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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2011; 13(1):11-26



Artigos Originais

Reflexoes teórico-clínicas a respeito do sentimento de vazio, ilustradas através de um conto de Allan Poe

Theoretical-clinical reflections on the feeling of emptiness, exemplified through a story by Allan Poe

Kátia Jung1

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo abordar alguns aspectos teórico-clínicos relativos à psicopatologia da clínica do vazio, através de autores como Freud, Green e Rosenfeld. A partir de uma reflexao, tece um paralelo entre o funcionamento emocional dos casos limites, considerando os movimentos de relaçoes de objeto de seu mundo interno/externo e a dinâmica das relaçoes dos personagens do conto de Edgar Allan Poe, "A queda do solar de Usher". Para tanto, a autora busca, através de metáforas clínicas, estabelecer aproximaçoes, identificando semelhanças no plano simbólico.

Descritores: clínica do vazio; metapsicologia dos limites; estados confusionais; indiferenciaçao eu-nao-eu; psicologia do self.

Abstract

This study aims at addressing some theoretical-clinical aspects related to the psychopathology of the clinic of the void through authors as Freud, Green, and Rosenfield. From a reflection, a parallel is traced between emotional functioning of limit cases, considering the movements of object relations of its internal/external of the relationships between the characters of the story The Fall of the House of Usher, by Edgar Allan Poe. For such, the author seeks through clinical metaphors, to establish approximations, identifying similarities in the symbolic plane.

Keywords: clinic of the void; metapsychology of the limits; confusional states; I-non-I indifferenciation; self psychology

 

 

Antes de partir para o tema deste trabalho, acredito que valha a pena determo-nos em alguns aspectos de denominaçoes que sao usadas e estao diretamente relacionadas ao nosso objeto de estudo: sentimento de vazio e casos-limites.

As denominaçoes "Patologias do Vazio" e "Patologias Atuais" sao expressoes que vêm alcançando um status quase popular, e com isso quero dizer que transcendem o meio psicanalítico. Por essa razao, acho fundamental chegar a um denominador comum que possa dar conta dessa terminologia e possibilite maior clareza e entendimento a respeito do que pretendo tratar.

Para isso, achei interessante trazer, mesmo que sinteticamente, algumas ideias do trabalho de Sebastián Plut8, no qual o autor faz uma revisao epistemológica a respeito do conceito de "Patologias Atuais".

Nesse trabalho, o autor alerta para as diferentes compreensoes que a terminologia "Patologias Atuais" possibilita. Por exemplo:

  • Em certas ocasioes pode referir-se a novas formas de padecer psíquico;
  • Em outras, pode referir-se a quadros psicopatológicos que, atualmente, teriam maior incidência no conjunto de pacientes;
  • Pode referir-se a quadros psicopatológicos derivados das condiçoes socioculturais atuais;
  • Pode referir-se a identificaçao de quadros psicopatológicos a partir de novos desenvolvimentos teóricos;


  • Esses enfoques, como se pode perceber, nao sao excludentes e deixam livre a ênfase ou a forma de organizá-los hierarquicamente, seja em uma escala quanto ao seu valor patógeno, seja em relaçao a sua importância teórica e, até mesmo, quanto à sua importância no momento atual.

    Aqui, para nosso entendimento, vou partir do pressuposto de que a expressao "Patologias Atuais" nao supoe necessariamente "novas patologias". Por essa razao, propondo substituir "novas formas de padecer psíquico", como assinalou Plut8, por "novas formas de compreensao do padecer psíquico" e, a partir daí, me valer para essa reflexao de conhecimentos teóricos de autores clássicos, como também de autores mais atuais.

    Parto do princípio de que os sentimentos de vazio, os estados de vazio emocional, as experiências de vazio interno estao contidas na ampla nosologia das chamadas "Patologias Atuais", ou seja, sao vivências próprias de patologi-as como narcisismo, borderline ou casos-limites, neossexualidades, depressoes, bulimias, anorexias e adiçoes. Em outras palavras, o vazio emocional vai ser considerado aqui, para o nosso propósito, nao como apanágio e monopólio de um tipo específico de patologia, mas como a expressao de sofrimento psíquico do que Kristeva5 trata como "Novas doenças da alma".

    A noçao de vazio implica espaço, territorialidade, limite, ponto de vista tópico. Pensando assim, Green4 lembra que Freud, ao lançar suas bases teóricas, partiu do ponto de vista tópico, mas relacionando-o diretamente aos pontos de vista dinâmico e econômico. E assim o fez pela simples razao de que, sem eles, nao teria como introduzir a ideia de movimento, deslocamento, trocas de energia na construçao de seu aparelho psíquico que, como sabemos, é por princípio pulsional. Todavia, em nosso caso, estamos buscando entender o avesso disso, o espaço vazio, vazio mental, ausência, estagnaçao, confusao. Sendo assim, podemos compartilhar com Green4 a seguinte pergunta: é possível seguir o modelo que Freud desenvolveu para entender as neuroses e chegar ao nosso objetivo?

