Rev. bras. psicoter. 2025; 26(3):49-62
Silva AK, Petry M. Além dos limites: um caso de terapia dos esquemas em comorbidade de Transtorno de Personalidade Borderline e Transtorno por Uso de Substâncias. Rev. bras. psicoter. 2025;26(3):49-62
Artigo Original
Além dos limites: um caso de terapia dos esquemas em comorbidade de Transtorno de Personalidade Borderline e Transtorno por Uso de Substâncias
Beyond limits: a case study of schema therapy in comorbidity of Borderline Personality Disorder and Substance Use Disorder
Más allá de los límites: un caso de terapia de esquemas en la comorbilidad del Trastorno de Personalidad Borderline y el Trastorno por Uso de Sustancias
Alexandre Kieslich Silvaa; Milene Petryb
Resumo
Abstract
Resumen
Introdução
A coexistência de Transtornos de Personalidade (TP) com Transtornos por Uso de Substâncias (TUS) representa um desafio significativo na prática clínica. Entre os TP, os subtipos Borderline (TPB) e Antissocial (TPA) destacam-se como os mais prevalentes em pacientes com TUS, com taxas que chegam a ser quatro vezes maiores que na população geral2. Essa comorbidade frequentemente agrava o sofrimento psíquico, impacta as relações interpessoais e dificulta o funcionamento psicossocial3.
Além disso, a presença concomitante de TP e TUS impõe desafios terapêuticos, incluindo dificuldades na formação de aliança terapêutica, maior resistência ao tratamento e taxas elevadas de abandono6. No entanto, estudos indicam que pacientes com essa comorbidade podem apresentar melhorias significativas quando aderem ao tratamento, com redução do uso de substâncias e ganhos no funcionamento geral5.
A Terapia do Esquema de Foco Duplo (DFST) é uma abordagem promissora para esses casos complexos. Ela combina intervenções específicas para TUS com estratégias para modificar esquemas mal adaptativos associados aos TP, oferecendo um modelo integrado para lidar com os desafios dessa população7.
Este estudo tem como objetivo descrever a interação entre TPB e TUS, enfatizando os desafios clínicos e estratégias terapêuticas empregadas na DFST, utilizando o método de estudo de caso como ferramenta para análise aprofundada8.
Referencial teórico
Terapia do Esquema de Foco Duplo (DFST)
A DFST é uma psicoterapia manualizada com duração de 6 meses, que combina técnicas de prevenção de recaída com treinamento de habilidades focadas em esquemas. A DFST é composta por 16 tópicos principais e 12 tópicos opcionais, permitindo uma avalição de personalidade e dos esquemas iniciais desadaptativos (EIDS)9. Atualmente, existem ensaios clínicos randomizados que compararam a DFST com a terapia padrão e o programa de 12 passos dos Alcoólicos Anônimos adaptado para dependentes de opióides. Nos estudos, as taxas de abandono foram altas (cerca de 60%) tanto no grupo que recebeu DFST quanto no grupo controle, possivelmente devido ao contexto dos ambientes de tratamento - centro de atendimento para sem-teto e hospital forense10.
Entre os indivíduos adictos, tanto o uso de substâncias como uma recaída podem ser desencadeados por vários fatores, como conflitos interpessoais, pressões sociais, estados de humor, sintomas de abstinência e fissura11. Adictos com TP podem ser ainda mais sensíveis a estes fatores de recaída. A DFST postula que o uso de substâncias pode ocorrer por dois fatores principais: a) esquemas de autocontrole/autodisciplina insuficientes ou relacionamentos que ativam esquemas como subjugação e busca de aprovação; b) dificuldade de enfrentamento para evitar ou compensar a ativação de EIDs que ativa esquemas desadaptativos iniciais, como abandono/instabilidade, desconfiança/abuso, privação emocional, defectividade/vergonha, isolamento social/alienação, dependência/incompetência, emaranhamento, inibição emocional, padrões inflexíveis e postura punitiva12,13.
A DFST inclui técnicas tradicionais de prevenção de recaída para fatores interpessoais, afetivos e fissura, além de técnicas para estilos de enfrentamento de EIDs. Por exemplo, a análise funcional é usada para entender os episódios recentes de uso e fissura bem como o esquema desadaptativo e seu enfrentamento. São usadas técnicas de auto-monitoramento, solução de problemas e treinamento de habilidades (por exemplo, para emoções, conflitos e pressões interpessoais). As crenças disfuncionais sobre o uso de substâncias são conceituadas como um componente ou expressão dos principais esquemas subjacentes10.
