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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2024; 26(1):3-7



Editorial

O que resta de futuro? Como as novas tecnologias situam-se em um contexto de crise climática

Bibiana de Moraes Diasa,b; Felipe Ornella,c

 

 

Emergências climáticas dos mais diversos tipos têm assolado cada vez mais o planeta. Em 2023, índices como temperatura, concentração de gases-estufa, derretimento de gelo marinho e aumento do nível do mar assumiram os níveis mais altos já registrados até então1. Mudanças como essas afetam, de forma direta ou indireta, o modo de vida da maior parte da população. Em um mundo cada vez mais impactado pela aceleração do tempo2, preocupações de ordem coletiva, como é o caso da crise climática, correm o risco de acabar ignoradas ou relegadas a segundo plano.

É apenas quando a crise do clima estoura a bolha do ativismo ecológico e se transforma em catástrofe ou emergência climática, dando-se a ver da forma mais calamitosa possível, que o tempo se obriga a parar de correr desenfreadamente e volta seu olhar para isso. Das enchentes no Rio Grande do Sul em maio de 20243 à morte de mais de 100 botos por conta do aumento da temperatura do Rio Tefé, na Amazônia4, Estado e comunidade entram em estado de alerta e coletivamente se dedicam a contornar esse tipo de acontecimento5, 6. Nesse sentido, questiona-se: esse fenômeno de mobilização coletiva se trata apenas de solidariedade fraternal ou é sintoma de uma sociedade que deseja voltar ao seu normal o mais rápido possível, almejando apagar qualquer resquício que "faça o tempo parar"?

Tomando o exemplo das enchentes no Rio Grande do Sul, a mobilização coletiva foi essencial para que mais de 2 milhões de afetados7 pudessem reestabelecer, de alguma forma, o cumprimento de suas necessidades básicas. No entanto, passados alguns meses da catástrofe, o tema da emergência climática já não povoa mais o debate público. A preocupação com a catástrofe climática, no âmbito do senso comum, acabou à medida em que o tema já não afeta tanto o transcorrer normal das atividades cotidianas. Apesar disso, a emergência climática permanece existindo, mas de forma um pouco menos "barulhenta".

Entende-se que, para que os desastres não aumentem em quantidade e proporção, é necessário que se pense o clima não apenas quando ele se dá a ver em forma de catástrofe, mas que a reflexão e elaboração de estratégias para o combate à crise climática seja feito a todo o tempo, permeando as mais diversas esferas de decisão 8. Nesse sentido, a anteriormente nomeada aceleração do tempo pode, de alguma forma, auxiliar: se o boom de aumento e produção desenfreada de novas tecnologias é parte do tempo acelerado em que se vive na atualidade, isso pode ser usado como tática (aos moldes do conceito do termo para Certeau, 20129) para a promoção de uma realidade que, através do uso da tecnologia, promova um freamento da crise climática, conforme proposto na última Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas)10.

Algumas iniciativas de empresas e desenvolvedores de tecnologias já pontuam a utilização da Inteligência Artificial, por exemplo, em prol do combate às mudanças e à crise climática11,12,13. Essa pode se apresentar como uma saída para que se promova uma mudança crítica e responsável na forma de pensar o desenvolvimento tecnológico, de forma que este promova uma manutenção da possibilidade de futuro. No entanto, a ação, nesse sentido, não é simples, pois para que aconteça seria necessária uma mudança também na forma de pensar e nos valores das principais big techs da atualidade.

Em 2024, um artigo na revista Forbes13 e, em dezembro de 2023, uma reportagem da CNN Brasil14, dedicaram-se a pensar sobre quais seriam as limitações da Inteligência Artificial na resolução ou apaziguamento da crise climática, levantando a questão de que o avançado sistema de aprendizado da Inteligência Artificial seria sim capaz de contribuir no freamento da mudança climática, prevendo futuros desastres, auxiliando comunidades vulneráveis através de estratégias de prevenção13, reduzindo a poluição e melhorando modelos meteorológicos14; mas que, no entanto, há uma contrapartida que deve também ser levada em conta: a emissão de grandes quantidades de gás carbônico pelos grandes modelos de Inteligência Artificial13, 14.

