ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2011; 13(1):51-59



Relato de Caso

Sonhar é preciso; Viver nao é preciso

Dreaming is necessary; Living is not

Elena Beatriz Tomasel da Silva1

Resumo

Os sonhos foram centrais na fundaçao e no desenvolvimento de toda a teoria de Freud e têm sido motivo de estudo, discussao e entendimento ao longo da evoluçao do pensamento e da técnica psicanalítica. No caso clínico que descrevo neste trabalho, os sonhos têm particular importância. Estes sao alguns dos motivos que me instigaram à elaboraçao do mesmo, no qual apresento uma vinheta clínica da evoluçao de uma psicoterapia de orientaçao analítica. Dessa vinheta foram trabalhados dois sonhos que entendi como progressivos, por demonstrarem o mesmo conteúdo onírico, porém simbolizado de forma ampliada. Essa diferença na encenaçao onírica foi entendida como um dos sinais de evoluçao da psicoterapia e, desta forma, um dos indicadores de mudança psíquica. Associado ao material clínico, descrevo uma breve revisao teórica de alguns dos conceitos de Freud sobre sonhos.

Descritores: sonhos; mudança psíquica; psicoterapia de orientaçao psicanalítica; transtornos da alimentaçao.

Abstract

Dreams were crucial in the foundation and development of the whole Freudian theory. Dreams have been studied, discussed and understood throughout the evolution of psychoanalytic thought and technique, being particularly important in the clinical case described in this study. These are some of the motives that led me to develop it, presenting a clinical vignette of the evolution of a psychoanalytic psychotherapy. Two dreams described in this vignette were delved on, which were seen as progressive due to their showing the same oneiric content, however variously symbolized. This difference in oneiric staging was understood as one of the signs of psychotherapeutic evolution and, thus, one of the indicators of psychic change. In association with the clinical material, a brief theoretical review on some Freudian concepts of dreams is sketched.

Keywords: dreams; psychic change; psychoanalytic psychotherapy; eating disorders.

 

 

PALAVRAS DE PORTICO

NAVEGADORES ANTIGOS tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso;
viver nao é preciso.".
Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar
com o que eu sou: viver nao é necessário; o que é necessário é criar.
Nao conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la
grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a
lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a
perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do
meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evoluçao da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

Fernando Pessoa5



INTRODUÇAO

Bella, na plenitude de seus 25 anos, é surpreendida por um sonho. Isso faz com que sinta ter uma posse, algo valioso que é dela, que está dentro dela. Antes costumava queixar-se, com frequência, de nao conseguir sonhar. Paradoxalmente, enquanto acordada, perdia-se em devaneios nos quais desejava ser magra, pois isso significaria ser bonita e, só assim, aceita e amada.

Sua infância foi marcada por severas restriçoes alimentares e rígidas exigências estéticas da família. Aos 14 anos iniciou, por sugestao de uma amiga, uma rotina de ataques e expulsoes sistemáticas de alimentos. Aprendeu, dessa forma, a acalmar-se usando repetidos movimentos de encher-se e esvaziarse de comida. Sua voracidade apenas podia ser aplacada com uma quantidade absurdamente exagerada de alimentos a ponto de deixá-la esticada, estourando. Assim, aprendeu a livrar-se dos excessos vomitando, o que logo se tornou um hábito de higiene pessoal.

Iniciou tratamento com a frequência de duas sessoes por semana, muito motivada a romper com esse padrao de comportamento sentido como um descontrole. Percebia-se submetida, subjugada, escravizada por algo que estava fora dela. Após algumas semanas de psicoterapia, já nao vomitava, e alguns meses depois começou a perceber seu corpo de forma mais real.

Desenvolvo neste trabalho a ideia de que o sonho, além de ser o guardiao do sono e o realizador de desejos inconscientes1, pode também ser um potencial sinalizador de mudança psíquica. Para tanto, utilizo-me de alguns conceitos de Freud sobre sonhos, associando-os ao material clínico de Bella. Através da descriçao de duas situaçoes oníricas vivenciadas pela paciente e examinadas ao longo do tratamento, percebo uma evoluçao de alguns dos elementos oníricos, o que motivou a elaboraçao desta descriçao.


