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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2024; 26(2):49-60



Artigo Original

Adversidades na infância e o risco de suicídio em pacientes com Transtorno de Personalidade Borderline: um estudo transversal

Childhood adversity and the risk of suicide in patients with Borderline Personality Disorder: a cross-sectional study

La adversidad en la infancia y el riesgo de suicidio en pacientes con Trastorno Límite de la Personalidad: un estudio transversal

Darlana Nalrad Teles Leite; Leonardo Pereira Toni; Ygor Daniel Pereira Medeiros; Maria Eduarda Medeiros Lombardi; João Vítor Nóbrega e Mélo Pereira

Resumo

INTRODUÇÃO: Adversidades na infância associam-se ao desenvolvimento do Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) e possivelmente ao risco aumentado de suicídio. Este estudo tem o objetivo de analisar se a presença de traumas na infância associa-se à ideação e ao comportamento suicida em indivíduos com TPB.
MÉTODO: É um estudo transversal, observacional e descritivo. Foram realizadas entrevistas com pacientes, utilizando o questionário Questionário de Trauma na Infância- Versão Reduzida (CTQ-SF), a subseção de TPB da Entrevista Clínica Estruturada para Transtornos de Personalidade do DSM-5 (SCID-5-PD) e a Escala de Avaliação do Risco de Suicídio de Columbia (C-SSRS). A coleta de dados ocorreu em ambulatórios de psiquiatria nas cidades de João Pessoa e Cabedelo, entre agosto e novembro de 2023.
RESULTADOS: Houve associação entre o escore total CTQ-SF e o comportamento suicida (p=0,04; OR:1,054; IC [1,001-1,110]). Entre as subescalas do CTQ-SF, o abuso emocional sugeriu associação mais significativa com o comportamento suicida (p= 0,01; OR: 1,596; IC [1,113-2,290]).
CONCLUSÃO: Exposição a experiências traumáticas na infância associou-se ao desenvolvimento do comportamento suicida em pacientes com TPB, principalmente o abuso emocional.

Descritores: Transtorno da Personalidade Borderline; Tentativa de suicídio; Experiências adversas da infância

Abstract

INTRODUCTION: Adversities in childhood are associated with the development of Borderline Personality Disorder (BPD) and possibly with an increased risk of suicide. This study aims to analyze whether the presence of childhood trauma is associated with suicidal ideation and behavior in individuals with BPD.
METHOD: This is a cross-sectional, observational and descriptive study. Interviews were conducted with patients using the Childhood Trauma Questionnaire - Reduced Version (CTQ- SF), the Structured Clinical Interview for DSM-5 Personality Disorders (SCID-5-PD) and the Columbia Suicide Risk Rating Scale (C-SSRS). Data collection took place in psychiatric outpatient clinics in the cities of João Pessoa and Cabedelo, between August and November 2023.
RESULTS: There was an association between the total CTQ-SF score and suicidal behavior (p=0,04; OR:1.054; CI [1.001-1.110]). Among the CTQ-SF subscales, emotional abuse suggested the most significant association with suicidal behavior (p= 0,01; OR: 1.596; CI [1.113-2.290]).
CONCLUSION: Exposure to traumatic experiences in childhood was associated with the development of suicidal behavior in patients with BPD, especially emotional abuse.

Keywords: Borderline Personality Disorder; Suicide; Attempted; Adverse childhood experiences

Resumen

INTRODUCCIÓN: Las adversidades en la infancia se asocian con el desarrollo del Trastorno Límite de la Personalidad (TLP) y posiblemente con un mayor riesgo de suicidio. Este estudio pretende analizar si la presencia de trauma en la infancia se asocia con ideación y conducta suicida en individuos con TLP.
MÉTODO: Se trata de un estudio transversal, observacional y descriptivo. Se realizaron entrevistas a los pacientes utilizando el Cuestionario de Trauma Infantil - Versión Reducida (CTQ- SF), la Entrevista Clínica Estructurada para los Trastornos de Personalidad del DSM-5 (SCID-5-PD) y la Escala Columbia para Evaluar el Riesgo de Suicidio (C-SSRS). La recogida de datos se realizó en ambulatorios psiquiátricos de las ciudades de João Pessoa y Cabedelo, entre agosto y noviembre de 2023.
RESULTADOS: Hubo asociación entre la puntuación total del CTQ-SF y el comportamiento suicida (p=0,04; OR:1,054; IC [1,001-1,110]). Entre las subescalas del CTQ-SF, el abuso emocional sugirió la asociación más significativa con la conducta suicida (p= 0.01; OR: 1.596; CI [1.113-2.290]).
CONCLUSIÓN: La exposición a experiencias traumáticas en la infancia se asoció con el desarrollo de conducta suicida en pacientes con TLP, especialmente el abuso emocional.