Em um estudo longitudinal com uma amostra de homens dependentes de substâncias, evidenciou-se que os EIDs podem ser modificados após intervenções de 28 a 30 dias. Houve diminuição nos scores dos esquemas de Defectividade/Vergonha, Dependência/Incompetência, Inibição emocional, Arrogo/Grandiosidade, Isolamento social e Vulnerabilidade ao Dano ou Doença. Apesar da relevância destas informações, os autores apontam que o resultado na mudança EIDs pode ter ocorrido tanto pela abstinência das substâncias como também pelo desenvolvimento de habilidades sociais através do programa de tratamento12.
Em uma revisão sistemática, com amostra de 7 artigos, foi verificado a relação entre os EIDs e o TUSP. Os cinco EIDs mais frequentes foram: autocontrole/ autodisciplina insuficientes, autossacrifício, abandono/ instabilidade, padrões inflexíveis e privação emocional. Já os três EIDs que apareceram com menos frequência foram: defectividade/vergonha, emaranhamento e fracasso. Os esquemas de arrogo/ grandiosidade, busca de aprovação/busca de reconhecimento e negativismo/pessimismo não apareceram em nenhum dos sete artigos analisados13. Os autores descreveram a relação do álcool com os 5 domínios descritos por Young:
Domínio I - desconexão e rejeição - o mal-estar causado pela perda e dificuldade de vínculos seguros acaba sendo ocupado pelo álcool, através de uma estratégia de evitação. Neste sentido o EID de abandono/ instabilidadade está relacionado ao fato de as pessoas com transtorno por uso de álcool muitas vezes não lidarem bem com a rejeição e solidão. Já EID de privação emocional faz com que a pessoa tenha dificuldades de interação e uso de álcool auxiliaria como desinibidor.
Domínio II - autonomia e desempenho prejudicados - O álcool é usado para auxiliar na autoestima, fazendo com que o uso seja uma tentativa de se distinguir do meio ou do grupo no caso dos EID de emaranhamento e fracasso. Isto seria uma estratégia de hipercompensação.
Domínio III - limites prejudicados- o EID de autocontrole/autodisciplina insuficientes faz com que as pessoas não tenham controle sobre suas frustações e tenham dificuldade de limitar a expressão excessiva das próprias emoções e impulsos. Estas pessoas podem fazer uso de álcool ou substâncias como uma saída prazerosa a fim de esquivar-se do desconforto ou de responsabilidades, evitando, assim, ter contato direto com seus limites.
Domínio IV - direcionamento para o outro - no esquema de autosacrificio os indivíduos deixam sua vontade de lado para satisfazer um terceiro, isso favorece o surgimento emoções e sentimentos negativos, que podem ter no álcool uma estratégia de evitação ou fuga. Indivíduos com esse esquema podem usar o álcool para lidar com a falta de realização pessoal/pouco foco nas próprias necessidades ou também podem usar alguma substância psicotativa pela dificuldade de resistir à pressão social e a necessidade de satisfazer a vontade alheia.
Domínio V - supervigilância e inibição - o uso do álcool pode ser entendido como uma forma de reduzir a tensão e busca alívio, ou seja, seria uma estratégia de evitação, principalmente do esquema de padrões inflexíveis, uma vez que a pessoa busca suprimir sentimentos, impulsos e escolhas, o que gera sentimentos de pressão, dificuldade de relaxar e postura crítica.
Modos esquemáticos
Os modos esquemáticos podem ser definidos como um conjunto de esquemas que são ativados em determinadas situações gerando respostas fisiológicas, emocionais, cognitivas e comportamentais específicas. Young15 define como uma faceta da personalidade que não está totalmente integrada às demais facetas do eu. São o fruto da combinação de um ou mais esquemas ativados associados às reações comportamentais aprendidas.
