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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2011; 13(1):27-38



Artigos Originais

A neurose obsessiva e os enigmas da masculinidade

Obsessional neurosis and the enigmas of masculinity

Jacqueline de Oliveira Moreira1

Resumo

Neste pequeno ensaio pretende-se pensar a dúvida que aparece em alguns homens neuróticos obsessivos sobre a sua masculinidade. Buscamos no caso freudiano "O Homem dos Ratos" subsídios para pensar os enigmas da masculinidade na neurose obsessiva e as possíveis inserçoes do obsessivo no campo da alteridade. Acreditamos que a pergunta "Sou ou nao homem?", que aparece em alguns casos de neurose obsessiva, representa uma estratégia para manter o pai no lugar de potência.

Descritores: neurose; transtorno obsessivo-compulsivo; masculinidade; individualidade; relaçoes pai-filho.

Abstract

This short essay aims to analyze a question that arises on some obsessional neurotic men about their own masculinity. We have found, on the Freudian case "Rat Man", subsidies to reflect on the enigmas of masculinity in obsessional neurosis and the possible ways the obsessional neurotic might be inserted in the field of alterity. We believe that the question "Am I, or am I not a man?", which arises in some cases of obsessional neurosis, represents a strategy to keep the father as the more potent figure.

Keywords: neurosis; obsessive-compulsive disorder; masculinity; individuality, father-child relations.

 

 

A NEUROSE OBSESSIVA E OS ENIGMAS DA MASCULINIDADE

Uma dúvida se inscreve nas sessoes: "Nao sei se sou homem." Vários pacientes cuja hipótese diagnóstica é de neurose obsessiva levantam essa dúvida. Esses pacientes se perdem em diversas indagaçoes: "Sou homem ou criança?", "Sou homem ou mulher?", "Sou homossexual?", "Nao sou humano?". Esse questionamento sobre a masculinidade coloca-a como um enigma. Nao seria só a feminilidade um enigma, pois, no continente masculino, também, habita um campo obscuro.

Outro ponto em comum entre esses pacientes é a idealizaçao do pai. Melman1 nos revela que na relaçao com o outro, o obsessivo se encontra preso no eixo imaginário do ideal, sendo que a virilidade situa-se ao lado da imagem ideal. Assim, afirma Melman, o obsessivo aceita "certa feminilizaçao para assegurar a virilidade do pai"1. Acreditamos que a dúvida dos pacientes descrita na pergunta "sou homem?" revela uma certa feminilizaçao de si e pode ser reflexo da idealizaçao da virilidade paterna. Podemos pensar em uma identificaçao com a mae e um desejo idealizado pelo pai, mas devemos enfatizar que essa soluçao pode representar uma defesa contra o desejo pela mae. Desta forma, pensamos que o destino da ideia do desejo pela mae é o recalque e a culpa resultantes que promovem a idealizaçao da virilidade do pai, pois só este pode ter essa mulher. No entanto, essa idealizaçao impossibilita o encontro com a própria virilidade. Assim, cabe a pergunta: Sou Homem?

Pensamos que este seria um mecanismo similar àquele descrito por Freud2 em os criminosos por sentimento de culpa. Nas palavras de Freud:

O resultado invariável do trabalho analítico era demonstrar que esse obscuro sentimento de culpa provinha do complexo de Édipo e constituía uma reaçao às duas grandes intençoes criminosas de matar o pai e de ter relaçoes sexuais com a mae2.


Pensamos que a dúvida em relaçao à masculinidade pode apresentar um mecanismo analógico a essa ideia freudiana do criminoso em consequência do sentimento de culpa. O sujeito se sente oprimido pelo sentimento de culpa e a saída é cometer um crime. Nesse caso, o sujeito se sente oprimido pela culpa de ter desejar a mae e saída é se identificar com ela matando, pois, a sua própria virilidade, mas a culpa opera mais como uma açao, que é garantir o lugar viril idealizado para o pai.

