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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2025; 26(3):1-3



Editorial

A arte de finalizar

A arte de finalizar

Felipe Ornella,b; Anna Carolina Viduanic

 

 

Em psicoterapia, aprendemos cedo que terminar bem é parte do cuidar. Encerrar não é apenas concluir uma sequência de sessões ou assinar a última página de um relatório; é integrar, elaborar, dar forma ao vivido para que possa seguir em frente com mais autonomia. Fechamentos bem conduzidos tornam-se, em si, intervenções clínicas. Essa ética do encerramento vale também para projetos coletivos. Em um periódico científico que trata justamente de psicoterapia, a transição editorial não poderia ser diferente.

Términos mobilizam dimensões complexas da experiência humana. A psicanálise nos ensinou que o fim desperta fantasias de perda e repetições: finalizar é um trabalho de elaboração simbólica em que interpretamos resistências ao adeus e nomeamos o desejo de "mais um pouco", transformando a falta em espaço criativo. Quando o fim acolhe aquilo que retorna - o medo do abandono, a raiva da frustração, a tentação da atuação - ele devolve ao sujeito a possibilidade de escolher de outro modo.

A Terapia Cognitivo-Comportamental, por sua vez, organiza o encerramento desde o início: metas claras, agenda compartilhada, plano de prevenção de recaídas e estratégias de manutenção. O "último encontro" é, em certo sentido, preparado pelo primeiro. Ao revisitar habilidades, identificar gatilhos e treinar respostas alternativas, o fechamento deixa de ser um precipício e se torna uma ponte: entre o consultório e o cotidiano, entre o repertório construído e sua aplicação prática.

A Gestalt lembra que concluir é completar gestalts - permitir que experiências inacabadas encontrem forma, expressão e sentido. Encerrar é estar presente ao que foi possível e ao que não foi, de modo que até o inacabado ganhe contorno e possa ser integrado. Uma despedida consciente, nessa perspectiva, não sela o passado, mas libera energia para novos movimentos.

Na abordagem centrada na pessoa, a ética do término é inseparável da autonomia. Encerrar é um ato de congruência: verificar se a decisão ressoa com a experiência genuína do cliente, reconhecendo limites e celebrando o crescimento que emergiu na relação. Quando as condições facilitadoras estiveram presentes de forma suficiente, o fim não é vivido como ruptura, mas como confirmação de que aquilo que foi tecido no encontro permanece vivo nos fios da vida.

A terapia sistêmica, por sua vez, nos convoca a olhar o contexto. Nenhum encerramento é puramente individual: o que se finaliza são posições, padrões e contratos interacionais. O bom fim é aquele que reconhece a circularidade das relações e cuida da continuidade do sistema, com devolutivas claras, acordos explícitos sobre sinais de alerta e recursos de apoio, de modo que as mudanças possam se manter coerentes no tempo.

A análise do comportamento oferece ainda uma lição pragmática: se quisermos que comportamentos adaptativos se mantenham após a alta, precisamos preparar a transição de reforçadores - do setting terapêutico para os contextos naturais. Graduação de reforço, treino de generalização, autorregistros e planos de autogerenciamento são componentes de um fim que preserva o aprendido. Poderíamos seguir, convocando ainda a Terapia de Aceitação e Compromisso, a Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness e a Terapia Comportamental Dialética, que nos convidam a encerrar com valores e presença, ou a terapia narrativa, que nos ensina a escrever epílogos dignos.

Quando essas perspectivas convergem, o término revela sua potência clínica: acolhe o que retorna, organiza o que foi conquistado e completa o que estava suspenso. O ciclo se fecha não para selar o passado, mas para liberar energia ao próximo movimento.

Assim como nas práticas clínicas, projetos editoriais também vivem ciclos. Ao pensarmos nos "finais" de uma gestão à frente de um periódico científico, podemos tratá-los como tratamos os de nossos pacientes: com contrato, devolutiva e cuidado à rede. Transições editoriais pedem clareza, integração e continuidade. Não se trata de interromper um percurso, mas de realizar uma passagem de bastão que garanta a vitalidade do periódico. Encerrar uma gestão é restituir, reconhecendo publicamente autoras e autores, pareceristas, conselho editorial, equipe técnica e leitoras e leitores - sem quem a ciência não circula. É documentar, registrando aprendizados, processos e critérios que garantem qualidade, para que quem chega não recomece do zero. É encaminhar, indicando lacunas e abrindo perguntas, sinalizando trilhas promissoras para o próximo ciclo. É, por fim, celebrar o propósito: o compromisso com uma psicologia que melhora vidas, com método e humanidade.

Se em clínica um bom final é aquele que devolve sentido e fortalece a autonomia do paciente, na ciência um bom encerramento de gestão é o que preserva a identidade do periódico e facilita a continuidade, garantindo linhas editoriais estáveis, compromisso com a avaliação por pares, abertura ao debate plural, transparência de processos e zelo ético. Projetos não se esgotam em gestões; crescem com elas. Quando um ciclo editorial se conclui com transparência e gratidão, ele não fecha portas - abre passagens. O periódico segue seu curso, fiel ao que o originou: produzir e difundir conhecimento que melhora a prática clínica e a vida das pessoas.

Porque bons finais não apagam o trajeto; eles o tornam transmissível. Não encerram o trabalho; eles o devolvem à comunidade para que siga, plural, crítico e comprometido com os fatos e com as pessoas. Se terapias terminam quando objetivos razoáveis foram alcançados e quando há meios de sustentar ganhos, talvez devamos desejar o mesmo aos nossos projetos institucionais: que os ciclos se fechem com transparência, gratidão e continuidade. Que cada fim - clínico, acadêmico ou editorial - nos ajude a manter o que importa: a aliança com a realidade, a coragem de revisar certezas e a delicadeza no trato com o humano. Essa é, em última instância, a arte de finalizar: um gesto de cuidado que, longe de apagar, permite continuar.










a Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas. Hospital de Clínicas de Porto Alegre / Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS - Brasil
b Programa de Pós-graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS - Brasil
c Psicóloga (UFRGS), Mestre e Doutoranda em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS)

Autor correspondente

Anna Viduani
annacandrade@hcpa.edu.br

 

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