Descriptores: Trastorno de Personalidad Limítrofe. Intento de suicidio. Experiencias adversas de la infancia

 

 

Introdução

O Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) é uma condição prevalente, com uma maior incidência em mulheres, afetando aproximadamente 1 a 2% da população em geral no mundo. Ele se caracteriza por um padrão volátil de emoções, de comportamentos e de relações interpessoais e manifesta-se por oscilações abruptas e intensas no estado de ânimo, sensações de vazio, impulsividade e dificuldades na manutenção de relacionamentos estáveis e saudáveis. No processo diagnóstico, é crucial realizar um diferencial com outras condições, como transtorno bipolar, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Pesquisas recentes nos últimos cinco anos têm destacado uma correlação substancial entre a adversidade na infância e o desenvolvimento do TPB. Este termo abrange uma ampla gama de experiências, incluindo abuso físico, emocional e sexual, negligência, bem como eventos adversos como a perda de um dos pais ou o enfrentamento de uma doença crônica1.

A violência física e psicológica pode levar a uma série de consequências negativas para a saúde mental, incluindo o aumento do risco de desenvolvimento de transtornos de personalidade, incluindo o TPB. Quando uma pessoa é exposta a violência física e psicológica, ela pode sentir-se desamparada e impotente, o que pode levar a sentimentos de desesperança, de abandono e de inadequação. Esses sentimentos podem levar a comportamentos impulsivos e autolesivos, que são sintomas comuns do TPB2.

A exposição a traumas como a violência pode afetar o sistema nervoso central, resultando em uma resposta de "luta ou fuga" intensificada. Isso aumenta a vulnerabilidade ao estresse e prejudica a regulação emocional, influenciando os sintomas do Transtorno de Personalidade Borderline (TPB). A adversidade na infância pode impactar o desenvolvimento cerebral, especialmente nas áreas relacionadas à emoção e à resposta ao estresse. A associação entre adversidade na infância e TPB envolve caminhos como dificuldades na regulação emocional e na formação da identidade3,4.

As tentativas de suicídio são uma preocupação séria para indivíduos com TPB. Pesquisas indicam que uma parcela significativa dessas pessoas se envolve em comportamentos autodestrutivos ou possui histórico de ideação e tentativas de suicídio. O risco é mais elevado em comparação à população em geral, dada a desregulação emocional, uma característica central do TPB, que pode levar a sentimentos de desesperança e de desamparo. Sendo assim, a relação entre maus tratos na infância, TPB e comportamento suicida é complexa e influenciada por diversos fatores. A desregulação emocional gera dificuldades em lidar com emoções intensas e pode ocasionar pensamentos e comportamentos autodestrutivos, a exemplo da ideação e do comportamento suicida, como forma de aliviar o sofrimento emocional. Estudos recentes ressaltam que, entre os pacientes com transtorno de personalidade que sofreram maus tratos e tentaram suicídio em 2020, 35% deles possuíam TPB. Fornecer apoio adequado, terapia e intervenções especializadas é crucial para lidar com o trauma e com suas consequências emocionais5,6.

Assim, há uma carência de estudos no Brasil e no estado da Paraíba que levantem a associação entre a exposição de pacientes com TPB a traumas na infância (violência psicológica e física) e seu impacto no comportamento suicida desses pacientes. Este é um estudo transversal que foi realizado em ambulatórios de psiquiatria nas cidades de Cabedelo e João Pessoa, entre setembro e novembro de 2023. O objetivo deste trabalho foi avaliar se a presença de traumas na infância está associada a maior ideação e comportamento suicida em indivíduos com TPB.


Métodos

Participantes

Este estudo adota uma abordagem transversal, observacional e descritiva. Para o cálculo amostral, levou-se em consideração a prevalência de 2,7% do TPB na população geral7, e o valor da população adulta de 487.217 das cidades de João Pessoa e Cabedelo8. Através dos parâmetros, estimou-se o número mínimo de 41 participantes, considerando nível de confiança de 95% e erro amostral de 5%. Assumindo uma possível perda amostral de aproximadamente 5% dos participantes (por motivos como desistência de participação ou descontinuidade da coleta de dados), estimamos um total de 43 participantes. A amostra foi selecionada de forma não probabilística, por conveniência. Como critérios de inclusão, foram adotados idade igual ou superior a 18 anos e diagnóstico de transtorno de personalidade borderline. O transtorno por uso de álcool ou outras drogas foi adotado como critério de exclusão.

