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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2024; 26(2):1-5



Editorial

Os fenômenos "sozinhos juntos" e a "cultura do hock-up" entre homens gays em apps de encontros: o que isso têm a ver com solidão, desapego e desconexão?

Alessandra Diehla; Felipe Ornellb,c

 

 

Os aplicativos de namoro gay têm se tornado cada vez mais populares e têm sido intensivamente utilizados em vários lugares ao redor do mundo1-4. Para se ter uma noção em números deste acontecimento, atualmente, o Grindr® (um dos apps bastante populares entre homens gays) possui mais de 14,6 milhões de usuários ativos mensais em todo o mundo5. Esse crescente aumento do uso de aplicativos de namoro móvel ("apps") tem levado a mudanças profundas na forma com que homens de minorias sexuais (HMS) se "conectam" ou se "desconectam" com os outros e consigo mesmos1,2.

Por um lado, os apps de encontros entre homens gays, significam uma nova cultura dentro dos diversos tipos de cibercomportamentos da contemporaneidade e podem representar uma janela de oportunidades para intervenções, inclusive na área de promoção de saúde4,6-8. No entanto, por outro lado, também têm sido associados a uma série de questões relacionadas a aspectos emocionais (como por exemplo pouca satisfação corporal e baixa autoestima), pois frequentemente categorizam os usuários por fatores como tipo físico, por exemplo2. Além de experiências de superficialidade, expectativas não atendidas e, às vezes, interseções dolorosas com interseccionalidades definidas por idade, raça, tipo de corpo, expressão de gênero e status sorológico. Ao mesmo tempo, em que existe uma aspiração à sociabilidade, construção de redes sociais e buscam uma linguagem de afiliação além dos termos de parentesco e amizade da sociedade em geral, conforme relatado em estudo prévio que investigou 79 homens gays usuários de aplicativos de encontro9.

Além disso, parece existir uma forte discriminação sexual racializada, também conhecida como 'racismo sexual', ou ainda a fetichização racial e a reprodução de estereótipos de construção de corpos que também são predominantemente encontradas em plataformas de encontros online3,10. Soma-se a violência (assédio sexual e objetificação), adoecimento psíquico (internalização e vigilância do corpo), piora de quadros psiquiátricos pré-existentes (transtornos alimentares, depressão e ansiedade)11 e comportamentos sexuais de risco (maior número de parcerias sexuais e infecções sexualmente transmissíveis)4, o que nos revela a viabilidade de usar as percepções de estigma como um mecanismo para entender a saúde mental dos usuários de aplicativos de namoro gay. Mas sobretudo, compreender a solidão, o desapego e a desconexão muitas vezes existentes2,12.

Tudo isso pode na verdade representar mais uma das várias facetas de dois fenômenos que (numa licença científico-literária) hipotetizamos que possam estar intimamente interligados. O primeiro, pode ser nomeado de "sozinhos juntos", ou seja, refere-se à esta situação em que homens gays, por exemplo, estão fisicamente sozinhos, mas conectados digitalmente através de tecnologias como redes sociais de relacionamentos e aplicativos de encontros. A ideia aqui presente é que apesar de estarmos constantemente conectados através da tecnologia, muitas vezes nos sentimos mais infelizes, isolados e solitários2,13.

Este fenômeno foi bastante discutido no livro intitulado "Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other" escrito pela psicóloga Sherry Turkle que explora como a tecnologia tem transformado a forma como nos relacionamos uns com os outros, pois mudou a maneira que conhecemos e abordamos potenciais parcerias românticas e/ou sexuais e como construímos nossos mundos internos a partir destas vivências. Um dos seus argumentos é que, enquanto a tecnologia tende a facilitar a nossa comunicação, ela também diminui nossas expectativas em relação aos outros seres humanos13.

Um estudo prévio que investigou 371 homens gays e bissexuais chineses mostrou que a associação entre a intensidade do uso de aplicativos de namoro gay e a solidão foi mediada sequencialmente pelo estigma percebido da sexualidade e pelo estigma internalizado da sexualidade2. Ou seja, o aumento da intensidade do uso de aplicativos de namoro gay fortalece o estigma percebido da sexualidade, que por sua vez reforça o estigma internalizado da sexualidade, exacerbando ainda mais a solidão. Em consonância, He e colaboradores evidenciaram que níveis motivacionais intensos para o uso de apps de encontros entre homens gays estiveram associados a níveis mais altos de auto estigma e vazio subjetivo12.

Uma segunda hipótese está inserida dentro do contexto de uma "cultura do hook-up", a qual numa tradução livre poderíamos dizer que se refere a "cultura de pegação". Em outras palavras, trata-se de um comportamento social observado também nos apps de encontros para gays e/ou homens que fazem sexo com homem (HSH) onde existe uma busca por encontros mais casuais e sem compromisso, muitas vezes com foco apenas no prazer sexual imediato e na vivência da expressão da sexualidade de forma mais livre. Embora essa cultura ofereça a possibilidade de ampliar o repertório de parcerias sexuais, ela também não está isenta de trazer desafios emocionais, como os sentimentos de solidão14,15. Estudo conduzido por Fonseca-Cuevas e. colaboradores sinalizou que o uso de linhas telefônicas de bate-papo gay ou plataformas de namoro online mediou 30,5% da associação entre solidão e risco de aquisição de HIV16.

