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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2024; 26(1):9-13



SEÇÃO ESPECIAL

Uma carta do Paquistão ao Brasil: ampliando o acesso e o suporte à saúde mental para afegãos afetados pelo conflito

A Letter from Pakistan to Brazil: Extending Access and Mental Health Support for Conflict-Affected Afghans

Khalid A Muftia; Ali Ahsan Muftib; Farida Saific; Afzal Javedd

 

 

A deslocamento de populações devido à guerra, instabilidade política ou desastres ambientais continua sendo um desafio global significativo1. Enquanto o Brasil enfrenta um influxo de refugiados da Venezuela e do Afeganistão, junto ao deslocamento de seus próprios cidadãos devido a inundações severas nas regiões sul no final de 2023 e no início de 2024, há muito a aprender com as experiências de outras nações1. O Paquistão, que hospeda milhões de refugiados afegãos desde o início dos anos 19802, oferece valiosas percepções sobre os desafios de saúde mental enfrentados pelas populações deslocadas e a evolução do atendimento psiquiátrico para esses grupos vulneráveis.


A Crise Inicial: O Influxo de Refugiados no Início dos Anos 1980

No início dos anos 1980, à medida que a invasão soviética do Afeganistão provocava migração em massa, o Paquistão tornou-se lar de mais de 3,5 milhões de refugiados afegãos, concentrados principalmente na Província da Fronteira Noroeste (NWFP). Esses refugiados, frequentemente traumatizados pela violência da guerra, enfrentavam desafios significativos de saúde mental. Uma pesquisa psiquiátrica realizada entre 1981 e 1983 em campos de refugiados perto de Peshawar destacou a alta prevalência de condições como depressão reativa, neurose fóbica e psicose3,4. Essas condições eram significativamente mais altas em comparação com a população local, provavelmente devido ao estresse combinado da migração forçada e da exposição prolongada à guerra e à violência5. Entre os sintomas mais comuns estavam alucinações visuais vívidas, ligadas ao trauma de combate e deslocamento, com refugiados descrevendo helicópteros, aviões e homens armados atacando Khalid a mUfti et al. suas casas. Muitos pacientes precisaram de tratamento com antidepressivos, e alguns casos graves exigiram terapia eletroconvulsiva (ECT)3,4.

Na época, o sistema de saúde do Paquistão, especialmente em regiões como Peshawar, estava mal preparado para um tal influxo. Não havia instalações psiquiátricas formais nos campos, e a infraestrutura de saúde estava sobrecarregada, já que os refugiados recorriam às clínicas e hospitais da capital provincial. 3,4 Nossa resposta no Instituto Médico Pós-graduado do Lady Reading Hospital foi crucial para fornecer o apoio necessário durante esse período. Mais especificamente, no curto prazo, foi implementada uma intervenção para ajudar os pacientes a lidar com os sintomas relacionados ao estresse e trauma por meio de apoio emocional e aconselhamento prático e culturalmente sensível. Essa iniciativa foi facilitada por assistentes sociais e clérigos religiosos (Imames), que receberam uma semana de treinamento de psiquiatras do Lady Reading Hospital Peshawar em colaboração com a ONG Horizon. Essas intervenções iniciais lançaram as bases para uma resposta mais estruturada à saúde mental nos anos seguintes.


Mudanças ao longo do tempo: o cenário de saúde mental em evolução

Nas décadas seguintes, o cenário da saúde mental dos refugiados afegãos no Paquistão evoluiu em resposta às condições em mudança tanto nas comunidades de refugiados quanto na região em geral. Entre 2004 e 2014, os refugiados afegãos no Paquistão passaram de uma experiência de deslocamento agudo devido ao conflito para enfrentar o estresse crônico associado à residência de longo prazo, à medida que as taxas de migração diminuíam e as novas chegadas caíam. Essa mudança provavelmente influenciou as tendências de saúde mental observadas, pois uma comparação entre os dados de 2003-2004 e o estudo mais recente de 2014 revela mudanças significativas na prevalência de transtornos psiquiátricos. 6 Em 2004, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) era a condição mais diagnosticada, afetando mais de 60% dos refugiados. No entanto, em 2014, a prevalência de TEPT foi menor (28%), enquanto as taxas de outros transtornos psiquiátricos, particularmente transtorno depressivo maior e transtorno de ansiedade generalizada, foram mais altas (2,3 vs 4,5% e 5,4 vs 11,4%, respectivamente). O declínio do TEPT nas gerações mais novas de refugiados indica que eles podem ter vivido traumas menos intensos do que aqueles que fugiram durante o pico do conflito. No entanto, os aumentos nos níveis de ansiedade generalizada e depressão podem ser resultantes do deslocamento prolongado e das dificuldades sociais e econômicas associadas ao status de refugiado a longo prazo7.