Procedimento

Os testes foram aplicados em sala silenciosa e privativa em um ambulatório de psiquiatria e em três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) nas cidades de João Pessoa e Cabedelo, com duração aproximada de 30 minutos. O procedimento iniciou-se com uma breve apresentação do pesquisador e da temática do trabalho, seguida do questionamento acerca do interesse em participar da pesquisa, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os participantes foram avaliados pelos critérios de inclusão e de exclusão e em seguida foi realizada uma apresentação instrutiva de cada teste antes da aplicação dos instrumentos de pesquisa.

Ferramentas de coleta de dados

Foi utilizado um formulário para a coleta de dados sociodemográficos relativos à data de nascimento, raça (branco, pardo, negro, amarelo, indígena, outro), sexo (masculino, feminino), estado civil (solteiro, casado/união estável, separado/divorciado, viúvo), anos completos de estudo, renda mensal e histórico de internação psiquiátrica.

A subseção contemplando a investigação diagnóstica de TPB da Entrevista Clínica Estruturada para os Transtornos de Personalidade do DSM-5 (SCID-5) foi utilizada para confirmação diagnóstica do TPB9. Trata-se de uma entrevista diagnóstica semiestruturada, sendo um dos instrumentos mais utilizados com esta finalidade em pesquisa. Para a avaliação de eventos adversos na infância e adolescência foi utilizado o Questionário de Trauma Infantil - Versão Reduzida (CTQ-SF). Trata-se de uma versão reduzida do Questionário de Trauma Infantil (CTQ) e possui 28 itens, cujas respostas baseiam-se na graduação da frequência em uma escala Likert de cinco pontos e variam entre: nunca, poucas vezes, às vezes, muitas vezes e sempre10, visando a detectar a prevalência de traumas ocorridos na infância e na adolescência. O questionário divide-se em cinco esferas: abuso físico, abuso emocional, abuso sexual, negligência física e negligência emocional. O CTQ-SF foi traduzido e adaptado ao português brasileiro11 e possui testes de consistência interna de subescalas com índices satisfatórios12.

Para avaliação do risco de suicídio, foi utilizada a Escala de Avaliação do Risco de Suicídio de Columbia (C-SSRS), que inclui duas subescalas da versão de referência: Gravidade da Ideação Suicida e Comportamento Suicida. A subescala de gravidade da ideação é classificada em uma escala ordinal de 5 pontos: 1 = desejo de estar morto, 2 = pensamentos suicidas ativos não específicos, 3 = pensamentos suicidas com métodos, 4 = intenção suicida e 5 = intenção suicida com plano. A subescala de comportamento suicida é uma escala nominal que inclui tentativas efetivas, tentativas abortadas e interrompidas, comportamento preparatório e comportamento autolesivo não-suicida13.

Análise de dados

Os bancos para armazenamento e para análise dos dados foram todos desenvolvidos no programa SPSS para Windows (versão 28)14. A significância estatística foi considerada quando p ≤ 0,05. Os dados demográficos foram descritos por frequência absoluta, relativa e, quando cabível, por média e por desvio-padrão. A normalidade dos dados foi avaliada através do teste de Kolmogorov- Smirnov. A correlação entre as variáveis contínuas comoidade, renda mensal, anos de estudo, escores do CTQ-SF, quantidade de critérios diagnósticos para TPB e intensidade da ideação suicida (C-SSRS) foi analisada através do teste de correlação de Pearson. A associação entre os escores do CTQ-SF e comportamento suicida (C-SSRS) foi analisada através de regressão logística. A associação entre os escores do CTQ-SF e variáveis ordinais (níveis de gravidade de ideação suicida e tentativa de suicídio da C-SSRS) foi analisada através de regressão logística ordinal. Por fim, os escores das subescalas do CTQ-SF foram transformados em variáveis dicotômicas: ausência ou presença da experiência adversa (pontos de corte: ≥13 abuso emocional, ≥10 abuso físico, ≥8 abuso sexual, ≥15 negligência emocional e ≥10 para negligência física)15, cuja associação com o comportamento suicida foi analisada através do teste exato de Fisher (pelo menor tamanho amostral, alguns eventos apresentaram frequência inferior a cinco, impossibilitando a análise dos dados através do chi- quadrado).

Declaração de ética

Este estudo obteve o Termo de Anuência do Núcleo de Ensino e Pesquisa dos serviços de Psiquiatria de João Pessoa e de Cabedelo. Também foi cadastrado na Plataforma Brasil, conforme a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). O trabalho foi submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário de João Pessoa apresentando CAAE 72830423.4.0000.5176 e, após aceitação, iniciou-se a coleta de dados. Foi seguida a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS).


