é o elemento mais importante nesse relacionamento inicial e é determinante nas primeiras introjeçoes do ego. O primeiro objeto é o que dá ao bebê a sensaçao de existir e, mais adiante no desenvolvimento, de ter uma identidade.

Bick8 entende que o desenvolvimento defeituoso dessa funçao continente de pele gera uma ausência de espaço interno comum no autismo. Se o objeto real (mae) falha nesta funçao continente, ou se o bebê o ataca excessivamente em fantasia, ele nao consegue introjetar o objeto continente. Isso leva ao desenvolvimento defeituoso dessa funçao de pele, engendrando uma "segunda pele", através da qual a dependência do objeto é substituída por uma pseudoindependência. A segunda pele é criada para funcionar como um substituto para essa funçao de pele continente. Essa formaçao de pele defeituosa produz uma fragilidade geral na integraçao e nas organizaçoes posteriores do individuo.

Segundo Hinshelwood9, para desenvolver um método de manter-se unido, o bebê gera fantasias onipotentes que evitam a necessidade da experiência passiva do objeto. Trata-se de uma vivência de fragilidade na dependência primordial do objeto materno. A formaçao da segunda pele dá-se, entao, em estados de nao integraçao. Estes sao distintos da regressao por serem mais primitivos, anteriores à integraçao.

O quadro clínico é descrito como a apresentaçao de um tipo parcial ou total de concha muscular ou da musculatura verbal correspondente. Isso envolve os tipos mais básicos de nao integraçao parcial ou total do corpo, da postura (pode ser curvada ou enrijecida), da motilidade e das correspondentes funçoes mentais, particularmente a comunicaçao. Os estados nao integrados no bebê podem manifestar-se por tremores, espirros, movimentos desorganizados, distúrbios somáticos, agressividade. Nos adultos, Bick8 descreve características de suscetibilidade, futilidade, necessidade de atençao e de elogios, facilidade para magoar-se e espera constante de uma catástrofe. Essas características podem alternar-se com agressividade, tirania, sarcasmo e inflexibilidade.

Para Esther Bick8, a capacidade de gerar fantasias de um espaço continente é ela própria adquirida de um objeto. Diz ela que, na ausência desse objeto continente, a funçao da identificaçao projetiva permanecerá inquebrantável, gerando todas as confusoes de identidade consequentes a ela. Essa afirmaçao soa estranha com a ideia anteriormente exposta pela autora de que, se o bebê ainda nao tem noçao de espaços internos e externos, entao como se poderá pensar em projeçao para dentro do objeto conforme a definiçao específica de identificaçao projetiva? É sobre isso que Meltzer vai trabalhar ao descrever o conceito de identificaçao adesiva.


IDENTIFICAÇAO ADESIVA

Em seu artigo "Identificaçao adesiva", Meltzer10 faz uma ampliaçao de suas ideias sobre a identificaçao projetiva. Ele parte das investigaçoes de Esther Bick8 e descreve a identificaçao adesiva como um tipo de identificaçao narcisista que nao é a identificaçao projetiva.

O autor começa seu raciocínio apresentando a identificaçao introjetiva descrita por Freud como um processo que se inicia com o estabelecimento do ego ideal e do ideal de ego e culmina com a resoluçao do complexo de Édipo e o estabelecimento do superego. Freud descreve o superego como um precipitado de relaçoes de objeto internalizadas a partir do complexo de Édipo genital. Assim, a criança assume ou introjeta os preceitos externos, identificando-se com as figuras que lhe sao importantes para formar sua identidade própria.

Em seguida, Meltzer acrescenta que Melanie Klein transpôs o processo de introjeçao e projeçao para um momento anterior no desenvolvimento, pois afirma que desde o inicio o bebê introjeta o seio bom e mau como objetos parciais e que esses objetos parciais internalizados sao precursores do superego, pois o bebê os ataca e sente culpa pelos ataques ao objeto. Para Melanie Klein5, a identificaçao introjetiva, a aspiraçao a chegar a ser como o objeto pressupoe a percepçao de um objeto total, que só é conquistada na posiçao depressiva. Em 1946 Klein5 descreveu o mecanismo de identificaçao projetiva, afirmando que as identificaçoes narcisistas se produziam por identificaçoes projetivas. A identificaçao projetiva é narcísica, porque o sujeito projeta partes suas para dentro do objeto e o objeto é desconsiderado, passa a ser como aquele que projetou e nao como ele é.

