Rev. bras. psicoter. 2024; 26(1):105-123
Araújo MAC, Lopes RFF, Andrade EO. Intervenções sobre a vergonha na perspectiva da Terapia Focada na Compaixão: uma revisão sistemática. Rev. bras. psicoter. 2024;26(1):105-123
Artigos de Revisao
Intervenções sobre a vergonha na perspectiva da Terapia Focada na Compaixão: uma revisão sistemática
Interventions on shame from the perspective of Compassion-Focused Therapy: a systematic review
Intervenciones sobre la vergüenza desde la perspectiva de la Terapia Centrada en la Compasión: una revisión sistemática
Matheus Augusto Caixeta Araújo; Renata Ferrarez Fernandes Lopes; Emanuelle Oliveira Andrade
Resumo
Abstract
Resumen
Introdução
A vergonha é uma experiência emocional complexa que transcende as fronteiras culturais e nacionais. Independentemente da origem cultural, a vergonha é um sentimento que pode ser desencadeado por uma série de situações, incluindo fracasso, rejeição, humilhação ou, ainda, quando a pessoa vivencia sentimentos de inadequação, inferioridade, defectividade, impotência, exposição negativa, sensação de ser socialmente não atrativa, etc. A vergonha pode levar a consequências psicológicas e comportamentos negativos que prejudicam o bem-estar emocional e favorecem o surgimento e podem potencializar problemas de saúde mental1.
Por ser uma emoção autoconsciente e socialmente focada, a vergonha, uma vez acionada, faz com que o indivíduo utilize estratégias de evitação, como ocultar deficiências, além de favorecer a experiência de um self mais passivo, paralisado e desamparado, enquanto o outro é visto como fonte de escárnio e desprezo, levando o indivíduo a ocultar os alvos de vergonha, tornando-a difícil de ser identificada, inclusive em processos psicoterapêuticos1,15.
Gilbert e Procter7 argumentam que existem dois tipos de vergonha: interna e externa. A vergonha externa se relaciona a como alguém se percebe existindo na mente de uma outra pessoa tendo defeitos e falhas, percebendo-se passível de críticas, inferior, inadequado, imprestável, ruim, etc. Na vergonha externa, a atenção e processamento cognitivo estão direcionados para o externo, para a imagem que se acredita que o outro tem em mente, e o comportamento se volta para tentar influenciar positivamente como se é percebido pelo outro. Já a vergonha interna refere-se a como nos avaliamos em nossas mentes, isto é, como nos julgamos e nos sentimos em relação a nós mesmos. Está ligada a uma autoavaliação global negativa e sentimentos de ser inadequado, inferior, fraco, ou globalmente ruim. A atenção e processamento cognitivo na vergonha interna estão dirigidos internamente para as emoções, atributos e comportamentos pessoais focados nas próprias falhas e deficiências. Segundo Gilbert16, a vergonha interna pode ser vista como uma resposta defensiva internalizada da vergonha externa, em que o indivíduo passa a se identificar com o que acredita existir na mente do outro, engajando-se em autoavaliações negativas. A vergonha (externa e interna) são produtos de uma mentalidade competitiva, na qual o processamento cognitivo-afetivo está relacionado a status e ranqueamento social. O sentimento de vergonha está associado a uma crença de retrocesso do indivíduo nesse ranqueamento1.
Intervenções baseadas em mindfulness e compaixão para lidar com a vergonha de maneira cuidadosa e "amigável" podem ser eficazes no tratamento da depressão, ansiedade e transtornos alimentares. A Terapia Focada na Compaixão (TFC), segundo Gilbert1, é baseada na compreensão evolutiva da mente humana e se concentra em ajudar pessoas a superar a vergonha (interna/externa) e a autocrítica utilizando práticas de mindfulness, técnicas de autocompaixão e exploração cuidadosa das origens da vergonha e da autocrítica.
A TFC tem em suas práticas interventivas, o Treinamento da Mente Compassiva (TMC), que visa ativar e desenvolver sistemas motivacionais e emoções, concentrando-se em cuidados afiliativos, com a intenção de regular sistemas concorrentes (focados em ameaças) e estimulando processos psicológicos e neurofisiológicos (principalmente associados ao sistema parassimpático). Tem a finalidade de promover melhorias na regulação das emoções, bem-estar na saúde e nas relações sociais2,3,8 , bem como auxiliar no manejo de questões importantes relacionadas às ameaças competitivas, como a autocrítica e a vergonha.