Resultados

Ao todo, 44 participantes foram rastreados para elegibilidade; destes, um não foi incluído por não atender aos critérios de elegibilidade (ausência de diagnóstico de TPB). Portanto, a amostra foi composta por 43 indivíduos cujas características sociodemográficas da amostra estão apresentadas na Tabela 1.



Conforme mostra a Figura 1, observou-se associação entre o escore total de maus tratos na infância (CTQ-SF) e a presença de comportamento suicida; entre as subescalas do CTQ-SF, foi encontrada associação apenas com abuso emocional.



Não houve associação entre possíveis variáveis intervenientes demográficas, como idade (p=0,53), escolaridade (p=0,85) e renda mensal (p=0,52), mas houve associação com o total de critérios diagnósticos para o transtorno de personalidade borderline (AOR=2,104; IC 95%, 1,047-4,229; Wald χ2(1) = 4,363, p=0,037); no entanto, ao realizar a regressão logística utilizando a subescala de abuso emocional e, como covariável, o total de critérios diagnósticos para TPB, esta última não apresentou mais associação com o desfecho (p=0,147), enquanto a associação com abuso emocional persistiu associada a maior risco (AOR=1,569; IC 95%, 1,0822,275; Wald χ2(1) = 5,644, p=0,018), corroborando os resultados apresentados na Figura 1.

Ao analisar as subescalas e o escore total do CTQ-SF, não foi encontrada correlação com a intensidade da ideação suicida (r=0,236; p=0,074), embora a subescala de abuso emocional tenha apresentado nível de significância marginal (r=0,264; p=0,052). Ao analisarmos a associação entre estas mesmas variáveis preditoras e o nível de ideação suicida (seis níveis, desde ausência de ideação suicida, até ideação suicida com plano específico e intenção), através de regressão logística ordinal, não foram encontradas diferenças no escore total da CTQ entre os níveis de ideação suicida(p=0,057); no entanto, ao analisarmos suas subescalas, um aumento no escore de abuso emocional foi associado com aumento de chance de apresentar ideação suicida com plano específico e intenção (nível mais grave), com odds ratio de 1,247 (IC 95%, 1,068-1,455; Wald χ2(1) = 7,82, p=0,05). Ao analisar associação entre as subescalas e escore total do CTQ-SF e a letalidade da tentativa de suicídio mais grave já efetuada (seis níveis, desde ausência de danos físicos ou danos físicos leves, até morte), através de regressão logística ordinal, não foram encontradas diferenças no escore total da CTQ entre os níveis de gravidade da tentativa (p=0,349).

Ao analisar comportamento suicida e as subescalas do CTQ-SF de forma dicotômica (presença ou ausência de exposição a maus-tratos), através do teste exato de Fisher, foi encontrada associação apenas com abuso emocional, conforme descrito na Tabela 2.



No contexto deste estudo, procedemos à avaliação da possível associação entre a ocorrência de experiências traumáticas durante a infância e a gravidade da ideação suicida, bem como a presença de comportamento suicida em indivíduos diagnosticados com TPB.

O resultado central sugere uma associação significativa entre traumas na infância e níveis mais elevados de comportamento suicida ao longo da vida. Estudos prévios nessa área também demonstraram que experiências adversas na infância são preditores robustos e consistentes para a suicidalidade em indivíduos com TPB516. Sugere-se que exista uma interação complexa entre as adversidades na infância, o TPB e os mecanismos epigenéticos que afetam negativamente o desenvolvimento cerebral, sobretudo na desregulação emocional e na resposta ao estresse, que levam a diferentes manifestações do transtorno, como o maior índice de suicídios17,18,19.

No presente estudo, foi identificada uma associação entre o comportamento suicida, a presença e gravidade de abuso emocional. Quanto à gravidade da ideação suicida, houve associação com a presença de abuso emocional. Uma metanálise conduzida por Zattiet al.20 demonstrou associação entre a negligência física, o abuso físico, o abuso emocional, o abuso sexual e as tentativas de suicídio. Já uma coorte realizada por Wediget al.16 sugere que a negligência infantil e o abuso sexual infantil predizem maior impulsividade, alto neuroticismo e futuras tentativas de suicídio.