COMPORTAMENTO PROIBIDO NA VIGILIA, PERMITIDO NO SONHO

A cena do PRIMEIRO SONHO (oitavo mês de tratamento) foi assim descrita pela paciente: "(...) entro na cozinha de minha mae, abro a geladeira, pego tudo que consigo e vou engolindo, colocando tudo para dentro e depois corro para o banheiro para me livrar de tudo... como eu sempre fazia antes (...)". A percepçao de Bella desse sonho se deu com a seguinte fala: "Sonhei com uma coisa que eu fazia quando acordada, muito real, parecia que estava acontecendo tudo de novo. Acordei apavorada, porque parecia de verdade, eu naquela cozinha devorando tudo e depois correndo para o banheiro para vomitar, tudo o que eu já tinha vivido. Acordei assustada, sentindo o cheiro de vômito, revirando o lençol para limpar a sujeira e, de repente, que alívio, me dei conta de que tinha sido tudo só um sonho."

Esse sonho é vivenciado pela paciente como um alívio. Primeiro por ter conseguido, finalmente, sonhar o que antes atuava. Depois por ser capaz de recordar o sonho e a seguir pela sensaçao de preenchimento gerado por ele. A cena onírica que preenche representa, para ela, um bem muito valioso. É apenas um sonho, mas, por ser vivido como se fosse real, fica registrado em sua memória e inaugura uma descoberta, uma espécie de epifania onírica. A açao acontece no sonho e assim Bella está protegida, pois no sonho pode acontecer. O indesejável é que aconteça na vigília. O surgimento desse alívio é acompanhado por uma mudança no curso do tratamento. A paciente percebe-se diferente após esse primeiro sonho. Aquilo que era vivido no corpo, no fora, agora é vivido na mente, no dentro.

Acompanho Bella em seu percurso rumo ao descobrimento da importância desse sonho e do efeito que o mesmo ocasionou em sua mente, em seu comportamento, em sua vida. Essa jornada a dois motivou-me a mergulhar no estudo do universo onírico. Desta forma, inicio com uma breve revisao de alguns textos de Freud sobre sonhos.


O ENTENDIMENTO SOBRE O PRIMEIRO SONHO

Freud2, em Um Sonho Probatório, inicialmente se questiona sobre a possibilidade de haver, além de sonhos de realizaçao de desejo (e de ansiedade), outros tipos de sonhos como sonhos de admissao, de advertência, de reflexao e de adaptaçao. Porém, logo afirma que nao há muito sentido nessa diferenciaçao e conclui que nao se pode colocar o caráter realizador de desejos dos sonhos no mesmo nível que seu caráter de advertência, admissao, tentativa de soluçao etc. sem negar o conceito de uma dimensao psíquica de profundidade. Portanto, continua a valer a máxima de que o sonho é sempre a realizaçao de um desejo e que isto ocorre na profundidade, enquanto em outros níveis, o mesmo sonho pode também ser um sonho de admissao, de advertência, de adaptaçao etc.

Penso, entao, que o sonho dessa paciente, em um primeiro entendimento, é um sonho de admissao do seu receio de recaída. Após relatar o sonho, admite seu medo de voltar a usar o padrao de encher-se e esvaziar-se, pois esse padrao, agora sonhado, pensado, falado, ocupando um espaço mental, preenchendo sua sensaçao de vazio interno, faz com que Bella reconheça um novo sentimento: o medo de recair. Um sonho de repetiçao de um comportamento que antes era real agora está advertindo sobre seu medo.

Nesse mesmo trabalho, Freud2 alerta sobre a importância da contextualizaçao do sonho, ou seja, a maneira como ele é relatado e trabalhado pelo paciente:

A traduçao do sonho depende unicamente dos produtos da associaçao, mas também temos de levar em conta as circunstâncias de sua narraçao, o comportamento do que sonhou antes e depois da análise dos sonhos, bem como toda observaçao e revelaçao feita pelo que sonhou durante a mesma ocasiao - durante a mesma sessao analítica (p. 294).


Na experiência com Bella, constato o que diz Freud2 sobre a contextualizaçao do sonho, sua narraçao e o comportamento antes e depois dessa experiência onírica. Ao contar o sonho, a paciente associa-o aos cuidados que vem mantendo na vida de vigília, suas reasseguradoras e constantes evitaçoes de situaçoes que poderiam colocá-la em risco.