Com o objetivo de entender esse movimento de colocar em xeque a masculinidade, utilizaremos como chave de leitura da neurose obsessiva as posiçoes desse sujeito no interior do campo da alteridade. Para ilustrar nossas reflexoes, apresentaremos, ao longo do texto, fragmentos de três casos clínicos de neurose obsessiva, e buscaremos o mais célebre caso freudiano de neurose obsessiva.

O primeiro caso refere-se a um jovem agricultor de 25 anos, casado, sem filhos, vivendo um inferno matrimonial. Sua mulher tem crises de raiva e de consumo. Em suas crises provoca cenas de ciúmes com atuaçoes catastróficas, como, por exemplo, sentar-se no colo de outros homens. Essa é a queixa do jovem agricultor, mas no decorrer do processo os fantasmas paternos aparecem como condiçao de possibilidade de sua vida atual.

Um jovem historiador representa o segundo caso. Tem 26 anos e é solteiro, mas namora a sério. Ele procurou a análise porque foi tomado por um pensamento insistente e enlouquecedor: "Será que sou homem?". O paciente nao coloca em xeque sua heterossexualidade; a questao é mais sobre ser homem. Ser homem como o pai, que ofereceu para os filhos a oportunidade de crescimento, ser homem para uma mulher como o pai é para a mae.

O terceiro caso é o de um matemático de 28 anos, solteiro. O jovem busca a análise porque terminou um namoro e nao consegue desligar-se da moça. Em vários momentos do processo analítico ele se pergunta sobre o desejo por outros homens. Este é, no entanto, um desejo sem fantasias sexuais. O jovem matemático revela que fora gordo na infância e na adolescência, e que nao era desejado pelas meninas; nao era, no passado, já que na juventude ele tornou-se um homem atraente. O rapaz relata uma falta de habilidade com as mulheres, e os homens por quem se interessa sao aqueles com uma grande capacidade de seduzi-las. O jovem matemático diz que, até os 27 anos, considerava toda fala do pai uma verdade inabalável.

O caso mais célebre de neurose obsessiva analisado por Freud3, "Homem dos Ratos", foi alvo de diferentes leituras e inúmeras interpretaçoes. Nao temos a intençao de realizar uma nova interpretaçao, mas apenas de tomar o caso freudiano como uma referência para examinarmos a relaçao da neurose obsessiva com diferentes dimensoes da alteridade.

Podemos dizer que, no neurótico obsessivo, o outro-objeto, ou seja, o outro que se situa no campo de objeto de amor é, em linhas gerais, a mae, representada, no caso do "Homem dos Ratos", pelas figuras da Dama e das irmas. Escolhemos a expressao outro-objeto numa tentativa de apreender a inovaçao freudiana no que tange à problemática do objeto. O conceito de objeto na teoria freudiana refere-se, sobretudo, ao objeto da pulsao que é definido como "a coisa em relaçao à qual ou através da qual a pulsao é capaz de atingir sua finalidade"4, que é a satisfaçao; no entanto, como hoje já se tornou amplamente conhecido, a pulsao nao pode, de modo algum, ser identificada com o instinto. A confusao entre pulsao (Trieb) e instinto (Instinkt), como vemos na traduçao inglesa de James Strachey, nao se reduz a uma questao terminológica, mas possui um inequívoco alcance conceitual. A pulsao concebida como conceito limítrofe entre o somático e o psíquico escapa ao âmbito estrito do biológico e, portanto, da fixidez, da padronizaçao, da programaçao genética que o caracterizam. Assim, pode-se falar em "destinos da pulsao" (Triebschicksale), no plural; nos diferentes caminhos em que ela, a pulsao, envereda na busca de uma satisfaçao que nao mais pode ser obtida apenas no plano da natureza, mas exige, e é nisto que consiste o seu "destino", uma mediaçao psíquica e, portanto, a mediaçao de um outro. Assim, podemos dizer que o objeto pulsional é o que há de mais variável, porque, ao contrário do objeto natural, exigido pela necessidade, aquele é marcado pela contingência. O conceito de apoio esteve presente nos Três Ensaios sobre a Teoria da sexualidade5 desde sua primeira ediçao, de 1905, mas foi posteriormente abandonado. Ele pode ser tomado como um índice claro da passagem do registro da necessidade biológica para o do psiquismo, independentemente de como avaliemos o conceito teoricamente. Ou seja, a afirmaçao da variabilidade do objeto introduz a dimensao da possibilidade e da indeterminaçao e, deste modo, proporciona uma reflexao sobre a subjetividade que transcende a dimensao biológica. É nesse sentido que podemos compreender a afirmaçao de Merea6 - que só aparentemente apresenta-se como paradoxal - de que uma elucidaçao sobre o estatuto e a funçao do objeto seja um imperativo para definir uma concepçao de sujeito. A concepçao de objeto nao é unívoca, uma vez que encontramos concepçoes antropológicas naturalistas que defendem a ideia de um objeto único e natural; concepçoes antropológicas transcendentalistas que enfatizam a abertura do sujeito para um horizonte de possibilidades objetais; e ainda concepçoes, como as anunciadas pela psicanálise, que revelam a variabilidade de objetos para pulsao.