A sexualidade neste contexto, tende a exercer uma função puramente provedora de sensações imediatas e fugazes, de forma que as relações são transitórias e se tornaram "líquidas" e mediadas pelo desejo. Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, nos anos 2000, cunhou esse termo "relações líquidas" que se popularizou bastante no meio psicológico e psiquiátrico para descrever a natureza das relações interpessoais na modernidade líquida, um conceito que tenta explicar a fluidez, a volatilidades das relações interpessoais e a incerteza das estruturas sociais contemporâneas17. Essa questão também nos aponta para a ideia de hipersexualidade masculina, que encontrou bastante espaço no advento dos aplicativos de relacionamento, permitindo que homens gays ou HSH formem vínculos que são sustentados pela hegemonia masculina, na medida em que (re)produz performatividades de gênero18.

Estas duas hipóteses são uma linha de pesquisa que deveriam ser testadas clinicamente e, sobretudo, ampliadas através de estudos transculturais já que ainda temos poucos estudos, principalmente no Brasil, que examinam de perto os efeitos do uso de aplicativos de namoro de homens gays nos desfechos de saúde mental, solidão, desapego e desconexão. Conhecer melhor este universo ajudaria psicoterapeutas a traçar melhores linhas de intervenção, contribuindo com boas práticas clínicas no cuidado de pessoas que eventualmente sofram com questões relacionadas ao uso destas tecnologias.

Diante desse cenário, os desafios para a saúde mental e para a prática psicoterapêutica são imensos e multifacetados. O uso intensivo de aplicativos de relacionamento por homens gays não apenas reflete, mas também amplia questões de solidão, autoestigma, desconexão e hipersexualização, interferindo diretamente na relação desses indivíduos consigo mesmos e com o mundo ao seu redor. Os fenômenos "sozinhos juntos" e a "cultura do hook-up" ilustram essa dualidade: ao mesmo tempo em que esses aplicativos ampliam as possibilidades de vivenciar relações sexuais e afetivas, criando espaços de expressão e pertencimento historicamente marginalizados, eles também intensificam desafios como relações transitórias, desapego emocional, expectativas frustradas e solidão. Essas novas formas de sociabilidade, mediadas pela tecnologia, acabam por adentrar o setting terapêutico, demandando dos profissionais uma abordagem sensível e atualizada, capaz de acolher as complexidades desse contexto.

É fundamental que os psicoterapeutas estejam familiarizados com essas dinâmicas contemporâneas e com os impactos que elas geram na subjetividade e nos vínculos afetivos, muitas vezes pautados pela desconexão e pela busca de validação imediata. A psicoterapia deve considerar não apenas os impactos individuais - como autoestima fragilizada, padrões de relacionamento instáveis e sofrimento emocional - mas também os fatores socioculturais e tecnológicos que moldam essas vivências. Proporcionar um espaço seguro para a ressignificação dessas experiências, fomentar o fortalecimento da identidade e promover habilidades de conexão genuína e saudável tornam-se pilares fundamentais para o cuidado e intervenção junto a essa população, cada vez mais imersa em um ambiente digital que, paradoxalmente, tanto aproxima quanto isola.


Referências

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02. Cao B, Smith K. Gay Dating Apps in China: Do They Alleviate or Exacerbate Loneliness? The Serial Mediation Effect of Perceived and Internalized Sexuality Stigma. J Homosex. Jan 28 2023;70(2):347-363. doi:10.1080/00918369.2021.1984751

03. Wade RM, Pear MM. Online Dating and Mental Health among Young Sexual Minority Black Men: Is Ethnic Identity Protective in the Face of Sexual Racism? Int J Environ Res Public Health. Nov 01 2022;19(21) doi:10.3390/ijerph192114263

04. Hecht J, Zlotorzynska M, Wohlfeiler D, Sanchez TH. Increases in Awareness and Uptake of Dating Apps' Sexual Health Features Among US Men Who Have Sex with Men, 2018 to 2021. AIDS Behav. Sep 2024;28(9):2829- 2835. doi:10.1007/s10461-024-04349-4

05. Grindr quarterly MAU 2024 | Statista. [Internet]. Acessado em 26/11/2024.

06. Ruscher C, Werber D, Thoulass J, et al. Dating apps and websites as tools to reach anonymous sexual contacts during an outbreak of hepatitis A among men who have sex with men, Berlin, 2017. Euro Surveill. May 2019;24(21)doi:10.2807/1560-7917.ES.2019.24.21.1800460

07. Hecht J, Zlotorzynska M, Sanchez TH, Wohlfeiler D. Gay Dating App Users Support and Utilize Sexual Health Features on Apps. AIDS Behav. Jun 2022;26(6):2081-2090. doi:10.1007/s10461-021-03554-9

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aAssociação Brasileira de Estudo do Álcool e outras Drogas (ABEAD), Porto Alegre/RS - Brasil
bCentro de Pesquisa em Álcool e Drogas. Hospital de Clínicas de Porto Alegre / Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS - Brasil
cPrograma de Pós-graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS - Brasil

Autor correspondente
Alessandra Diehl
alediehl@terra.com.br

 

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