O TMC consiste em uma série de exercícios, como técnicas de respiração, visualizações e exercícios comportamentais para estimular o nervo vago, equilibrar o sistema nervoso autônomo e recrutar vários circuitos neurais relacionados à compaixão. O TMC trabalha para cultivar a compaixão, incluindo três fluxos interativos: a) capacidade de oferecer autocompaixão; b) habilidade de oferecer compaixão aos outros; e c) capacidade de receber compaixão dos outros. Quando equilibrados, cada um deles contribui para o bem-estar e o comportamento pró-social. O desequilíbrio de qualquer um dos fluxos da compaixão pode estar associado a medos, bloqueios e resistência aos cuidados que precisam ser abordados em psicoterapia, pois o desequilíbrio em qualquer um deles impede o bem-estar pessoal1.
A TFC promove o bem-estar e a qualidade de vida à medida que amplia a mentalidade cooperativa e compassiva e modera a expressão de uma mentalidade competitiva1. A vergonha (interna e externa), presente em uma série de transtornos mentais9,10, é um dos elementos que fundamenta os medos, bloqueios e resistências para ser compassivo com os outros (exemplo: medo de ser ridicularizado, por oferecer compaixão), para receber compaixão dos outros (exemplo: medo de ser visto como fraco, por receber compaixão) e para autocompaixão (vergonha interna)7.
Assim, por meio de uma revisão bibliográfica sistemática, esse artigo tem como objetivo mapear nos estudos, os procedimentos e técnicas de intervenção da TFC no manejo da vergonha e identificar a(s) técnica(s) de intervenção(ões) transversais à maioria dos estudos, descrevendo o possível impacto na comunidade científica (número de citações); a natureza das amostras estudadas (tamanho e população alvo); a "expertise" do pesquisador/terapeuta; os principais instrumentos de avaliação da compaixão e da vergonha utilizados nos estudos e a manutenção dos resultados obtidos (follow-up).
Método Procedimento
A coleta de dados seguiu o Método PRISMA e foi dividida em 4 fases. Fase 1: Na primeira fase, foi realizada uma busca de materiais através das bases de dados BVS saúde (n = 20), MEDLINE (n = 20), PubMed (n = 47) e Google acadêmico (n = 18). Estudos duplicados (n= 36) foram removidos nessa fase prévia da revisão. Os unitermos foram consultados na Terminologia da BVS-Psi. Foram utilizados os seguintes termos e combinações: "shame" AND "compassion focused therapy"; e "vergonha" AND "terapia focada na compaixão". Fase 2: Todos os materiais encontrados (n = 69) foram submetidos aos critérios de inclusão e exclusão. Posteriormente, foi feita uma seleção de trabalhos a partir da leitura de títulos e resumos. Os que se encaixaram nos critérios (n = 30) foram recuperados e lidos na íntegra. Fase 3: Esta fase integrou a revisão crítica dos estudos e todos os materiais foram avaliados e submetidos aos critérios de inclusão e exclusão, sendo excluídos 14 capítulos de livro, 8 estudos sem intervenções e 3 estudos com intervenção-não-TFC. Os estudos foram selecionados a partir dos seguintes critérios: a) características do artigo: autores, ano de publicação, local de publicação. b) características do conteúdo do artigo: número de citações do estudo, objetivos, tema associado ao estudo da vergonha, tamanho da amostra, população alvo, procedimentos, Instrumentos utilizados no estudo, resultados e conclusões, e presença de follow-up. Fase 4: Após triagem, 8 estudos foram selecionados para leitura na íntegra. Ao final, aplicados os critérios da planilha de análise, 5 estudos foram selecionados para a revisão sistemática narrativa.
Foram incluídos apenas artigos revisados por pares em revistas, dissertações e teses, que investigaram o resultado de protocolos/ técnicas de intervenção clínica de TFC no manejo da vergonha, publicados entre 2014 e 2021, escritos em língua inglesa. Artigos em língua portuguesa não foram encontrados. Foram excluídos textos de revisão; publicações que apresentassem intervenções de TFC para quadros psicopatológicos que não estavam associadas ao sentimento de vergonha; intervenções de TFC para manejo da vergonha em amostras de menores de 18 anos; estudos que não apresentavam follow-up.
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