Acreditamos que a expressao outro-objeto possa exprimir a complexidade presente na inovaçao freudiana no que se refere à noçao de objeto. O encontro com o objeto da pulsao e com o objeto do desejo deve ser, necessariamente, mediado pelo outro. Nao se trata de um mero objeto na sua materialidade ou na sua positividade de dado, mas trata-se de sua significaçao constituída através da mediaçao do outro. Assim, na perspectiva freudiana, a noçao de objeto remete-nos à problemática da alteridade, que aqui poderia ser analisada especificamente através da figura de um outro-objeto.

Nao podemos deixar de pensar, nesse momento, na célebre passagem da "Dialética do senhor e do escravo", que se encontra na Fenomenologia do Espírito, de Hegel. O senhor depende do escravo, na medida em que o último transforma as coisas, elevando-as à categoria de objeto do desejo, introduzindo-as na esfera do reconhecimento que constitui o mundo humano. Hegel revela:

O senhor se relaciona com estes dois momentos: com uma coisa como tal, o objeto do desejo, e com a consciência para a qual a coisidade é o essencial. [.] O senhor também se relaciona mediatamente por meio do escravo com a coisa [.]7.


O escravo, com seu trabalho e sua mediaçao, transforma a coisa em objeto de desejo, para que dela o senhor possa gozar. A consciência, ou seja, a mediaçao do outro é essencial para que a coisidade ganhe o estatuto de objeto de desejo. Assim, "o desejo nao o conseguia por causa da independência da coisa; mas o senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa"7; a mediaçao do outro - no caso, o escravo - elevou a coisa à categoria de objeto de desejo. O senhor busca o reconhecimento através do desejo, por isso ele visa o objeto mediatizado pelo outro; sem o outro nao há reconhecimento e nem objeto de desejo.

O outro-objeto expressa a causa do desejo, representa a busca pelo objeto da satisfaçao perdido. No caso do "Homem dos Ratos", Freud apresenta a suspeita "de que foi através de suas irmas que ele foi levado à sexualidade"3, pois o paciente apresenta um sonho em que estava copulando com a irma, o que mostra certa precariedade no trabalho da censura. O jovem matemático, citado anteriormente, apresenta em todos os sonhos uma relaçao especial com a irma. Ele inclusive relata um sonho em que alguém mexe em algo mágico no corpo da irma, que ele próprio nao pode tocar.