Nossos achados também destacaram a importância de fatores demográficos, como gênero e desemprego, para prever recaídas e a deterioração da saúde mental. Mulheres, particularmente aquelas sem educação e sem emprego, estavam em risco mais elevado de problemas de saúde mental. Diferenças de gênero nas experiências de trauma dos refugiados afegãos também foram encontradas. Os homens eram mais propensos a relatar agressão física ou tortura (35,4% contra 6,5% das mulheres), enquanto as mulheres foram desproporcionalmente afetadas pelos bombardeios durante a invasão russa (42,3% contra 13,4% dos homens). Além disso, a violência doméstica foi relatada significativamente mais pelas mulheres (18,18%) do que pelos homens (2,3%), ilustrando os tipos variados de traumas vivenciados por cada gênero durante o deslocamento. Essa visão demográfica é particularmente relevante para programas de apoio a refugiados, pois enfatiza a necessidade de intervenções direcionadas que abordem tanto os desafios psicológicos quanto os socioeconômicos enfrentados pelas populações deslocadas.


Soluções inovadoras: telessaúde psiquiátrica e além

Em 2021, com o início da repatriação dos refugiados afegãos, o sistema de saúde do Paquistão se adaptou a novos desafios ao implementar programas de telessaúde psiquiátrica. Essas iniciativas forneceram apoio crítico à saúde mental aos refugiados que haviam retornado ao Afeganistão, muitos dos quais continuavam a sofrer de condições relacionadas ao trauma. Através da telessaúde psiquiátrica, os pacientes receberam consultas, gerenciamento de medicação e intervenções de crise, demonstrando que soluções inovadoras baseadas em tecnologia podem ser altamente eficazes em estender os serviços de saúde mental a populações remotas ou carentes (Mufti et al., submetido para publicação).

Esse modelo de atendimento tem um potencial significativo para outros países enfrentando crises humanitárias semelhantes. No Brasil, onde a chegada de refugiados venezuelanos e afegãos é agravada pelo deslocamento de cidadãos devido a desastres ambientais, como as inundações no Rio Grande do Sul no final de 2023 e os eventos subsequentes em abril e maio de 2024, a telessaúde psiquiátrica pode desempenhar um papel crucial no fechamento das lacunas nos serviços de saúde mental.


Lições do Paquistão: um caminho a seguir

Enquanto o Brasil lida com as consequências psicológicas do deslocamento causado por fatores políticos e ambientais, a experiência do Paquistão oferece lições valiosas. Em primeiro lugar, a natureza de longo prazo do deslocamento exige intervenções sustentadas de saúde mental. O trabalho psiquiátrico inicial com refugiados afegãos nos anos 1980 demonstrou a importância do apoio imediato à saúde mental após traumas. No entanto, os dados de 2014 revelam que o impacto psicológico do deslocamento pode persistir por décadas, exigindo cuidados contínuos.

Em segundo lugar, fatores socioeconômicos desempenham um papel crítico nos resultados da saúde mental. No caso dos refugiados afegãos, mulheres, especialmente aquelas sem educação ou emprego, foram desproporcionalmente afetadas por depressão e ansiedade. Os serviços de saúde mental no Brasil também devem focar em abordar as vulnerabilidades socioeconômicas das populações deslocadas, oferecendo apoio integrado que vá além do atendimento psiquiátrico, incluindo oportunidades educacionais e de emprego.

Por fim, o uso de telessaúde psiquiátrica no Paquistão demonstrou como a tecnologia pode superar barreiras geográficas para fornecer serviços de saúde mental a populações deslocadas. À medida que o Brasil busca oferecer apoio a refugiados e cidadãos deslocados em áreas remotas, particularmente os afetados por desastres naturais, a telessaúde psiquiátrica pode ser uma ferramenta vital para alcançar comunidades carentes e garantir cuidados contínuos.