Depois dessa introduçao que retoma a evoluçao dos conceitos de identificaçao introjetiva e projetiva, Meltzer10 acrescenta algo novo. Ele relata que, em sua experiência clínica, começou a observar que, em certos tipos de pacientes, ocorria algo a mais, algo que estava conectado aos processos de identificaçao e ao narcisismo, mas que era diferente da identificaçao projetiva.

Assim, Meltzer10, a partir da sua experiência com crianças autistas, e Esther Bick8, pela experiência com crianças psicóticas e com observaçao de bebês, descreveram situaçoes em que, por um estado de nao integraçao, nao há uma noçao de espaço interno no indivíduo. Ambos observaram que esses pacientes, em seus processos de identificaçao, nao utilizam a introjeçao, nao aprendem a partir de experiências reais, mas apenas imita outras pessoas, nao usam a imaginaçao e identificam-se nao com o interior do objeto, mas com a sua superfície externa. Portanto, sao pessoas que nao utilizam a identificaçao projetiva, nao observam as suas próprias reaçoes, mantêm-se sempre como que se espelhando nos olhos dos outros, copiando, imitando, sempre ligadas na moda, preocupadas com o status; sao pessoas que olham primeiro o valor de uma obra de arte para depois decidirem se gostam dela ou nao.

Esses autores começaram a perceber que a imitaçao representava a experiência e a fantasia de apegar-se a um objeto, em oposiçao a projetar-se para dentro dele como seria na identificaçao projetiva. Meltzer10 entende que o funcionamento em identificaçao projetiva pressupoe a existência de um espaço interno em si próprio e no objeto, um espaço limitado onde o indivíduo possa projetar e reintrojetar (colocar as coisas). Esse espaço é adquirido através da experiência com um objeto que mantém unida a personalidade. Se essa primeira conquista fracassa, o bebê é incapaz de projetar ou introjetar e "a personalidade é sentida como a vazar sem contençao em um espaço sem limites"9 (p. 208). Se nao há este espaço interno próprio e nem no objeto, nao há identificaçao projetiva nem introjetiva. Neste caso, a saída é uma identificaçao por adesao, por imitaçao, funcionando como um espelho que nao passa pela imaginaçao e nem pela criaçao.

Em síntese, na ausência de espaços internos nos quais possa projetar (identificaçao projetiva), surge o fenômeno de "aderir" a objetos por meio de uma identificaçao adesiva9 (p. 410). Este autor considera que a identificaçao adesiva ocorre por um lapso no desenvolvimento de um senso de espaços internos, que conduz a uma tendência a relacionar-se com os objetos de uma forma bidimensional, superficial, sem profundidade, configurando um distúrbio caracterológico onde tudo soa como nao autêntico, por ser uma adesao pela superfície, por imitaçao.


DISCUSSAO

Os autores descrevem quadros clínicos que têm uma caracterologia muito semelhante, onde o que predomina em todos eles é uma condiçao de falsidade, de ausência de profundidade nas experiências emocionais e uma tendência à imitaçao ou substituiçao do verdadeiro e que esta é uma situaçao criada e mantida como uma forma possível de sobrevivência psíquica diante de uma realidade externa e/ou interna adversa.

A diferença entao nao está no quadro clínico, está na forma de pensar esses quadros clínicos, que é própria de cada autor, pois eles partem de referenciais teóricos bastante diferentes. Consequentemente, a escolha de um desses pontos de partida teóricos implicará diferenças na técnica.

A meu ver, Winnicott e Bick sao os autores que mais se assemelham na maneira de pensar, pois ambos dao uma ênfase fundamental para a funçao materna ou funçao continente integradora no desenvolvimento do bebê. E é na falha da funçao materna de holding ou continência que os distúrbios de falso self e segunda pele vao aparecer.

No entanto, Bick difere de Winnicott em um ponto, pois ela acrescenta que, além das falhas ambientais, as fantasias do bebê de ataque ao objeto também podem contribuir para a formaçao da segunda pele.