Alguns estudos15, 16 dedicam-se a pensar alternativas práticas que exemplificam e propõem estratégias sobre como a Inteligência Artificial pode colaborar na prevenção e durante emergências climáticas. Algumas das possibilidades apresentadas nesses trabalhos dizem respeito à mitigação de desastres, por meio de algoritmos capazes de prever eventos climáticos extremos e elaborar planos de contingência; promoção de intervenções individuais, incluindo terapias cognitivas assistidas por Inteligência Artificial e ferramentas digitais para o manejo de Transtorno do Estresse Pós Traumático (TEPT), ansiedade e depressão (patologias muito presentes em contextos pós catástrofe) e a utilização de Inteligência Artificial no âmbito governamental, como auxiliar na elaboração de políticas públicas voltadas para saúde mental e na gestão da crise 15, 16. Adicionalmente, uma revisão prévia destacou diferentes níveis de intervenção no enfrentamento dos impactos das mudanças climáticas na saúde mental, baseando-se na teoria ecológica de Bronfenbrenner, que categoriza as intervenções em quatro níveis. No microssistema, o foco está em abordagens individuais, como terapias e programas de resiliência emocional, enquanto no mesossistema, são promovidos grupos sociais e comunitários para fortalecer redes de apoio e coesão social. No exossistema, destacam-se ações que mobilizam instituições locais e a mídia para conscientização e ampliação do acesso a serviços de saúde mental, e no macrossistema, políticas públicas e reformas socioeconômicas são integradas para promover mudanças estruturais15.

Ao pensar especificamente no caso do Brasil, entende-se que o país enfrenta altas taxas de transtornos mentais17 e uma distribuição desigual de sua Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com 77% da população vivendo em áreas onde os serviços de saúde mental são inexistentes ou insuficientes, coincidindo frequentemente com as regiões mais vulneráveis18. Nessas localidades, desastres climáticos, como enchentes e secas, podem intensificar disparidades e agravar os desafios relacionados à saúde mental. No pré-evento, é comum observar ansiedade antecipatória e aumento do estresse. Durante o evento, há riscos como perda de receitas médicas e medicamentos, síndrome de abstinência em pessoas com transtornos por uso de substâncias, acesso limitado a serviços de saúde, descontinuidade de tratamentos e aumento do estresse. Após o evento, os desafios incluem o agravamento de quadros existentes e o desenvolvimento de novos transtornos mentais.

Diante desse cenário, o uso de inteligência artificial (IA) poderia ser uma solução estratégica, especialmente em um país com um sistema público e gratuito de saúde. A IA pode auxiliar no mapeamento de indivíduos com condições crônicas de saúde, incluindo transtornos mentais, que podem ser mais impactados por desastres. O cadastro no SUS (Sistema Único de Saúde) pode ser um caminho para identificar e priorizar populações vulneráveis, enquanto o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) permite mapear famílias em situação de risco social. Essas ferramentas podem possibilitar intervenções rápidas e eficazes, como fornecimento de alimentos, apoio psicossocial, acesso a abrigos e continuidade de tratamentos. A integração de dados entre SUS e SUAS, potencializada por algoritmos de IA, pode fortalecer a resposta a emergências, mitigando os impactos sociais e de saúde mental, especialmente em áreas mais vulneráveis e desassistidas.

Fato é que a pauta da crise climática é urgente e não pode mais ceder espaço no debate público. É necessário que os recursos existentes, como as novas tecnologias, sejam colocados à serviço da promoção de, ao menos, um apaziguamento das intensas mudanças climáticas que vêm sendo observadas ao redor do mundo com cada vez mais intensidade. Para além disso, se faz necessária também uma mudança na parte humana: precisamos recobrar o sentido de urgência e prioridade, para que dessa forma seja possível haver algum tipo de futuro.