    Green4, nos ajuda a achar a resposta, pois, em 1986, quando esteve no Brasil e proferiu a conferência intitulada "Conceituaçoes e limites", declarou que vinha estudando Freud há 35 anos e que só agora tinha compreendido algumas de suas idéias à luz de uma leitura sua, que ele considerou moderna e esclarecedora e que deu origem a uma nova interpretaçao de alguns conceitos. Dessa nova interpretaçao, selecionei o que ele chamou de "Metapsicologia dos Limites", por considerá-la nao só moderna e esclarecedora, como ele mesmo afirmou, mas útil e inovadora para orientar nossa compreensao teórico-clínica das chamadas patologias atuais, casoslimites que convivem, particularmente, com sentimentos de vazio interno. Green4 declara que, através dessa nova leitura, compreendeu que "... o modelo clínico das neuroses, tal como foi apresentado por Freud, nao dava conta da questao clínica dos casos-limites" (p 12).

    Roussillon10, em trabalho atual, faz uma análise da evoluçao da teoria freudiana, utilizando como ponto de referência a virada dos anos de 1920. Ele parte do modelo psicanalítico - do que ele entende como a primeira metapsicologia (1907-1913) - em que o conflito girava em torno da tomada de consciência dos conteúdos psíquicos, ou seja, das representaçoes de desejos recalcados. O autor assinala que, nessa etapa da construçao da teoria, ou seja, na primeira tópica, o objetivo terapêutico do trabalho psicanalítico visava reduzir o hiato existente entre inconsciente e pré-consciente, possibilitando uma ligaçao secundária entre as representaçoes-coisa e as representaçoes-palavra.

    Todavia, na reformulaçao de 1920, Freud postula uma mudança significativa que prega uma distinçao metapsicológica entre o id e o ego. Esse entendimento fez parte da construçao da teoria estrutural e implicou também uma mudança no objetivo terapêutico do trabalho psicanalítico.

    Considerando que, no momento em que Freud postula que o id nao é de natureza representativa, o trabalho a ser feito transcende a tomada de consciência ou, quem sabe, a substitui. A necessidade do trabalho psicanalítico passa, entao, a ser da ordem de transformaçao psíquica, de subjetivaçao e de apropriaçao egóica. Segundo Roussillon10, "... a oposiçao nao passa mais simplesmente entre os processos secundários e os processos primários: é no seio dos processos primários, eles mesmos, que a questao da ligaçao se poe...É necessário entao distinguir aquilo que, no seio das processos primários, recebeu um modelo de ligaçao, daquilo que, ainda no seio dos processos primários, nao é ligado, portanto nao é representado, portanto nao é subjetivado..."3.

    Green4, em sua tese sobre a metapsicologia dos limites, defende a ideia de que "... se os conceitos da psicanálise nao eram adequados para teorizar essas estruturas clínicas (casos-limites, borderline), isso se devia, talvez, à necessidade de considerar o próprio limite como um conceito" (p. 12-13). A partir daí, resolveu reconsiderar toda a metapsicologia sob o ângulo do limite e desenvolveu um novo modelo de compreensao dos casos-limites ou borderline, que pretendo abordar a seguir.

    Ele lembra que a questao do limite pode ser identificada nao só na teoria freudiana como também em conceitos de autores mais contemporâneos, como, por exemplo, Winnicott (holding, espaço transicional), em Bion (continente/contido), todavia assinala que Bion parece nao ter salientado, em sua noçao de "continente", um aspecto que Green considera imprescindível para compreender o seu conceito de casos-limites ou estrutura-limite, qual seja, o fato de que "... 'o conteúdo' do 'continente' vai, ele próprio, ter diversos continentes, isto é, vao existir no interior de uma unidade globalizante, subgrupos..." (p. 20). Green4, com isso, através da idéia de núcleos na mente, assinala que, na estrutura-limite, esses núcleos funcionam como facçoes que lutam constantemente e indiscriminadamente em busca de domínio, de predomínio de forças de uma sobre as outras.

    Ele descreve os casos-limites ou a estrutura-limite como uma espécie de estrutura geral indeterminada, onde núcleos psicopáticos, perversos, toxicomaníacos, depressivos, delirantes travam, no interior do "continente", uma verdadeira luta pelo poder em busca de apropriarem-se da totalidade da estrutura psíquica, dessa forma coibindo o desenvolvimento de processos integrativos, unificadores e geradores de significado. Essa indeterminaçao/ indiferenciaçao dos limites dos mais variados territórios, internos e externos, alimentam lutos intermináveis que em meio a angústias de separaçao, de intrusao, angústias catastróficas ou impensáveis, sentimento de futilidade, de desvitalizaçao, de vazio mental, se mantêm sob a égide da pulsao de morte, para muito além do princípio do prazer.

    Green4, chama a atençao para o fato de que essa indeterminaçao promove a desorganizaçao no interior do aparelho psíquico, atinge os limites dentro do ego, os limites do ego em relaçao ao objeto e promove uma permeabilidade excessiva entre os limites do ego, do id e do superego. Nesse panorama caótico, os limites nao discriminam, nao diferenciam. Os territórios sao "terras de ninguém", "terras sem dono" sem nome, sem significado, espaços vazios de sentido próprio.