Conclusão: uma responsabilidade compartilhada

Enquanto o Brasil lida com as consequências psicológicas do deslocamento causado por fatores políticos e ambientais, a experiência do Paquistão oferece lições valiosas. Em primeiro lugar, a natureza de longo prazo do deslocamento exige intervenções sustentadas de saúde mental. O trabalho psiquiátrico inicial com refugiados afegãos nos anos 1980 demonstrou a importância do apoio imediato à saúde mental após traumas. No entanto, os dados de 2014 revelam que o impacto psicológico do deslocamento pode persistir por décadas, exigindo cuidados contínuos.

Em segundo lugar, fatores socioeconômicos desempenham um papel crítico nos resultados da saúde mental. No caso dos refugiados afegãos, mulheres, especialmente aquelas sem educação ou emprego, foram desproporcionalmente afetadas por depressão e ansiedade. Os serviços de saúde mental no Brasil também devem focar em abordar as vulnerabilidades socioeconômicas das populações deslocadas, oferecendo apoio integrado que vá além do atendimento psiquiátrico, incluindo oportunidades educacionais e de emprego.

Por fim, o uso de telessaúde psiquiátrica no Paquistão demonstrou como a tecnologia pode superar barreiras geográficas para fornecer serviços de saúde mental a populações deslocadas. À medida que o Brasil busca oferecer apoio a refugiados e cidadãos deslocados em áreas remotas, particularmente os afetados por desastres naturais, a telessaúde psiquiátrica pode ser uma ferramenta vital para alcançar comunidades carentes e garantir cuidados contínuos.


Conclusão: uma responsabilidade compartilhada

Os desafios de saúde mental enfrentados pelas populações deslocadas são complexos e multifacetados, exigindo esforços coordenados dos governos, prestadores de serviços de saúde e organizações internacionais. A experiência do Paquistão em fornecer suporte à saúde mental para refugiados afegãos oferece valiosas percepções que podem ser benéficas para outros países enfrentando desafios semelhantes. Ao compartilhar nossa jornada, esperamos contribuir para a conversa global sobre como melhor atender às complexas necessidades de saúde mental das populações deslocadas, reconhecendo que cada contexto é único e requer abordagens personalizadas.


Referências

01. United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR). Global trends report 2023 [Internet]. Available from: https://www.unhcr.org/global-trends-report-2023. Accessed on: 6 Oct 2024.

02. Peter Ventevogel. The psychiatric epidemiological studies in Afghanistan: a critical review of literature and future directions J Pak Psych Soc Jan - Jun 2005;2(1):9-12 https://doi.org/10.1192/bjo.2023.502 Published online by Cambridge University Press

03. Mufti KA. Psychiatric problems in Afghan refugees. Bulletin of the Royal College of Psychiatrists. 1986;10(6):152-152. doi:10.1192/pb.10.6.152

04. Post-traumatic stress disorder among survivors of Afghan torture and concentration camps by Zahid Nazir, Samina Said and Khalid A. Mufti https://www.pakmedinet.com/999

05. Hassan G, de Jong JT, van der Kam S. Mental health of Afghan refugees: A study of the effects of prolonged exposure to war and violence. J Trauma Stress. 1988;1(3):345-62.

06. Mufti KA, Naeem F, Chaudry HR, Haroon A, Saifi F, Qureshi SM, Dagarwal SUR. Post-traumatic stress disorder among Afghan refugees following war. Int Psychiatry. 2007 Jan 1;4(1):7-9. PMID: 31507873; PMCID: PMC6734750.

07. Fazel M, Von Hoebel PR, Luntamo A. Psychiatric disorders among refugees in the host communities of Peshawar: A comparative study. J Refugee Stud. 2012;25(3):396-409.










aPresidente da Horizon NGO, Peshawar, Paquistão, e Vice-presidente do Pakistan Psychiatric Research Center
bPsiquiatra Consultor, Hospital Ibadat Peshawar
cDiretora de Prevenção de Invenções, Centennial Hills Hospital, Las Vegas, NV 89149, EUA
dPresidente do Pakistan Psychiatric Research Center (PPRC)

Autor correspondente
Khalid Mufiti
kamufti2001@gmail.com

Submetido em: 01/12/2024
Aceito em: 20/12/2024

 

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