Winnicott1 defende uma teoria desenvolvimentista ao descrever a formaçao do verdadeiro self. Enquanto isso, Meltzer4 se vale da teoria da identificaçao projetiva para entender a dinâmica do funcionamento da pseudomaturidade. Esther Bick8, por sua vez, afirma que na formaçao da segunda pele a identificaçao projetiva permanece inquebrantável, gerando confusoes de identidade. Mas, ao mesmo tempo, ela pressupoe que nao existe ainda a noçao de espaços interno e externo no bebê. Isso nao parece coerente com a definiçao própria de identificaçao projetiva. Melzer debruça-se sobre essa questao e observa casos onde nao há identificaçao introjetiva e nem projetiva e sim uma identificaçao por adesao, pela superfície.

Vale lembrar Freud11, que, em 1920, em "Além do principio do prazer", nos falou de trauma e da existência de um escudo protetor para o desamparo do bebê. Ele descreveu o organismo como uma "vesícula viva", protegida das excitaçoes externas por uma camada ou escudo protetor, afirmando que o trauma ocorre quando essa camada sofre uma efraçao ou se funciona de forma defeituosa. Assim, para Freud, as excitaçoes traumáticas seriam aquelas que, pelo excesso de energia, sao capazes de romper as proteçoes do aparelho psíquico, atravessando o escudo protetor. Penso que os autores aqui estudados contribuíram com os seus entendimentos sobre o que ocorre quando esta situaçao traumática se dá no inicio do desenvolvimento.


CONCLUSAO

As teorias, assim como as diferentes concepçoes desses autores, sao hipóteses, conjeturas para tentar entender os quadros clínicos, nenhuma sendo a única verdade. Em outras palavras, conceitos sao abstraçoes, nao existem concretamente, sao formas encontradas para pensarmos e tentarmos explicar os fenômenos observados, onde cada autor segue um caminho diferente.

Assim, penso que estes autores procuraram elaborar modelos que nos permitem pensar que a vivência de situaçoes traumáticas no momento inicial de estruturaçao do psiquismo do bebê traz sérias consequências para o seu desenvolvimento. Ou seja, os quadros clínicos aqui descritos sao a consequência de o bebê nao ter internalizado um bom objeto para se relacionar e depender, seja por uma falha ambiental ou por possuir uma carga instintiva muito agressiva. E assim o bebê cresce e a pessoa configura um funcionamento baseado mais no predomínio da onipotência do que na possibilidade de dependência e de confiança, voltando-se mais para si do que para a vida de relaçao com os objetos, ou essa relaçao fica mais baseada em uma superficialidade defensiva.

Referências

1. Winnicott DW. Distorçao do ego em termos de falso e verdadeiro self . In: O ambiente e os processos de maturaçao. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990. p. 128-139.

2. Moore B, Fine EBD. Termos e conceitos psicanalíticos. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992.

3. Zimerman DE. Vocabulário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas; 2001.

4. Meltzer D. Masturbaçao anal e sua relaçao com a identificaçao projetiva. In: Spillius E. Melanie Klein hoje. Rio de Janeiro: Imago; 1988. v.1, p. 110-124.

5. Klein M. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In: Inveja e gratidao e outros trabalhos 1946-1963. Rio de Janeiro: Imago; 1991.

6. Cruz JG. Donald Meltzer: sua influência em minha clínica. Revista de Psicanálise da SPPA 2004; 11:567-76.

7. Meltzer D. Identificaçao adesiva. Jornal de Psicanálise 1986;19:40-52.

8. Bick E. A experiência da pele em relaçoes de objeto arcaicos. In: Spillius E. Melanie Klein hoje. Rio de Janeiro: Imago; 1988. v.1, p. 194-198.

9. Hinshelwood RD. Dicionário do pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

10. Meltzer D. A vida no claustro. In: Claustrum. Buenos Aires: Spatia; 1994.

11. Freud S. Alem do principio do prazer (1920). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 18, p. 11-85.










* Psicóloga (PUCRS); especialista em diagnóstico psicológico (PUCRS); especialista em psicoterapia psicanalítica UFRGS/CELG; membro aspirante SPPA.

Endereço para correspondência:
Marcia Knijnik
Avenida Itaqui, 72 / Sl 503 - Petrópolis
Porto Alegre / RS

Recebido em: 26/07/2010
Aceito em: 13/12/2010

 

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