    Nesse momento, podemos estabelecer um contraponto entre saúde e adoecimento, utilizando o conceito de Winnicott11 de espaço transicional. Segundo ele, o limite nao é uma linha, ele próprio é um território, território onde se efetuam trocas, transformaçoes. Green4 complementa dizendo que, quando há uma divisao entre dois espaços, discriminados entre si e com propriedades contrárias, cria-se um terceiro espaço na junçao dos dois. E vai além, estende a noçao de Winnicott de espaço transicional para além das relaçoes interno/externo, descrevendo no interior do aparelho psíquico áreas de transiçao. Para Green4, a constituiçao de um terceiro espaço se dá através de uma formaçao de compromisso - de um acordo resultante da divisao dos dois espaços anteriormente descriminados - que combina as características de ambos, criando uma terceira estrutura com características diferentes de cada um dos espaços anteriores. E afirma: "Simbolizaçao é isso" (p. 31).

    Todavia, em clima de guerra - e estamos tratando disto - nao há espaço para negociaçoes amigáveis, ao contrário sob o comando das forças desse "implacável exército das sombras"2, a tônica vigente é de ataque, desligamento, desinvestimento, destruiçao e falhas nos processos de simbolizaçao. De acordo com Green4, assim como a indiscriminaçao, a indiferenciaçao impossibilita o desenvolvimento dos processos terciários - berço da capacidade simbólica - do mesmo modo, o predomínio da pulsao de morte inviabiliza a imprescindível elaboraçao dos lutos para além da fusao. A partir daí, nao fica /difícil presumir que a combinaçao indiscriminaçao/pulsao de morte conduzam à confusao, ao aprisionamento eu-nao-eu.

    Algumas perguntas parecem pertinentes. Sem entrar no mérito da existência ou nao de um conflito pulsional fundamental, podemos perguntar: o que gerou esse desintricamento pulsional? Ou o que falhou no processo unificador gerado pelos investimentos do narcisismo primário? O que antecedeu a tudo isso ou o que nao aconteceu?

    Para Green3, as configuraçoes atuais da prática clínica nos obrigam a considerar, na constituiçao do sujeito, no desenvolvimento normal ou patológico do aparelho psíquico, a força dos fatores ligados ao narcisismo e à destrutividade.

    Sua teoria contempla o duplo estatuto: narcisismo de vida e narcisismo de morte; funçao objetalizante como meta essencial da pulsao de vida e funçao desobjetalizante como meta essencial da pulsao de morte. Assim, parece especialmente adequada para dar conta da nova articulaçao entre metapsicologia e clínica.

    Segundo ele, "...se algo de novo surgiu na psicanálise nesses últimos decênios, é pelo lado de um pensamento do par..."2 Ele acredita que a metapsicologia das relaçoes self-objeto está se impondo porque dá conta dos aspectos clínicos da análise contemporânea do vazio em relaçao aos casoslimite, estruturas narcisistas.

    Ao aliar sua prática clínica ao desenvolvimento teórico, Green2 possibilita nao só a compreensao desses quadros clínicos, como também um entendimento da sua etiologia. Ele considera "os narcisistas como pessoas feridas - de fato carentes do ponto de vista do narcisismo" (p. 17). E assinala que a decepçao sofrida, cujas feridas ainda estao em carne viva, possivelmente nao se limitou a um dos pais, mas a ambos, reais ou fantasiados. Justifica, entao, que o objeto que lhes resta para amar é a si mesmos. Nesse caso, entende que a sexualizaçao do Eu tem como efeito transformar o desejo pelo objeto em desejo pelo Eu. Fato que ele nomeia desejo do Um com apagamento do desejo do Outro. Todavia, inevitavelmente, no movimento do desejo, o sujeito é descentrado, pois a falta do objeto de satisfaçao ou a postergaçao da satisfaçao levará o sujeito a experienciar que seu centro nao está mais nele mesmo, mas fora de si.

    Se essa dolorosa constataçao promover os lutos necessários à sua elaboraçao mental, tornar-se-á, segundo Green2, uma aquisiçao psíquica primordial, pois levará à conscientizaçao da experiência de separaçao, a qual possibilita a construçao de uma matriz simbólica primária, que ele aponta como fonte do desenvolvimento psíquico.

    Entretanto, ele alerta: "... se esse modo de identificaçao narcisista persiste para além da fusao com o objeto, quando o Eu se distingue do nao-Eu e admite a existência do objeto em separado, esse modo de funcionamento expoe o Eu a inumeráveis desilusoes." Em alguns casos, a possibilidade da simples existência do objeto pode levar a consequências desastrosas e fazer "... com que a experiência de descentramento seja vivenciada com muito ressentimento, ódio e desespero" (p. 23).

    Quando esse "colapso" acontece, o movimento de retorno para a unidade e a confusao do Eu com o objeto idealizado, ou seja, a tentativa de fusao, já nao estao mais ao alcance. É a perda do amor fusional, antes de sua plena realizaçao. Em outras palavras, para Green2, no momento em que a realizaçao da unidade narcísica falha, o movimento pode nao ir mais em direçao à busca dessa unidade, mas sim, à busca do nada. O modelo do desejo se inverte, é a busca do nao-desejo, da reduçao das tensoes ao nível zero, que é a aproximaçao da morte psíquica.