A clareza e coerência desse primeiro sonho, o qual mostra a repetiçao onírica de um comportamento antes real, com o objetivo de buscar uma soluçao para o problema, remetem-me a Freud3 quando descreve os sonhos infantis como aqueles livres de deformaçao, por serem breves, claros, coerentes, fáceis de entender e sem ambiguidade. Freud3 esclarece que, apesar de a deformaçao onírica acontecer já no início da infância, numerosos sonhos de adultos apresentam essas características e conclui com "facilidade e cer-teza" que o sonho da criança é a reaçao, durante o sono, à experiência que teve no dia precedente. Diz que é um ato mental inteligível e válido que nao exige atividade interpretativa, por nao apresentar qualquer deformaçao onírica, e aqui ele ressalta que "a deformaçao onírica nao faz parte das características essenciais do sonho" (p. 131) e proporciona uma satisfaçao direta, indisfarçada do desejo.

Ou seja, esse primeiro sonho da paciente pode também ser considerado um sonho infantil, no qual a cena onírica repete as tantas situaçoes de compulsao alimentar, antes vividas na vigília para aliviar-se de algo nao pensado, nao simbolizado, apenas atuado. Infantil por tratar-se da realizaçao imediata do desejo de vomitar, que busca e encontra satisfaçao através da experiência alucinatória onírica. Na vigília a autocensura agora impede que o ato aconteça, enquanto o sonho representa a satisfaçao do que é renunciado quando acordada. Sonha com aquilo que a realidade a obriga a renunciar. O que agora está proibido, represado, recalcado - entrar para dentro da cozinha-mae-geladeira - pode ser sonhado. Através do tratamento, construiu-se o reprimido, e a angústia sem nome que era evacuada através de compulsoes e vômitos pode ser sonhada.

A descoberta de ser capaz de sonhar ao invés de atuar e, mais do que isso, de lembrar-se da cena ao acordar, preenche-a e ilumina, pois algo do sofrimento real da atuaçao inseriu-se na mente e migrou para o sonho. A realidade "entra para dentro" na cena da geladeira. É claro que Bella assustara-se com essa intensa realidade onírica. Revirara lençóis procurando a confirmaçao da realidade: o real é que tudo tinha sido apenas um sonho. A partir do momento em que para de atuar - empanturrar-se e esvaziar-se - enfrenta a angústia de conter, de deixar os alimentos dentro de seu corpo. Os nutrientes penetrando suas células e seu inconsciente sendo penetrado por vários elementos até que, formada a repressao, ela consegue sonhar. Confiando no estado de paralisia motora do sono, a consciência de Bella é atravessada por várias representaçoes rejeitadas na vigília, seu aparelho psíquico, antes poroso assim como seu corpo, que nada retinha, agora retém, lembra, aproveita, preenche-se do sonho, demonstrando uma pequena transformaçao através da contençao de alguns elementos psíquicos.


INDICAÇAO DE UMA MUDANÇA ATRAVÉS DE OUTRO SONHO

Meses depois, quando está prestes a encerrar sua graduaçao, sair da casa da mae e ir morar sozinha, Bella relata um SEGUNDO SONHO: "(...) minha nova geladeira é verde, tem um rosto e parece de brinquedo, tento me aproximar da geladeira e ela anda para trás, ri para mim, que nao consigo chegar perto e abrir a porta. Fiz mais uma tentativa e a geladeira rindo, gargalhando, se afasta com seus pés, andando para trás e eu nao consigo abrir a porta (...)". A paciente acorda com uma sensaçao de "geladeira amiga protetora".

Percebe-se aqui uma perfumada diferença. Trata-se agora de um sonho com fantasia, ilogicidade, insensatez. É o mesmo tema, mas apresentado com outro cheirinho. A geladeira, que é nova, verde, tem um rosto, sorri, tem pés, caminha, brinca com Bella, que nao se assusta e entende que, agora, o de fora nao a ameaça. A geladeira com características antropo-mórficas confirma a hipótese da cozinha-mae-geladeira, somente que, neste segundo sonho, acrescida e transformada pelo tratamento. Penso que essa geladeira humanizada, agora um objeto bom, protetor, tem sua cor justificada por alguns elementos verdes existentes no setting (uma parede pintada de verde, cadeiras verdes na sala de espera, plantas verdes), enfim, um colorido transferencial. A mente de Bella, aqui, demonstra uma capacidade de simbolizaçao ampliada. Produz um sonho com indícios de elaboraçao secundária, pois, apesar da aparente falta de lógica, o sonho é inteligível, coerente.