Referências

01. Angelo C. Emergência climática explodiu todos os recordes em 2023, alerta agência [Internet]. OC | Observatório do Clima. 2024. Disponível em: https://www.oc.eco.br/emergencia-climatica-explodiu-todos-os-recordes-em-2023-alerta-agencia/

02. Rosa H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. São Paulo: Editora Unesp; 2019.

03. Sinimbú F. Entenda por que a catástrofe no RS é um evento climático extremo [Internet]. Agência Brasil. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/entenda-por-que-catastrofe no-rs-e-um-evento-climatico-extremo

04. Zanotti M. Na Amazônia, mais de 100 botos morrem por causa da seca extrema [Internet]. Unisinos.br. 2023. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/632882-na-amazonia-mais-de-100-botos morrem-por-causa-da-seca-extrema

05. Globo Repórter. O Brasil e a solidariedade: a impressionante capacidade de mobilização de brasileiros diante de tragédias como a do RS [Internet]. G1. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/globo-reporter/noticia/2024/05/17/o-brasil-e-a-solidariedade-a-impressionante-capacidade-de-mobilizacao-de-brasileiros-diante-de-tragedias-como-a-do-rs.ghtml

06. Agência Gov. Governo Federal mobiliza ministérios para apoio a vítimas de enchentes no RS [Internet]. Agência Gov. 2024. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202405/governo-federal mobiliza-ministerios-para-apoio-a-vitimas-de-enchentes-no-rs

07. Defesa Civil do RS. Defesa Civil atualiza balanço das enchentes no RS - 20/8 [Internet]. Portal do Estado do Rio Grande do Sul. 2024. Disponível em: https://www.estado.rs.gov.br/defesa-civil-atualiza-balanco-das-enchentes-no-rs-20-8

08. Escobar H. Emergência climática: soluções existem, mas é preciso agir agora [Internet]. Jornal da USP. 2022. Disponível em : https://jornal.usp.br/ciencias/emergencia-climatica-solucoes-existem-mas-e-preciso-agir-agora/

09. Certeau M. A invenção do cotidiano: 1, artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 2012.

10. Redação ANDI. Relatório climático da ONU: estamos a caminho do desastre, alerta Guterres - ANDI - Comunicação e Direitos [Internet]. ANDI - Comunicação e Direitos. 2022. Disponível em: https://andi.org.br/2022/04/relatorio-climatico-da-onu-estamos-a-caminho-do-desastre-alerta-guterres/

11. Haikal A. Inovações tecnológicas ajudam no combate às mudanças climáticas - SUPERA Parque [Internet]. Superaparque.com.br. 2023. Disponível em: https://superaparque.com.br/inovacoes-tecnologicas-ajudam-no-combate-as-mudancas-climaticas/

12. Futurecom Digital. Como a IA pode amenizar as mudanças climáticas? [Internet]. Futurecom Digital. 2024. Disponível em : https://digital.futurecom.com.br/artigos/como-inteligencia-artificial-pode-amenizar-mudancas-climaticas/

13. Marr B. A IA nos ajuda a resolver a crise climática (ou apenas a agrava)? [Internet]. Forbes Brasil. 2024. Disponível em : https://forbes.com.br/forbes-tech/2024/01/a-inteligencia-artificial-nos-ajudara-a-resolver-a-crise-climatica-ou-apenas-agravara/

14. Duffy C, Ramirez R. Como a inteligência artificial pode ajudar a conter mudanças climáticas [Internet]. CNN Brasil. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/como-a-inteligencia-artificial-pode-ajudar-a-conter-mudancas-climaticas/

15. Xue S, Massazza A, Akhter-Khan SC, Wray B, Husain MI, Lawrance EL. Mental health and psychosocial interventions in the context of climate change: a scoping review. npj Mental Health Research. 2024 Mar 12;3(1).

16. Bari L, Idbaïh A, Ahamed R, Tawhid Ahmed Zihan, Sharmin S, Abir Hasan Pranto, et al. Potential Use of Artificial Intelligence (AI) in Disaster Risk and Emergency Health Management: A Critical Appraisal on Environmental Health. Environmental Health Insights. 2023 Jan 1;17.

17. Kalfas A, Ferrari L, Simurda D. Global, regional, and national burden of 12 mental disorders in 204 countries and territories, 1990-2019: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2019. Kalfas A, Ferrari L, Simurda D, editors. E3S Web of Conferences. 2022;345:00001.

18. Fernandes CJ, Lima AF de, Oliveira PRS de, Santos WS dos. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cadernos de Saúde Pública. 2020;36(4).











aCentro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS - Brasil
bPrograma de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS - Brasil
cPrograma de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS - Brasil

Autor correspondente
Bibiana de Moraes Dias
bibianamdias@gmail.com

Submetido em: 01/12/2024
Aceito em: 20/12/2024

Apoio Financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

 

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