    A partir dessas ideias, Green3 postula, entao, a existência de um narcisismo negativo. Nesse caso, a soluçao transforma a realizaçao alucinatória negativa do desejo em modelo. Nao mais é o desprazer que substitui o prazer, mas o neutro. Aqui, para ele, é a funçao desobjetalizante que governa a atividade psíquica. Em outras palavras, clinicamente, nao estamos mais no âmbito da depressao, mas diante de uma "anorexia de viver", de um vazio existencial apanágio de patologias graves, pertencentes ao espectro das estruturas limites e narcisistas, onde reinam, com absoluto nepotismo, os estados confusionais da indiferenciaçao eu - nao eu.

    Após termos entrado em contato, embora sinteticamente, com a consistente e profunda abordagem teórico-clínica desenvolvida por Green2, recorrerei agora, também de maneira breve, à nao menos importante contribuiçao de Rosenfeld9, que trata da psicopatologia dos estados confusionais, a qual também enriquecerá nossa reflexao.

    Rosenfeld9 inicia esse trabalho - fruto de dez anos de psicanálise com pacientes esquizofrênicos - lembrando que as sensaçoes de confusao fazem parte do desenvolvimento normal e recorre a Winnicott11 quando diz que "...na mais tenra infância, o bebê vive num estado de nao-integraçao, em que sua percepçao é incompleta e em que, amiúde, os estímulos externos e internos e as partes do corpo nao se diferenciam. Esta confusao decorrente da naointegraçao é normal e vai desaparecendo gradualmente, durante o desenvolvimento" (p. 62).

    A proposiçao de Rosenfeld9 aponta para o fato de que "...quando a diferenciaçao normal entre objetos bons e maus e entre os impulsos libidinosos e os agressivos nao é alcançada, acentuam-se os mecanismos de divisao" (p. 66). Em consequência disso, os impulsos libidinosos e os de destruiçao se confundem gerando alto grau de ansiedade. A partir daí, os impulsos de destruiçao parecem ameaçar os impulsos libidinosos e, com isso, todo o eu fica em risco de ser destruído.

    Para Rosenfeld9, os estados confusionais surgem como uma tentativa de recuperaçao. Todavia, muitas vezes, o estado confusional nao diminui quando o paciente busca diferenciar seus impulsos libidinosos dos agressivos. Até pelo contrário, paradoxalmente, se acentuam os mecanismos de divisao. Isso porque, no momento em que os impulsos se aproximam, passam a gerar sensaçao de perigo iminente de ocorrência de um estado confusional agudo. A ameaça é a de que os impulsos agressivos possam sobrepujar os libidinosos, aumentando o processo de desintegraçao no ego. Ele acredita que "a única maneira de escapar a esse perigo está na capacidade de diferenciar, de novo, o amor do ódio"9. A partir daí, se os impulsos libidinosos predominarem, o ego poderá contar com seu poder de integraçao e alcançar êxito nessa luta por sua recuperaçao.

    Nesse momento, depois de contar com a contribuiçao de autores de inestimável valor para a teoria psicanalítica, me sinto impelida a apresentar, à guisa de ilustraçao, uma síntese do conto de Edgar Allan Poe, intitulado "A queda do Solar de Usher". Esse desejo foi motivado pela identificaçao que encontrei entre sua narrativa literária e as ideias de Green4 e Rosenfeld9 a respeito do sentimento de vazio emocional dos estados confusionais, de indiferenciaçao eu-nao-eu, próprios dos casos-limites. Mas também pela sensaçao de estranheza que esse conto me causou e que me fez automaticamente lembrar de Freud12 em seu trabalho "O estranho".

    Nesse texto, Freud aborda o tema da estética, justamente sob o aspecto que diz respeito à qualidade do sentir. Para ele, o tema do estranho relaciona-se com o que é assustador, com o que provoca medo e horror. Ele propoe: "...o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar." E complementa: "...uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impressao, ou quando crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se" 12.

    Allan Poe cria uma atmosfera estranha e nebulosa que nos envolve, nao nos deixando saber "...se está nos conduzindo pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico..."12

    [...] e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto do melancólico Solar de Usher [...] invadiu-me a alma um sentimento de angústia insuportável [...] Havia um enregelamento, uma tontura, uma enfermidade de coraçao, uma irreparável tristeza no pensamento [...] Que era o que tanto me perturbava à contemplaçao do Solar de Usher? [...] eu nao podia apreender as ideias sombrias que se acumulavam em mim [...]. Era possível, refleti, que um mero arranjo diferente dos detalhes da paisagem, dos pormenores do quadro, fosse suficiente para modificar ou talvez aniquilar sua capacidade de produzir tristes impressoes e, demorando-me nesta ideia, dirigi o cavalo para a margem escarpada de um pantanal negro e lúgubre que reluzia parado junto ao prédio, e olhei para baixo - com um tremor ainda mais forte do que antes -, para as imagens alteradas e invertidas dos caniços cinzentos e dos lívidos troncos de árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias.


    Como já se pode de início reconhecer, Allan Poe, além de nos brindar com a riqueza literária desse conto, oferta-nos uma metáfora clínica, que pode ilustrar o tema deste trabalho, remetendo-nos à viagem de um personagem - quem sabe, a seu próprio mundo interno - através de uma narrativa imagética, prenha de sensorialidade, como verdadeiros pictogramas, que retratam a atmosfera soturna, misteriosa, indiscriminada e nao menos assustadora que as descritas por ambos autores, Green4 e Rosenfeld9, através de exemplos clínicos, os quais nos possibilitam empreender verdadeiras viagens ao mundo de fantasias interno/externo de pacientes onde o prazer é a dor e o caos é o limite.

    Nao obstante isso, eu me propusera ficar algumas semanas naquela mansao melancólica. Seu proprietário Roderick Usher, fora um de meus alegres companheiros de infância... uma carta dele, a qual, por sua natureza estranhamente importuna, nao admitia resposta que nao fosse pessoal. O manuscrito dava indícios de nervosa agitaçao [...] o signatário falava de uma aguda enfermidade física, de uma perturbaçao mental que o oprimia e de um ansioso desejo de ver-me como seu melhor, e em realidade, seu único amigo [...].


    Um apelo singular do passado, algo que vem de dentro, parece evocar contato com a parte melancólica de sua personalidade, despertando afetos contraditórios, atraçao e medo. Mesmo assim, o pedido parece irrecusável. Quem sabe por apontar para um caminho regressivo a um mundo "estranho/conhecido"12? Ou, quem sabe, por partir de Roderick Usher, uma parte agonizante de seu self dividido? Mas, acima de tudo, quem sabe, pelo teor da súplica aliada à fragilidade em que se encontrava seu moribundo amigo, objeto interno/externo, com um pedido de sobrevivência, ou, quem sabe, de libertaçao...


    "DEPOIS DE TANTOS ANOS DE COMPLETO ISOLAMENTO!"

    Teria a dor miserável do corpo e da alma o levado a pedir ajuda? A transpor os limites para além do "Solar de Usher", a ponto de seus gritos romperem as sólidas paredes da "melancólica mansao"? Que força teria desestabilizado a quiescente e soturna solidao/submissao/aprisionamento de Roderick Usher? O que buscariam ambos encontrar ou reencontrar? Um encontro/reencontro à gloria" da infância perdida? Lembremos que para Green3, a sexualizaçao do Eu tem como efeito transformar o desejo pelo objeto em desejo pelo Eu.

    Eu conhecia, também, o fato, muito digno de nota, de que do tronco da família Usher, apesar de sua nobre antiguidade, jamais brotara, em qualquer época, um ramo duradouro; em outra palavras, a família inteira só se perpetuava por descendência direta e assim permanecera sempre [...] era essa deficiência [...] e a consequente transmissao em linha reta, de pai a filho, do nome e do patrimônio, que afinal tanto identificaram ambos, a ponto de dissolver o título original do domínio na estranha e equívoca denominaçao de "Solar de Usher" [...].


    Nesse panorama caótico, os limites nao discriminam, nao diferenciam. Os territórios, sem identidade própria, sao "terras de ninguém" ou de todos; a generalizaçao está a serviço da despersonalizaçao; "terras sem dono", sem direito a cidadania, o "Solar de Usher", onde o nome próprio perde-se na propriedade, esvazia-se de significado; espaço vazio de sentido próprio. "Orbitas vazias".

    Tanto eu forçara a imaginaçao que realmente acreditava que em torno da mansao e da propriedade pairava uma atmosfera característica de ambos e de seus imediatos arredores - atmosfera que nao tinha afinidade com o ar do céu, mas que se exalava das árvores apodrecidas e do muro cinzento e do lago silencioso - um vapor pestilento e misterioso, pesado e lento, francamente visível e cor de chumbo.


    Lembremos que para Green4 a indiferenciaçao dos limites dos mais variados territórios, internos e externos, alimentam lutos intermináveis que, em meio a angústias de separaçao, de intrusao, angústias catastróficas ou impensáveis, de desvitalizaçao, de vazio mental, se mantêm sob a égide da pulsao de morte, para muito além do princípio do prazer.

    Roderick Usher! [...] foi com dificuldade que cheguei a admitir a identidade do fantasma à minha frente com o companheiro de minha primeira infância. A lividez agora cadavérica da pele e o brilho sobrenatural do olhar, principalmente, me deixaram atônito e mesmo horrorizado [...] o cabelo sedoso crescera à vontade, sem limites; e como ele, na sua tessitura de aranhol, mais flutuava do que caía em torno da face, eu nao podia, mesmo com esforço, ligar sua aparência estranha com uma simples ideia de humanidade.
    Na verdade, eu me achava preparado para encontrar algo dessa natureza, nao só pela carta dele como por certas recordaçoes de fatos infantis [...] Verifiquei que ele era um escravo agrilhoado a uma espécie anômala de terror [...] influência que certas particularidades apenas de forma e de substância do seu solar familiar, através de longos sofrimentos, dizia ele, exerciam sobre seu espírito;


    Green3 associa as angústias do espectro do narcisismo ao problema do limite da forma, da substância ou da consistência, "[...] onde a aposta é a coexistência dos Eus." (p.144) Eus-nao-eus imersos na atmosfera viscosa da transgeracionalidade indiferenciada; "...transmissao em linha reta, de pai a filho, do nome e do patrimônio...", onde orgânico e inorgânico, tempo e espaço se fundem, se confundem; borramento dos limites, permeabilidade excessiva que, segundo Green4, promove a desorganizaçao no interior do aparelho psíquico, atingindo os limites dentro do ego, os limites do ego em relaçao ao objeto e entre os limites do ego, do id e do superego.

    Ele admitia, porém, embora com hesitaçao, que muito da melancolia peculiar que assim o afligia podia rastrear-se até uma origem mais natural e bem mais admissível: a doença severa e prolongada, a morte - aparentemente a aproximar-se - de uma irma ternamente amada, sua única companhia durante longos anos, sua única e última parenta na terra [...].


    Roderick Usher, nosso soturno personagem, debate-se arquejante na estreita luta entre o desejo da morte do objeto fusional e a angústia da unidade ameaçada, paradoxalmente buscada para a reconstituiçao da fantasia idealizada e jamais alcançada da unidade absoluta. A agitaçao agonizante sob a égide da dupla angústia do Um e angústia do par tece o pano de fundo da dispersao, do despedaçamento. A angústia sancionada como modo existencial.


    ANGUSTIA COMO EPIFANIA DO SUJEITO

    Rosenfeld9, em seu trabalho sobre estados confusionais, traz um exemplo clínico, a propósito da vivência de confusao de partes do ego, que é bem possível adaptar e utilizar aqui frente ao paralelo que Usher traça entre sua melancolia e a severa doença da irma, que para ele é prenúncio de morte eminente. Rosenfeld9 diz:

    "Sua ansiedade e confusao se originavam do sentimento de que seu eu mau devorava a parte boa de sua personalidade, identificada com seus impulsos libidinais" (p. 67). Considerando o pensamento de Rosenfeld9, o desejo de morte da Irma e ao mesmo tempo o medo de perdê-la podem ser entendidos como "...um mecanismo esquizoide de divisao, com o qual se eliminam as partes do eu irremediavelmente confundidas " (id ibid).

    Enquanto ele falava, Lady Madeline (pois era assim chamada) passou lentamente para uma parte recuada do aposento e, sem ter notado minha presença, desapareceu. Uma apatia fixa, um esgotamento gradual de sua pessoa e crises frequentes, embora transitórias, de caráter parcialmente cataléptico eram os insólitos sintomas. [...]
    uma noite, Usher, [...] tendo-me informado bruscamente que Lady Madeline nao mais vivia, revelou sua intençao de conservar-lhe o corpo por uma quinzena (antes de seu enterramento definitivo) em uma das numerosas masmorras, dentro das possantes paredes do castelo.


    Como foi visto, para Green4, assim como a indiscriminaçao impossibilita o desenvolvimento dos processos terciários - berço da capacidade simbólica - do mesmo modo o predomínio da pulsao de morte inviabiliza a imprescindível elaboraçao dos lutos para além da fusao.

    Tendo depositado nosso fúnebre fardo, sobre cavaletes, naquele horrendo lugar, desviamos em parte a tampa ainda nao pregada do caixao, e contemplamos o rosto do cadáver. Uma semelhança chocante entre o irmao e a irma deteve entao, em primeiro lugar, a minha atençao; e Usher, adivinhando, talvez, meus pensamentos, murmurou [...] que ele e a irma tinham sido gêmeos e que afinidades, duma natureza mal inteligível, sempre havia existido entre eles.


    Figuras de simetria e complementaridade invadem evasiva e profundamente, corroendo os limites, desvitalizando as robustas, mas insólitas paredes carcomidas pelos fungos do apodrecimento mortífero de estratificaçoes das "Dores do Mundo"a dos Ushers, contagiando por espelhamento a frágil "pele" das figuras cadavéricas que comensalmente alimentam-se um da seiva mortífera do outro, como também de quem ousar aproximar-se, conduzindo à perpetuaçao do aprisionamento eu-nao-eu. Corroborando com esse entendimento, chama a atençao um fato que denuncia e confirma a ideia do conluio e confusao eu-nao-eu quando nosso personagem protagonista e narrador, naturalmente, passa a narrar a macabra tarefa na primeira pessoa do plural: "...nosso fúnebre fardo... desviamos em parte a tampa ainda nao pregada do caixao, e contemplamos o rosto do cadáver."

    Freud12 em seu trabalho "O estranho", diz que, assim como a estranheza, o fenômeno do duplo é atribuído a causas infantis e que aparece de muitas formas e em diferentes graus de desenvolvimento. Ele cita a contribuiçao de Otto Rank (1914), que relacionou esse fenômeno a "...reflexos em espelhos, com sombras, espíritos guardioes, com a crença na alma e com o medo da morte"12.

    Para Rank (1914), "originalmente, o duplo era uma segurança contra a destruiçao do ego, uma 'enérgica negaçao do poder da morte'..."12.

    Em consonância com essa ideia, Freud conclui que, provavelmente, a 'alma imortal' foi o primeiro duplo do corpo. Para ele, "tais ideias, no entanto, brotaram do solo do amor-próprio ilimitado, do narcisismo primário que domina a mente da criança e do homem primitivo. Entretanto, quando essa etapa está superada, o 'duplo' inverte o seu aspecto. Depois de haver sido uma garantia da imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte"12.

    Tendo decorrido alguns dias de amargo pesar, uma mudança visível operou-se nos sintomas da desordem mental do meu amigo [...]. Vagava de quarto em quarto, a passos precipitados, desiguais e sem objetivo. A palidez de sua fisionomia tomara, se possível, um tom ainda mais espectral, mas a luminosidade de seu olhar havia se extinguido por completo [...]. Nao admira que sua situaçao terrífica me contagiasse. Senti subirem, rastejando em mim, por escalas lentas, embora incertas as influências estranhas das fantásticas mas impressionantes superstiçoes que ele entretinha [...]. Foi [...], sete ou oito dias, depois de haver sido colocado no túmulo o corpo de Lady Madeline, que experimentei o pleno poder desses sentimentos [...]. Lutei para dominar com a razao o nervosismo que de mim se apoderava [...]. Meus esforços, porém, foram infrutíferos. Irreprimível tremor, pouco a pouco, me invadiu o corpo, e, por fim, sentou-se sobre meu próprio coraçao o íncubo de uma angústia inteiramente infundada [...].
    [...] perscrutando avidamente a intensa escuridao do quarto, escutei - nao sei por quê, mas impelido por uma força instintiva - certos sons baixos e indefinidos, que vinham por entre as pausas da tempestade, a longos intervalos, nao sabia eu de onde...vesti-me às pressas e tentei arrancar-me da lastimável situaçao em que caíra, andando rapidamente para lá e para cá pelo aposento [...]. Um instante depois batia levemente à minha porta e entrava trazendo uma lâmpada. Sua fisionomia estava, como sempre, cadavericamente descorada; mas, além disso, havia uma hilaridade louca em seus olhos, uma histeria evidentemente contida em toda a sua atitude. Seu ar aterrorizou-me [...] percebi um eco distinto, cavo, metálico e clangoroso, embora aparentemente abafado.


    Para Green2, "a angústia é o ruído que rompe o contínuo silencioso do sentimento de existir, na troca das informaçoes consigo mesmo ou com outrem." (p. 161) Sentimento ruidoso, que fala sem dizer e, paradoxalmente, diz sem falar à espera de transformaçao, traduçao; grito surdo à beira do abismo do vazio ou reverberando nas profundezas do pântano; código condenado a sucumbir a qualquer esboço de comunicaçao, destinado a permanecer incógnito nas carcomidas paredes da impessoalidade do Solar de Usher.

    Completamente nervoso, de um salto, pus-me de pé; mas o movimento compassado de balanço de Usher nao se modificou. Corri para a cadeira onde estava sentado. Seus olhos estavam sempre fixos diante de si e por toda sua fisionomia imperava uma rigidez de pedra, mas quando coloquei minha mao sobre seu ombro, toda a sua pessoa estremeceu fortemente; um sorriso mórbido tremeu-lhe em torno dos lábios e eu vi que ele falava num murmúrio baixo apressado, inarticulado, como se nao notasse minha presença. Curvando-me sobre ele e bem de perto, sorvi, afinal, o medonho sentido de suas palavras. - Nao o ouves?
    Sim, ouço-o, e tenho-o ouvido. Longamente [...] longamente [...] muitos minutos, muitas horas, muitos dias tenho-o ouvido, contudo nao ousava [...] Oh, coitado de mim, miserável desgraçado que sou! Nao ousava falar!



    "NOS A PUSEMOS VIVA NA SEPULTURA!"

    Lady Madeline carregou consigo, talvez por vingança, a lembrança do carinho e da ternura de que tinha sido investida, condenando seu duplo a sucumbir na mais pura inaniçao de afeto. Nessa luta, para sobreviver à perda do objeto fusional, Usher elege o velho companheiro de infância seu duplo do conluio mortal.

    Nós! Nós! "Nós a pusemos viva na sepultura!" Nao disse que meus sentidos eram agudos? Agora eu lhe conto que ouvi seu primeiro fraco movimento, no fundo do caixao. Ouvi-o faz muitos, muitos dias, e, contudo, nao ousei falar! [...] o abrir-se do caixao, e o rascar dos gonzos de ferro de sua prisao, e o debater-se dela dentro da arcada de cobre da masmorra! Oh! Para onde fugirei? Nao estará ela aqui, dentro em pouco? Nao estará correndo a censurar-me por minha pressa? Nao ouvi eu o tropel de seus passos na escada? Nao distingo aquele pesado e horrível bater de seu coraçao? Louco! - e aqui saltou ele da cadeira e gritou, bem alto, cada sílaba, como se com aquele esforço estivesse exalando a própria alma: - Louco! Digo-lhe que ela está, agora, por trás da porta!


    "Tais processos se devem ao efeito, dentro do ego, dos impulsos de destruiçao, experimentados como estranhos (expulsos de lá) e, portanto como perseguidores" 9.

    [...] as antigas almofadas da porta para as quais Usher apontava escancarara, imediatamente suas mandíbulas de ébano [...] estava de pé a figura elevada e amortalhada da Lady Madeline de Usher. Havia sangue sobre suas vestes alvas e sinais de uma luta terrível, em todas as partes de seu corpo emagrecido. Durante um instante, permaneceu ela, tremendo e vacilando, para lá e para cá no limiar. Depois, com um grito profundo e lamentoso, caiu pesadamente para a frente, sobre seu irmao, e, em seus estertores agônicos, violentos e agora finais, arrastou-o consigo para o chao, um cadáver, uma vítima dos terrores que ele mesmo antecipara.
    Fugi espavorido daquele quarto, daquela mansao. Ao atravessar a alameda, a tempestade lá fora rugia, ainda em todo o seu furor [...] sobreveio uma violenta rajada do turbilhao [...] o inteiro orbe do satélite explodiu imediatamente à minha vista [...] meu cérebro vacilou quando vi as possantes paredes se desmoronarem [...] houve um longo e tumultuoso estrondar, semelhante à voz de mil torrentes [...] e o pântano profundo e lamacento, a meus pés, fechou-se, lúgubre e silentemente, sobre os destroços do "Solar de Usher".


    E, para finalizar, fica a pergunta: poderíamos entender esse desfecho à luz do que vínhamos estudando?

    Múltiplas seriam as possibilidades, considerando a riqueza fantasmática do texto. Poderíamos, por exemplo, conduzir nosso entendimento pelo vértice do adoecimento; pensar que nesse final estaríamos assistindo "...a invasao pelo Outro, esperada e temida, que os estados de fusao ilustram"2 e complementar com a idéia de Laing (1970), descritas por Green, que sugere que o destino desses quadros pode ser "...a explosao e a implosao, mutuamente catastróficas." 2.

    No outro extremo do contínuo saúde/doença, poderíamos entender de um ponto de vista otimista e considerar esse desfecho como uma metáfora do principal mecanismo estruturante e defensivo, o recalcamento, que, segundo Green2, pode ser concebido com dupla funçao. Ou seja, além de manter afastados os investimentos objetais que ameaçam a organizaçao do Eu, funciona como um revestimento que tem como funçao garantir os limites do Eu.

    Todavia, me parece contraditório, do ponto de vista psicanalítico, buscar definir esse desfecho seja para o lado da saúde ou da doença. Seria aprisionar nosso personagem entre duas paredes, justo num momento em que ele parece ter conseguido demovê-las.

    Com esse conto, Edgar Allan Poe7, mestre em despertar fortes emoçoes, nos proporcionou vivenciar um verdadeiro "impacto estético"6, coloca-nos em contato com sensaçoes de origem muito primitiva, levando-nos a partilhar, entre excitaçao e medo, ansiedades ligadas a despersonalizaçao, angústias claustrofóbicas e de aprisionamento.

    Ao finalizar o conto, consegue, ainda assim, deixar em aberto a possibilidade de fantasiar, construir novas ideias. Consegue fechar sem saturar, fiel à ideia de continuidade, possibilidades infinitas de entendimentos, construçao, transformaçao.

    "[...] um longo e tumultuoso estrondar, semelhante à voz de mil torrentes [...] e o pântano profundo e lamacento, a meus pés, fechou-se, lúgubre e silentemente, sobre os destroços do "Solar de Usher"".


    REFERENCIAS

    1. Bion WR. Atençao e Interpretaçao. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

    2. Green A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Sao Paulo: Escuta, 1988

    3. Green A. [et al.] Narcisismo negativo, funçao desobjetalizante. In: A pulsao de Morte. Sao Paulo: Escuta, 1988.

    4. Green A. Conferência: Conceituaçoes e Limites. In: Conferências Brasileiras de André Green. Metapsicologia dos limites. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

    5. Kristeva J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

    6. Meltzer D. Apreensao do belo: o papel do conflito estético no desenvolvimento, na violência e na arte. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

    7. Poe EA. A queda do Solar de Usher. In: Ficçao completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

    8. Plut S. Revisao Epistemológica e Crítica de Patologias Atuais. Revista da Sociedade de psicanálise de Porto alegre. Psicanálise, v. 10, nº1, 2008.

    9. Rosenfeld HA. Os Estados Confusionais. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

    10. Roussillon R. Le plaisir et la répétition. Paris: Dumont, 2001.

    11. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

    12. Freud S. O estranho. In: Ediçao Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XVII, p. 275-314. Rio de Janeiro: Imago, 1976










    1. Kátia Jung, Mestrado em Psicologia Clínica , Docente do Instituto de ensino e Pesquisa em Psicoterapia (IEPP), Membro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA).

    Endereço para correspondência:
    Kátia Jung
    kfjung@terra.com.br

    Recebido em: 26/11/2010.
    Aceito em: 20/02/2011.

    a. As Dores do Mundo, A. Schopenhauer.

     

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