A elaboraçao secundária, descrita por Freud1, possui a capacidade de preencher lacunas, transformar sucessivas imagens desconexas, possibilitar alguma coerência, aproximar partes com aparente falta de sentido, adicionar fantasias diurnas, restos de leituras, devaneios, fragmentos de conversas, tudo posto em uma cena coerente.

Estamos em outra etapa do tratamento. Esse sonho lembra-me do anterior e, acionada pela recordaçao, pergunto a Bella se percebe diferença entre os dois sonhos. Ela me diz: "(...) parece que eu estou um pouco melhor... continuo com medo, mas o meu medo mudou. Nao tenho mais medo de ter compulsao. A geladeira é minha e parece que eu posso cuidar dela... cuidar de mim (...)".

O trabalho com esses dois sonhos me fez pensar, pela relaçao direta que ambos possuem, na elaboraçao que surge com a "sequência" deles. Como descreve Freud1, existe a elaboraçao secundária, que acontece no próprio sonho para que ele possa ser lembrado, entendido, interpretado. Na sequência entre os dois sonhos, observo uma evoluçao através da mudança dos elementos presentes e transformados, como se existisse uma "elaboraçao terciária", um working through na sequência dos elementos oníricos. Bella entende a relaçao entre os dois sonhos como sinal de melhora e percebe-se protegida da ameaça que vem de fora. No meu entendimento, houve uma ampliaçao de sua capacidade mental, o que me leva a pensar no uso do sonho como uma maneira, entre outras tantas possíveis, de avaliar o andamento da psicoterapia e seu prognóstico.


ESPECIFICIDADES DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES

Agora creio ser o momento para fazer alguns comentários sobre certos sintomas característicos apresentados por pacientes com transtornos alimentares, como é o caso de Bella. Persano4 descreve sintomas, entre os quais se destacam, por exemplo, a alexitimia (incapacidade de expressar sentimentos), o vazio mental e a organizaçao porosa do aparelho psíquico (permeável tanto para o ingresso como para a saída de alimentos e de conteúdos psíquicos, que nao podem ser alojados no continente da mente). Refere também as sensaçoes de vazio e futilidade que podem levar esses pacientes a tentar uma busca de alívio através de condutas evacuatórias, chamando a atençao para o uso que fazem da linguagem nao verbal para manifestaçao de suas emoçoes.

Ou seja, o viver para os pacientes que apresentam essas patologias parece estar impregnado de impossibilidades representacionais, o que me leva a pensar na urgência do sonhar como uma das saídas para o preenchimento do vazio mental e físico sentido por eles. É neste sentido que, parafraseando Fernando Pessoa5 em suas "Palavras de pórtico", pego para mim o espírito da frase que diz que "Navegar é preciso; viver nao é preciso" e o transformo em Sonhar é preciso; viver nao é preciso. O sonhar aqui funcionando como uma necessidade de instalar um espaço-vida mental necessário para a construçao de uma rota-caminho, que pode levar à descoberta de um continente-vida povoado de símbolos e representaçoes. Se o viver significa atuar - comer e vomitar -, entao sonhar, para esses pacientes, é muito mais preciso do que viver.

Ana Azevedo6, em seu artigo sobre Mudança Psíquica e Sonhos, apresenta a ideia do sonho como uma forma de pensamento que surge no lugar das atuaçoes. O sonho instala-se no lugar das atuaçoes.

Ferenczi7, na Conferência proferida em 1909 na Sociedade Real de Medicina de Budapeste, ao descrever os estudos de Freud sobre sonhos, ressalta o incontestável valor diagnóstico deles. Sugere e estimula o estudo sistemático da psicologia e da patologia dos sonhos ao afirmar que inúmeros fatos confirmam a existência de representaçoes oníricas características na neurose de angústia, na histeria de angústia, na neurose obsessiva, assim como na demência precoce e na paranoia. Diz também que os sonhos de alcoólatras e epilépticos, povoados de animais, de combates contra a água e o fogo, eram objeto de um estudo sistemático. Ou seja, Ferenczi alerta para a especificidade dos sonhos relativos a determinadas patologias psíquicas. Nao sei se existe a categoria dos sonhos característicos de transtornos alimentares; contudo, penso que, caso exista, poderia incluir os dois sonhos aqui descritos.