A associação positiva entre o escore diagnóstico de TPB e o comportamento suicida sugere que, quanto maior a pontuação diagnóstica, maior o risco de suicídio21,22. Em um estudo exploratório realizado com uma população carcerária23, foram desenvolvidos modelos de machine learning capazes de identificar fatores de risco para comportamento suicida em portadores de TPB, e o mais preciso deles identificou que atender a cinco ou mais critérios diagnósticos de TPB aumenta o risco de suicídio, o que reforça a associação encontrada em nosso trabalho. Esse mesmo estudo também identificou hospitalizações prévias como fator de risco para comportamento suicida, em consonância com o histórico de hospitalizações prévias por motivos psiquiátricos encontrado em 39,5% de nossa amostra.

Fatores sociodemográficos como idade, gênero, nível socioeconômico e contexto cultural podem influenciar na relação entre traumas na infância e comportamento suicida em pacientes com TPB24,25. Pacientes mais jovens tendem a apresentar comportamentos mais impulsivos, passando a manifestar cronicidade e maior risco de suicídio em idades maiores. Mulheres com TPB geralmente apresentam alterações como automutilação e ideação suicida, enquanto homens tendem a apresentar comportamentos agressivo e delitivo, além de uso de substâncias psicoativas25. O nível socioeconômico impacta a exposição a traumas e o acesso a cuidados de saúde mental, exacerbando a gravidade do TPB, com tendência à subnotificação de adversidades devido ao estigma ou à normalização do abuso. O contexto cultural, por sua vez, molda a percepção e o relato dos traumas, com variações significativas na forma como diferentes culturas abordam o abuso emocional e o suicídio24. No presente estudo, contudo, não foram encontradas associações entre os fatores sociodemográficos avaliados e as variáveis de interesse.

Os resultados devem ser interpretados considerando-se as limitações do estudo, as quais podem restringir inferências sobre causalidade, além do efeito de possíveis variáveis intervenientes que não foram investigadas, como a presença de outros diagnósticos psiquiátricos26. A validade dos relatos retrospectivos de experiências na infância é controversa devido à tendência de identificar casos mais graves de maus-tratos, associados a viés de memória e maior comorbidade. Preocupações adicionais incluem a possibilidade de relatos gerarem falsos negativos, especialmente por sujeitos resilientes que subnotificam adversidades, e a influência de sintomas depressivos atuais na decisão de relatar ou não determinada adversidade27.


Conclusão

Os resultados encontrados no presente estudo indicam que a exposição a um maior número de experiências traumáticas na infância, em destaque o abuso emocional, apresenta correlação positiva com a gravidade da ideação suicida, o que pode ser responsável por mediar maior risco para comportamento suicida.

Diante destes achados, pode ser apontada a necessidade de programas de atenção em saúde que levem em consideração a influência das experiências adversas precoces para pacientes em potencial risco de suicídio, utilizando-se de práticas clínicas que incluam a avaliação sistemática e detalhada de traumas na infância em pacientes com TPB, com intervenções terapêuticas que priorizem mitigar os impactos psicossociais desses eventos adversos. Ainda no âmbito de políticas públicas, é imprescindível o fomento de programas sociais com o objetivo de minimizar e, idealmente, evitar a exposição de crianças e adolescentes a experiências adversas desta natureza, devendo ser acompanhados de campanhas educativas que conscientizem sobre a importância do reconhecimento e do tratamento das consequências de adversidades na infância.

Estudos clínicos avaliando diferentes intervenções terapêuticas se fazem necessários, levando também em consideração aspectos demográficos e culturais, para ampliar a disponibilidade e nortear a indicação de opções de tratamento de melhor efetividade nesta população específica.


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Centro Universitário de João Pessoa, Curso de Medicina - João Pessoa/PB - Brasil

Autor correspondente
Darlana Nalrad Teles Leite
darlana_teles@outlook.com

Submetido em: 18/12/2023
Aceito em: 01/12/2024

Contribuições: Darlana Nalrad Teles Leite - Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Leonardo Pereira Toni - Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Ygor Daniel Pereira Medeiros - Análise estatística, Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original; Maria Eduarda Medeiros Lombardi - Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Redação - Preparação do original, Visualização; João Vítor Nóbrega e Mélo Pereira - Análise estatística, Gerenciamento de Recursos, Gerenciamento do Projeto, Metodologia, Redação - Revisão e Edição, Supervisão.

Agradecimentos

Este estudo contou com o apoio do Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira, do CAPS III - Caminhar, do CAPS II - Porto Cidadania e do CAPS III - Gutemberg Botelho. Agradecemos ao nosso professor orientador João Vítor Nóbrega e Mélo Pereira e a nossa tutora Michelle Sales Barros de Aguiar.

Conflitos de interesse

Os autores informam que não possuem conflitos de interesse.

 

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