Para corroborar a nossa hipótese de que o outro-objeto do "Homem dos Ratos" é a mae e/ou similares, podemos citar alguns pensamentos do paciente retratado na obra que podem ser interpretados nessa direçao:

"Se tenho esse desejo de ver uma mulher despida meu pai deverá fatalmente morrer"3

"Ela lhe seria afável se alguma desgraça viesse a lhe acontecer; e, como exemplo dessa desgraça a morte de seu pai."3

". na primeira vez que experimentou as prazerosas sensaçoes da cópula, irrompeu em sua mente uma ideia: 'Que maravilha! Por uma coisa assim alguém é até capaz de matar o pai!'"3


Os três pensamentos introduzem a questao da morte do pai relacionada com a sua vivência da sexualidade. Por que a necessidade da morte do pai (para ocupar o lugar deste e virar homem) diante da sua experiência sexual? Parece evidente que essas alusoes à morte do pai referem-se tipicamente à experiência edípica, que aqui se apresenta quase que esquematicamente em sua forma positiva. Segundo Ribeiro, o encontro do sujeito com o sexo é sempre traumático, e na neurose obsessiva é acompanhado por um excesso de gozo que acarreta culpa e autorrecriminaçao8.

Freud suspeita que o paciente é constituído por três personalidades: "uma plena de humor e normal, outra ascética e religiosa, e a terceira, imoral e perversa"3. Essa hipótese é, para o nosso objetivo, bastante interessante, pois, seguindo nosso modelo de reflexao sobre os graus de relaçao da neurose com a alteridade, podemos supor três modalidades de relaçao. A primeira é a que se exprime através da personalidade imoral e perversa, revelando a busca nao renunciada da relaçao com o outro-objeto, que se expressa na imago materna. Sendo a mae o objeto do desejo, coloca-se, consequentemente, a questao da nao aceitaçao da lei, da interdiçao constitutiva da dimensao humana, desvelando a face imoral e perversa como um modo de relaçao com o outro-objeto.

A segunda modalidade de relaçao manifesta-se na personalidade ascética e religiosa, traduzindo a presença do outro-abstrato, que se refere a uma Lei superior, um outro que nao é encarnado, mas possibilita uma organizaçao psíquica. Esse outro desencarnado aparece, para "O Homem dos Ratos", na tortura psíquica vivenciada pelo paciente, através dos sucessivos debates intelectuais que se travam no interior de sua consciência moral exacerbada, dos pensamentos ordenativos e dos julgamentos torturadores que ele próprio se impoe. De fato, o neurótico obsessivo caracteriza-se, como a prática confirma amplamente, pela compulsao com que se entrega a autocondenaçoes morais, escrúpulos e racionalizaçoes intelectuais e a rituais de expiaçao e purificaçao de natureza quase religiosa. Essa religiosidade parece atestar essa submissao a um outro que, radicado na intimidade do neurótico, domina-o como se estivesse situado na exterioridade. E é exatamente essa experiência que traduzimos através da figura do outro-abstrato. Nesse ponto parece pertinente mencionar o caso do jovem historiador que oscila entre uma grande idealizaçao do pai e um desejo de repetir as açoes caridosas da mae. O jovem historiador criou um grupo que tenta auxiliar crianças abandonadas através de pequenos passeios e da intervençao junto ao processo de adoçao. Essa açao tem uma inspiraçao na mae, que aposta na caridade através do catolicismo como forma de doaçao ao outro. O ponto interessante dessas açoes, de inspiraçao materna, aparece no momento em que o paciente considera que elas o tornam uma pessoa fraca, sentimental. O paciente se pergunta se nao seriam essas açoes que o levam a questionar sua masculinidade. Assim, ao mesmo tempo em que obedece a um outro maior, a religiosidade, pune-se por ser fraco. Na verdade, o primeiro pensamento obsessivo, que questiona sua posiçao masculina, aparece quando encontra a ex-namorada. Ela revela que sofreu muito com o término do namoro, e que ele é o responsável por esse sofrimento. Nesse momento, o jovem historiador entra em uma lógica obsessivamente autorrecriminativa, e se pergunta sobre sua masculinidade: "Sou homem ou nao?" Um homem é mais forte do que sentimental; nao pode comover-se com criancinhas abandonadas. Esse tipo de comportamento é tipicamente feminino, e pode ser observado na mae. E mais: um homem, como o pai, nao faz a mulher sofrer.

No caso do "Homem dos Ratos", ele recorreu a diferentes estratégias de inclusao do outro-abstrato no discurso. Assim, por exemplo, ao privilegiar os acontecimentos sexuais na narraçao de sua vida, alega que essa ênfase respondia ao que ele conhecia acerca da importância da sexualidade na teoria freudiana3. Ou seja, ele preocupou-se em conhecer as teorizaçoes freudianas como forma de resistência, pois, através delas, poderia escamotear as implicaçoes subjetivas dos acontecimentos narrados. Segundo Freud, a utilizaçao de generalizaçoes, procedimento comum no universo da teoria, caracteriza tipicamente uma neurose obsessiva3.

Já o jovem matemático traz para análise verdadeiros presentes. Suas narraçoes dos sonhos parecem ser retiradas de um texto freudiano. E suas teorias "infantis" sobre a universalidade do pênis respondem às teses freudianas da fase fálica. Ele anuncia um desinteresse de conversar com as mulheres; tem apenas interesse sexual nelas. É mais interessante conversar com um grupo de amigos; mulheres nao têm nada a dizer. O paciente, inclusive, sonha que está fazendo análise com UM analista, e quando vai abraçá-lo para receber alta, os dois estao com ereçao, e ele se pergunta onde vai colocar seu órgao sexual. Assim, só outro homem pode legitimar sua posiçao masculina.

Os obsessivos parecem esconder sua dimensao de pessoa atrás do outro-abstrato, isto é, atrás de generalizaçoes, teorizaçoes, rituais religiosos e ordenamentos morais. A imagem do pai aparece muitas vezes nesse lugar de operador do outro-abstrato da moral e do saber, como nessa passagem em que o paciente em "Homem dos Ratos" confessa que "costumava deixar aberta a porta do corredor, à noite, convencido de que seu pai estaria parado ao lado de fora"3.

A fantasia reiterativa e ameaçadora do Pai Morto simboliza a inescapável presença de um censor moral. Neste sentido, o pai do "Homem dos Ratos", nao o pai real, mas aquele que foi elevado a um status de símbolo após sua morte, após o parricídio desejado, aparece como uma forma de outro-abstrato da moralidade. Seria inevitável, como Freud o fez, a comparaçao com Hamlet, com as fantasmagorias que povoam o delírio do personagem shakespeareano. Também o príncipe da Dinamarca apresenta em seu drama existencial um respeito quase religioso ao outro-abstrato, figurado na imagem do fantasma do Pai, e visa como outro-objeto, como objeto do desejo, a mae. A trama edípica consumada através da traiçao do tio encena, exemplarmente, as diferentes configuraçoes de alteridade de um neurótico obsessivo.

O outro-abstrato no obsessivo remete ao pai real elevado à categoria de pai simbólico, veículo de transmissao da lei. Essa possível coincidência entre o outro-abstrato e o pai real no obsessivo ajudaria a explicar a questao da onipotência do sujeito obsessivo, uma vez que ele próprio pode cair no engodo e confundir o seu eu com o outro-abstrato. Juranville9 propoe uma leitura estrutural dos três principais quadros clínicos de neurose, Histeria, Neurose Obsessiva e Fobia. Essa leitura articula três categorias com três posiçoes diferentes. As posiçoes se referem ao lugar do desejo, ao campo do outro e à posiçao de sujeito. As categorias trabalhadas sao pai concreto, pai simbólico e mae. No caso da Neurose obsessiva, o campo do desejo é determinado pela mae, a posiçao de sujeito é atribuída ao pai concreto e a posiçao de alteridade é designada ao pai simbólico. No caso da Histeria, o desejo é movido pelo pai concreto, o campo do outro é representado pela mae e a posiçao de sujeito é uma exclusividade da categoria pai simbólico. Se para o obsessivo a posiçao de sujeito é ocupada pelo pai concreto e o outro-abstrato é o pai simbólico, o Eu, no processo de identificaçao com essas figuras sobpostas, pode viver uma sensaçao de onipotência, que logo é desfeita na medida em que a identificaçao é imaginária, conduzindo, pois, o obsessivo à impotência. Ou seja, como o obsessivo nao opera uma cisao com a realidade, ele reconhece que o outroabstrato, o pai simbólico, ultrapassa a dimensao concreta do pai real, e, portanto, é inatingível, o que lança o obsessivo à impotência e a uma oscilaçao interminável. Assim, a dialética onipotência/impotência presente nos sintomas obsessivos refere-se à superposiçao produzida entre o outro-abstrato (pai simbólico, pai morto) e a posiçao de sujeito/assujeitado destinada aos homens concretos, o que inclui o pai real e o próprio obsessivo. Parece-nos que, em sua fantasia, o obsessivo quer ser um quase deus, que se propoe a realizar uma tarefa impossível: a de ocupar o lugar divino da perfeiçao. Essa fantasia onipotente se mantém até o contato castrador com a realidade e, assim, na lógica do seu sintoma, o obsessivo sucumbe à paralisia. Ele quer ser a Alteridade Radical, mas, como nao é possível, o niilismo o invade e o aprisiona em sua esterilidade. Ora, o que está em jogo nesse movimento é exatamente o par antitético narcisismo/castraçao.

O fragmento do caso do jovem agricultor talvez possa ilustrar essa dialética onipotência/impotência. Francisco tem 25 anos, é o segundo filho de uma família que tem quatro filhos homens. Seu pai tem 68 anos, e sua mae, 45. O pai é autoritário, bateu nos filhos até eles completarem 18 anos, e centraliza todo o dinheiro em sua mao. A herança da mae está em poder do pai, sendo que as terras, também em seu poder, encontram-se abandonadas. Francisco largou o curso de Agronomia, voltou para a cidade natal da mae, casou-se e resolveu investir na fazenda, herança de seu avô materno. O pai cobra aluguel pela utilizaçao das terras.

Francisco tem conhecimentos técnicos avançados na área de agropecuária. Fez estágios importantes, recebeu vários convites de grandes empresas, mas abandonou tudo e voltou para o solo materno. Tomou vários empréstimos num Banco, utilizando-se do nome da família do avô materno. Todo o dinheiro foi investido na fazenda. Francisco buscava obter a produçao que nunca existiu nas terras do avô materno, para quem o trabalho na terra nao tinha valor. O avô materno acreditava que devia-se acumular bens patrimoniais, e que a terra, ainda que improdutiva, era signo de riqueza e poder. Francisco trabalhou duro, de sol a sol, mas quando chegou o momento da colheita, ele nao foi capaz de colher por motivos inteiramente neuróticos. Por uma paralisia subjetiva, ele nao conseguiu realizar a colheita, nem teve a possibilidade de culpar algum fenômeno natural. O produto perdeu-se totalmente e Francisco nao teve condiçoes de pagar o empréstimo. A partir daí, desse fracasso inconscientemente buscado, produziu uma dívida impagável com o Banco, concretizando, na materialidade do dinheiro, a sua dívida simbólica. O desejo onipotente de realizar uma tarefa proibida pela historia familiar, uma tarefa impossível, acrescido do desejo incestuoso de fertilizar as terras da mae, o conduziram para a impotência e para o impasse existencial.

Voltando ao caso de Freud, acreditamos que a primeira personalidade, por ele citada, do "Homem dos Ratos", a que seria plena de humor e normal, refere-se à sua dimensao de outro-pessoa. Esta, porém, nao pode ser dissociada das outras duas - a imoral e a religiosa - que estariam sobredeterminadas por seu inconsciente. Nao deixa de ser interessante mencionar que os sujeitos privilegiados pelo paciente, aqueles que possibilitariam uma relaçao em que se valoriza a dimensao de outro-pessoa, sejam os homens. Essa inclinaçao origina-se em sua relaçao com o pai real, pois este aparece como sujeito, em oposiçao ao lugar da mae e das mulheres em geral. Freud acentua que no início do tratamento o paciente revelou-lhe que "[.] tinha um amigo sobre o qual possuía uma opiniao extraordinariamente elevada. Costumava procurá-lo sempre que estava atormentado por algum impulso criminoso, e perguntar-lhe se ele o desprezava, como se despreza um criminoso".3 Para o paciente obsessivo, esse amigo ocupa o lugar de outro-pessoa, de sujeito próximo, e que é reconhecido como um outro na sua concretude. Em nota de rodapé, encontramos uma afirmaçao, referida a Adler, que poderia corroborar a influência exercida sobre o paciente pela figura dos homens3. Esse outro-pessoa, no entanto, também carrega consigo dimensoes narcísicas, já que é o outro idealizado que possibilita a vivência do ideal do Eu. Esse reco-nhecimento dos amigos como um lugar de idealizaçao aparece, sobremaneira, no caso do jovem matemático, em que os amigos, por vezes, detêm a verdade. Mas como se dá o laço transferencial desse sujeito que idealiza outros homens?

Nos extratos do caso clínico, Freud relata uma atitude transferencial do paciente quando este chama o analista de "capitao". Parece que o próprio analista suscitou essa transferência, ao assegurar para o paciente que nao tinha gosto, qualquer que fosse, por crueldade, e certamente nao tinha desejo algum de atormentá-lo; contudo, naturalmente, nao podia conceder-lhe algo que estava além de suas forças, ou seja, o paciente teria de superar as suas resistências e descrever a crueldade relatada pelo "capitao"3. Ainda assim, nao pareceria a própria exigência do analista uma tortura naquele momento?

Um outro dado transferencial importante refere-se aos sonhos e pensamentos do paciente em relaçao à filha de Freud, colocando a questao do casamento que visa a uma ascensao social. Esse tema remete aos conflitos libidinais com a "Dama", e ao seu conflito edípico, tendo em vista que seu pai, com o casamento, adquiriu uma posiçao relativamente confortável.3 Isso evidencia, ainda, a ambivalência do obsessivo em relaçao ao pai: ao mesmo tempo em que ele é adorado, sua imagem é, também, denegrida. A degradaçao é uma exigência da açao que coloca a mae como outro-objeto. No entanto, a morte do pai dificulta a operaçao de degradaçao exigida pela busca do objeto de desejo. E, assim, parece-nos pertinente reconhecer, também, a ambivalência em relaçao à figura materna, o que pode ser ilustrado com o relato de um sonho sobre a morte da mae do psicanalista e o receio do paciente de irromper numa risada inoportuna quando fosse oferecer as condolências3.

Um fragmento do caso do jovem matemático denuncia a complexidade que é o laço transferencial. Essa complexidade é, na maioria das vezes, apresentada na forma de relato de sonho. Ele sonha que está com a irma, que deseja beijar o seio da irma, mas esta se transforma na mae e na analista. Esse sonho revela o desejo pela mae. Em outro sonho, a analista transformase em um homem, e essa figura masculina oferece a alta do processo. Esse sonho transferencial parece revelar que só os homens possuem a verdade.

Resta-nos, ainda, considerar aqui a problemática narcísica enfaticamente presente na trama fantasmática do obsessivo. A mae, na sua posiçao de outro-objeto, que foi instituído a partir da primeira relaçao objetal, remete à situaçao do narcisismo primário. Ora, o narcisismo primário refere-se à imagem especular, que é a primeira ordenaçao psíquica no processo de constituiçao da subjetividade. Esse movimento na constituiçao da subjetividade coloca em cena dois termos numa polaridade complementar: a mae e o infans. Assim, a mae aparecerá sob dois aspectos: como objeto de desejo e como imagem especular. No caso do obsessivo, a ênfase se dá no primeiro aspecto, ou seja, na condiçao de objeto do desejo; já na Histeria, na sua relaçao com a figura materna, o elemento ressaltado é a imagem especular, pois nessa estrutura deve haver um movimento de substituiçao da mae como outro-objeto pelo o pai. Entretanto, como foi enfatizado acima, sabemos que a problemática narcísica também figura na organizaçao neurótica do obsessivo. A diferença é que na neurose obsessiva observamos uma prevalência da problemática do narcisismo secundário, da busca de ideais para o Eu, através da moral, da religiao, da ciência. Nao estamos negando a incidência do narcisismo primário, mesmo porque a onipotência obsessiva refere-se ao Eu ideal. Mas o que leva o obsessivo na direçao do narcisismo primário é o desejo de possuir o outro-objeto.