Miranda8, em um artigo no qual descreve situaçoes clínicas referentes a distúrbios alimentares, apresenta o sonho de uma paciente no qual percebo alguma semelhança com o caso de Bella. Nesse sonho há uma personagem que em determinado momento diz: "(...) surge uma menina... e se esconde no freezer. Digo a ela que ela nao pode ir, porque vai ficar doente e ela me responde: 'Nao tem importância, estou acostumada a ficar em freezer. Estou congelada há muito tempo.'"


CONSIDERAÇOES FINAIS

Ao longo da psicoterapia, várias vezes Bella fez referências ao primeiro sonho, o que me levou a entender a importância do mesmo para ela: o sonho inaugurou uma nova capacidade sua, a de parar de vomitar.

É relevante assinalar como Bella queixava-se com insistência de seu nao sonhar. Isso era vivido como se fosse um sintoma, uma incapacidade. Necessitava sonhar e lamentava nao consegui-lo. Talvez isso possa ser entendido, nessa situaçao específica, como sinalizaçao de sua percepçao inconsciente da necessidade de antes sonhar, para só depois poder mudar o comportamento. Sonhar para deixar de atuar. Obviamente nao é que ela nao sonhasse; ela sonhava, mas a falta de acesso ao registro do sonho era trabalho da resistência. O enfraquecimento da resistência ensejou a recordaçao do sonho e, a partir daí, a elaboraçao secundária e depois a "terciária".

Penso agora, enquanto concluo minha escrita, na geladeira verde. Para além das questoes do estímulo do setting colorindo de verde essa geladeira, entendo o verde como o representante de algo que nao está maduro - o verde do incipiente, do novo, do embrionário. Penso no primitivo desejo inconsciente de Bella de entrar para dentro da geladeira-seio, de invadir o corpo da mae através do assalto à geladeira. Ainda nao tínhamos, nós duas, espaço para este tipo de entendimento. Agora foi criado um novo espaço, como mostra o sonho.

Além disso, nao era o objetivo do presente trabalho enfocar a questao do desejo inconsciente primitivo, mas sim a mudança dos elementos oníricos. Os alimentos-elementos psíquicos ainda estao lá dentro da geladeira e é preciso ainda um tempo para abri-la. Lá dentro há de estar nao a comida concreta, alimento do corpo, mas os alimentos-elementos psíquicos; nao mais a barriga e a boca, mas a mente. A geladeira fechada que se afasta, caminhando para trás, me conta que alguns elementos mentais ainda estao na geladeira, contudo ainda nao é hora.


REFERENCIAS

1. Freud S. A interpretaçao dos Sonhos (1900). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1972. v. 4-5.

2. Freud S. Um Sonho Probatório (1913). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1972. v. 12, p. 291-99.

3. Freud S. Sonhos de Crianças (1915). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1972. v. 15, p. 129-38.

4. Persano HL. Contratransferência em pacientes com transtornos alimentares. In: Zaslavsky J, Santos M J P dos S Contratransferência: teoria e pratica clínica. Porto Alegre: Artmed; 2006. p. 150-66

5. Pessoa F. Poesias. Porto Alegre: L± 1996.

6. Azevedo AMA. Mudança psíquica e sonhos: sua relaçao com a experiência emocional. Revista brasileira de psicanálise 1986. v. 24, n. 4, p. 471-94

7. Ferenczi S. Psicanálise I. A interpretaçao científica dos sonhos. Sao Paulo: Martins Fontes; 1991.

8. Miranda MR. Distúrbios da alimentaçao, anorexia, bulimia e compulsoes: histórias de segredos e paixoes. Revista brasileira de psicanálise 2005, v. 39, n. 3, p. 27-34










1. Psicóloga, Membro Aspirante do Instituto da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

Endereço para correspondência:
Elena Beatriz Tomasel da Silva
elenatomasel@gmail.com

Recebido em:13/04/2011.
Aceito em: 08/07/2011.

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo