Rev. bras. psicoter. 2011; 13(1):11-26
Jung K. Reflexoes teórico-clínicas a respeito do sentimento de vazio, ilustradas através de um conto de Allan Poe. Rev. bras. psicoter. 2011;13(1):11-26
Artigos Originais
Reflexoes teórico-clínicas a respeito do sentimento de vazio, ilustradas através de um conto de Allan Poe
Theoretical-clinical reflections on the feeling of emptiness, exemplified through a story by Allan Poe
Kátia Jung1
Resumo
Abstract
Antes de partir para o tema deste trabalho, acredito que valha a pena determo-nos em alguns aspectos de denominaçoes que sao usadas e estao diretamente relacionadas ao nosso objeto de estudo: sentimento de vazio e casos-limites.
As denominaçoes "Patologias do Vazio" e "Patologias Atuais" sao expressoes que vêm alcançando um status quase popular, e com isso quero dizer que transcendem o meio psicanalítico. Por essa razao, acho fundamental chegar a um denominador comum que possa dar conta dessa terminologia e possibilite maior clareza e entendimento a respeito do que pretendo tratar.
Para isso, achei interessante trazer, mesmo que sinteticamente, algumas ideias do trabalho de Sebastián Plut8, no qual o autor faz uma revisao epistemológica a respeito do conceito de "Patologias Atuais".
Nesse trabalho, o autor alerta para as diferentes compreensoes que a terminologia "Patologias Atuais" possibilita. Por exemplo:
- Em certas ocasioes pode referir-se a novas formas de padecer psíquico;
- Em outras, pode referir-se a quadros psicopatológicos que, atualmente, teriam maior incidência no conjunto de pacientes;
- Pode referir-se a quadros psicopatológicos derivados das condiçoes socioculturais atuais;
- Pode referir-se a identificaçao de quadros psicopatológicos a partir de novos desenvolvimentos teóricos;
[...] e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto do melancólico Solar de Usher [...] invadiu-me a alma um sentimento de angústia insuportável [...] Havia um enregelamento, uma tontura, uma enfermidade de coraçao, uma irreparável tristeza no pensamento [...] Que era o que tanto me perturbava à contemplaçao do Solar de Usher? [...] eu nao podia apreender as ideias sombrias que se acumulavam em mim [...]. Era possível, refleti, que um mero arranjo diferente dos detalhes da paisagem, dos pormenores do quadro, fosse suficiente para modificar ou talvez aniquilar sua capacidade de produzir tristes impressoes e, demorando-me nesta ideia, dirigi o cavalo para a margem escarpada de um pantanal negro e lúgubre que reluzia parado junto ao prédio, e olhei para baixo - com um tremor ainda mais forte do que antes -, para as imagens alteradas e invertidas dos caniços cinzentos e dos lívidos troncos de árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias.
Nao obstante isso, eu me propusera ficar algumas semanas naquela mansao melancólica. Seu proprietário Roderick Usher, fora um de meus alegres companheiros de infância... uma carta dele, a qual, por sua natureza estranhamente importuna, nao admitia resposta que nao fosse pessoal. O manuscrito dava indícios de nervosa agitaçao [...] o signatário falava de uma aguda enfermidade física, de uma perturbaçao mental que o oprimia e de um ansioso desejo de ver-me como seu melhor, e em realidade, seu único amigo [...].
Eu conhecia, também, o fato, muito digno de nota, de que do tronco da família Usher, apesar de sua nobre antiguidade, jamais brotara, em qualquer época, um ramo duradouro; em outra palavras, a família inteira só se perpetuava por descendência direta e assim permanecera sempre [...] era essa deficiência [...] e a consequente transmissao em linha reta, de pai a filho, do nome e do patrimônio, que afinal tanto identificaram ambos, a ponto de dissolver o título original do domínio na estranha e equívoca denominaçao de "Solar de Usher" [...].
Tanto eu forçara a imaginaçao que realmente acreditava que em torno da mansao e da propriedade pairava uma atmosfera característica de ambos e de seus imediatos arredores - atmosfera que nao tinha afinidade com o ar do céu, mas que se exalava das árvores apodrecidas e do muro cinzento e do lago silencioso - um vapor pestilento e misterioso, pesado e lento, francamente visível e cor de chumbo.
Roderick Usher! [...] foi com dificuldade que cheguei a admitir a identidade do fantasma à minha frente com o companheiro de minha primeira infância. A lividez agora cadavérica da pele e o brilho sobrenatural do olhar, principalmente, me deixaram atônito e mesmo horrorizado [...] o cabelo sedoso crescera à vontade, sem limites; e como ele, na sua tessitura de aranhol, mais flutuava do que caía em torno da face, eu nao podia, mesmo com esforço, ligar sua aparência estranha com uma simples ideia de humanidade.
Na verdade, eu me achava preparado para encontrar algo dessa natureza, nao só pela carta dele como por certas recordaçoes de fatos infantis [...] Verifiquei que ele era um escravo agrilhoado a uma espécie anômala de terror [...] influência que certas particularidades apenas de forma e de substância do seu solar familiar, através de longos sofrimentos, dizia ele, exerciam sobre seu espírito;
Ele admitia, porém, embora com hesitaçao, que muito da melancolia peculiar que assim o afligia podia rastrear-se até uma origem mais natural e bem mais admissível: a doença severa e prolongada, a morte - aparentemente a aproximar-se - de uma irma ternamente amada, sua única companhia durante longos anos, sua única e última parenta na terra [...].
Enquanto ele falava, Lady Madeline (pois era assim chamada) passou lentamente para uma parte recuada do aposento e, sem ter notado minha presença, desapareceu. Uma apatia fixa, um esgotamento gradual de sua pessoa e crises frequentes, embora transitórias, de caráter parcialmente cataléptico eram os insólitos sintomas. [...]
uma noite, Usher, [...] tendo-me informado bruscamente que Lady Madeline nao mais vivia, revelou sua intençao de conservar-lhe o corpo por uma quinzena (antes de seu enterramento definitivo) em uma das numerosas masmorras, dentro das possantes paredes do castelo.
Tendo depositado nosso fúnebre fardo, sobre cavaletes, naquele horrendo lugar, desviamos em parte a tampa ainda nao pregada do caixao, e contemplamos o rosto do cadáver. Uma semelhança chocante entre o irmao e a irma deteve entao, em primeiro lugar, a minha atençao; e Usher, adivinhando, talvez, meus pensamentos, murmurou [...] que ele e a irma tinham sido gêmeos e que afinidades, duma natureza mal inteligível, sempre havia existido entre eles.
Tendo decorrido alguns dias de amargo pesar, uma mudança visível operou-se nos sintomas da desordem mental do meu amigo [...]. Vagava de quarto em quarto, a passos precipitados, desiguais e sem objetivo. A palidez de sua fisionomia tomara, se possível, um tom ainda mais espectral, mas a luminosidade de seu olhar havia se extinguido por completo [...]. Nao admira que sua situaçao terrífica me contagiasse. Senti subirem, rastejando em mim, por escalas lentas, embora incertas as influências estranhas das fantásticas mas impressionantes superstiçoes que ele entretinha [...]. Foi [...], sete ou oito dias, depois de haver sido colocado no túmulo o corpo de Lady Madeline, que experimentei o pleno poder desses sentimentos [...]. Lutei para dominar com a razao o nervosismo que de mim se apoderava [...]. Meus esforços, porém, foram infrutíferos. Irreprimível tremor, pouco a pouco, me invadiu o corpo, e, por fim, sentou-se sobre meu próprio coraçao o íncubo de uma angústia inteiramente infundada [...].
[...] perscrutando avidamente a intensa escuridao do quarto, escutei - nao sei por quê, mas impelido por uma força instintiva - certos sons baixos e indefinidos, que vinham por entre as pausas da tempestade, a longos intervalos, nao sabia eu de onde...vesti-me às pressas e tentei arrancar-me da lastimável situaçao em que caíra, andando rapidamente para lá e para cá pelo aposento [...]. Um instante depois batia levemente à minha porta e entrava trazendo uma lâmpada. Sua fisionomia estava, como sempre, cadavericamente descorada; mas, além disso, havia uma hilaridade louca em seus olhos, uma histeria evidentemente contida em toda a sua atitude. Seu ar aterrorizou-me [...] percebi um eco distinto, cavo, metálico e clangoroso, embora aparentemente abafado.
Completamente nervoso, de um salto, pus-me de pé; mas o movimento compassado de balanço de Usher nao se modificou. Corri para a cadeira onde estava sentado. Seus olhos estavam sempre fixos diante de si e por toda sua fisionomia imperava uma rigidez de pedra, mas quando coloquei minha mao sobre seu ombro, toda a sua pessoa estremeceu fortemente; um sorriso mórbido tremeu-lhe em torno dos lábios e eu vi que ele falava num murmúrio baixo apressado, inarticulado, como se nao notasse minha presença. Curvando-me sobre ele e bem de perto, sorvi, afinal, o medonho sentido de suas palavras. - Nao o ouves?
Sim, ouço-o, e tenho-o ouvido. Longamente [...] longamente [...] muitos minutos, muitas horas, muitos dias tenho-o ouvido, contudo nao ousava [...] Oh, coitado de mim, miserável desgraçado que sou! Nao ousava falar!
Nós! Nós! "Nós a pusemos viva na sepultura!" Nao disse que meus sentidos eram agudos? Agora eu lhe conto que ouvi seu primeiro fraco movimento, no fundo do caixao. Ouvi-o faz muitos, muitos dias, e, contudo, nao ousei falar! [...] o abrir-se do caixao, e o rascar dos gonzos de ferro de sua prisao, e o debater-se dela dentro da arcada de cobre da masmorra! Oh! Para onde fugirei? Nao estará ela aqui, dentro em pouco? Nao estará correndo a censurar-me por minha pressa? Nao ouvi eu o tropel de seus passos na escada? Nao distingo aquele pesado e horrível bater de seu coraçao? Louco! - e aqui saltou ele da cadeira e gritou, bem alto, cada sílaba, como se com aquele esforço estivesse exalando a própria alma: - Louco! Digo-lhe que ela está, agora, por trás da porta!
[...] as antigas almofadas da porta para as quais Usher apontava escancarara, imediatamente suas mandíbulas de ébano [...] estava de pé a figura elevada e amortalhada da Lady Madeline de Usher. Havia sangue sobre suas vestes alvas e sinais de uma luta terrível, em todas as partes de seu corpo emagrecido. Durante um instante, permaneceu ela, tremendo e vacilando, para lá e para cá no limiar. Depois, com um grito profundo e lamentoso, caiu pesadamente para a frente, sobre seu irmao, e, em seus estertores agônicos, violentos e agora finais, arrastou-o consigo para o chao, um cadáver, uma vítima dos terrores que ele mesmo antecipara.
Fugi espavorido daquele quarto, daquela mansao. Ao atravessar a alameda, a tempestade lá fora rugia, ainda em todo o seu furor [...] sobreveio uma violenta rajada do turbilhao [...] o inteiro orbe do satélite explodiu imediatamente à minha vista [...] meu cérebro vacilou quando vi as possantes paredes se desmoronarem [...] houve um longo e tumultuoso estrondar, semelhante à voz de mil torrentes [...] e o pântano profundo e lamacento, a meus pés, fechou-se, lúgubre e silentemente, sobre os destroços do "Solar de Usher".
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