O conflito entre a alteridade - representada pelo pai morto - e a dimensao do outro-objeto - encarnada no desejo pela mae - projeta-se no outrotransferencial que repete e atualiza a dialética amor/ódio. Assim, o "Homem dos Ratos" relatava sonhos transferenciais assustadores envolvendo tanto a imagem de Freud quanto a de sua própria família.3 Imagens oníricas que os degradavam através de enforcamentos, de acusaçoes de assassinato e de atitudes vulgares e sujas.

Assim, o juramento do paciente: "Você deve pagar de volta o dinheiro ao tenente A"3. soa como uma ordem emitida por um estranho que habita o Eu. Mas a guerra titânica entre argumentos e contra-argumentos que nele se debatiam, provocando a paralisia e a impossibilidade de cumprir o juramento, parece-nos uma descriçao perfeita da luta entre o Eu e o "Alteritário". As ordens de assassinato e o impulso suicida, muitas vezes decorrentes dos pensamentos criminosos,3 parecem-nos ser mais um exemplo dessa presença do "Alteritário", a provocar perplexidade e desorientaçao na vida do sujeito. A metaforizaçao mais interessante dos conflitos inconscientes do paciente é, sem dúvida, o vínculo entre a tortura com os ratos e o problema da dívida, traduzida na ordem de pagar o tenente "A". A presença do inconsciente na análise torna-se patente através do vínculo entre a torturada sexualidade do paciente e sua dívida impagável, que se exprime na imagem dos ratos que o torturam e o devoram por dentro.

Desta forma, para o obsessivo, a Alteridade expressa o lugar do pai que é o representante da norma, da ordem, mas que também impoe a angústia da dívida. A mae parece ocupar a posiçao de outro-objeto, de objeto do desejo. Mas as coisas nao sao tao simples, porque a dimensao do conflito anuncia a dúvida em relaçao à posiçao dos elementos. Entretanto, acreditamos que, resguardada a dimensao inegável do conflito e da possibilidade da mudança de posiçoes, o que prevalece é o Pai na posiçao de Ideal e a Mae na posiçao de outro-objeto. Assim, acreditamos que uma forma de neutralizar as fanta-sias em relaçao ao par parental é problematizar a própria posiçao sexual e questionar a própria masculinidade.


REFERENCIAS

1. Melman C. A neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Companhia de Freud; 2004.

2. Freud S. Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976. v. 14, p. 123-64.

3. Freud S. Notas sobre um caso de Neurose Obsessiva (1909). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976. v. 10, p. 157-250.

4. Freud S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976. v. 14, p. 123-64.

5. Freud S. Três Ensaios sobre a teoria da Sexualidade (1905). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976. v. 7, p. 118-229.

6. Merea EC. Os conceitos de objeto na obra de Freud. In: Baranger W. (Org.). Contribuiçao ao conceito de objeto em Psicanálise. Sao Paulo: Casa do Psicólogo; 1994. p. 1-18.

7. Hegel. A fenomenologia do espírito (1806). Petrópolis: Vozes; 1992.

8. Ribeiro MAC. A Neurose Obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2003.

9. Juranville A. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1987.










1. Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP), Mestre em Filosofia - UFMG. Professora do Programa de Pós-Graduaçao (M/D) em Psicologia da PUC-MG (filiado à ANPEPP).

Endereço para correspondência:
Jacqueline de Oliveira Moreira
Rua Congonhas, 161 - Sao Pedro
Belo Horizonte, MG - CEP 30.330-100
Telefone: (31) 3223-3951
E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br

Recebido em: 04/11/2010.
Aceito em: 10/05/2011.

 

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