Da mesma forma com que existem padrões esquemáticos comuns nos TP e no TUSP, estudos também sugerem existir modos esquemáticos mais frequentes em dependentes de álcool e cocaína. Kersten sugere que os modos esquemáticos mais frequentes em pacientes com TUA são os modos Protetor Desligado e Protetor Autoaliviador. Por outro lado, no Transtorno por Uso de Cocaína, os modos mais usados são Provocativo, Ataque e Autoengrandecedor16. No entanto outro estudo corroborou parcialmente com estes achados, salientando a presença dos modos Crianças (Vulnerável, Raivosa e Impulsiva) além do modo Pais Punitivos nesta população e evidenciou a relação entre a presença dos modos Criança Impulsiva e Raivosa a severidade no uso de álcool17.
Método
O presente estudo adotou uma abordagem metodológica fundamentada no estudo de caso, uma técnica frequentemente utilizada na pesquisa qualitativa em ciências da saúde. Ao contrário da pesquisa quantitativa, que busca quantificar e mensurar fenômenos, a pesquisa qualitativa visa compreender em profundidade os contextos, processos e experiências dos participantes. O estudo de caso permite investigar fenômenos em seus contextos reais, proporcionando uma compreensão aprofundada das vivências e interações dos indivíduos. Essa metodologia é especialmente relevante na psicologia, pois possibilita explorar as experiências subjetivas e os processos intrapsíquicos que influenciam o comportamento humano, os quais muitas vezes não podem ser capturados por métodos quantitativos18.
Neste estudo, o foco foi em uma única paciente atendida em psicoterapia, com dados coletados a partir dos registros das sessões terapêuticas. Esse método é útil para examinar em detalhes as complexidades das experiências individuais e dos processos terapêuticos.
A pesquisa foi realizada ao longo de um período de tempo específico, entre janeiro e dezembro de 2023, seguindo uma série de etapas. Inicialmente, foi realizada uma fase exploratória para definir a questão de pesquisa e os objetivos do estudo, seguida pela coleta de dados a partir dos registros das sessões terapêuticas. Por fim, os dados foram analisados para identificar padrões, temas e insights relevantes, com base em uma revisão da literatura existente sobre o tema.
Ressalta-se que, por se tratar de um relato de caso originado na prática clínica, o estudo não necessitou de aprovação formal pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), conforme descrito por Goldim, relatos de casos com até três participantes, provenientes da prática clínica, não exigem submissão ao CEP19. Para garantir a privacidade e o anonimato do paciente, foram adotadas medidas rigorosas de proteção dos dados, incluindo a alteração de informações identificáveis e o uso de pseudônimos, conforme descrito no termo de consentimento. O paciente foi informado sobre os objetivos do estudo e deu seu consentimento verbal para a utilização de suas informações de forma anônima, assegurando o sigilo das mesmas.
Resultados
Dados demográficos e histórico clínico:
Paula, 36 anos, foi encaminhada para tratamento após uma tentativa de suicídio, com diagnóstico de TUSP e dependência de benzodiazepínicos. Ela apresenta histórico de uso de múltiplas substâncias, incluindo ecstasy, LSD e maconha, com o álcool sendo a substância de preferência. Paula cresceu em um ambiente familiar marcado por rigidez e pouca afetuosidade, o que contribuiu para o desenvolvimento de esquemas disfuncionais. Ela tem uma relação tensa com suas irmãs, o que aumenta sua vulnerabilidade a padrões de busca de aprovação e autoimagem negativa.
Conceitualização de caso:
A análise esquemática revelou que Paula apresenta uma série de esquemas disfuncionais que influenciam diretamente sua saúde mental e comportamento aditivo. Os esquemas de Fracasso, Vulnerabilidade, Busca de Aprovação e Subjugação estão profundamente enraizados em suas experiências familiares e pessoais. A comparação constante com as irmãs e a falta de validação emocional por parte dos pais parecem ter contribuído para a formação desses esquemas. Paula também apresenta dificuldades de relacionamento e engajamento emocional, com evidências de comportamentos impulsivos e de evitação, como o abandono do estudo para concurso público e comportamentos passivo-agressivos.
Esquemas identificados e impacto no comportamento:
Os esquemas identificados foram analisados por meio do Young Schema Questionnaire - Short Form 3 (YSQ-S3)15. Esses esquemas refletem tanto o contexto familiar quanto os padrões atuais de comportamento. A tabela a seguir resume os esquemas mais relevantes e seus impactos no tratamento de Paula:
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