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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2024; 26(1):1-2



Editorial

Comunidade, propósito e saúde mental em tempos de crise

Anna Viduani

 

 

Rebecca Solnit, em "Um paraíso construído no inferno: as comunidades extraordinárias que surgem no desastre"1, revisita diferentes desastres americanos que remontam desde o grande terremoto que atingiu a cidade de São Francisco em 1906 até o furacão Katrina, que matou mais de 1800 norte-americanos em 2005. A escritora e ensaísta mistura o trabalho investigativo histórico com a busca por testemunhos que a ajudem a compreender o que Solnit identifica como momentos em que, frente ao impensável e à tragédia, criam-se pequenas utopias comunitárias baseadas na colaboração e no respeito mútuos.

De certa forma, seu argumento central é reconfortante: mesmo frente a desastres de proporções inimagináveis, existiria na colaboração e força comunitárias uma ferramenta poderosa para o enfrentamento coletivo das perdas e consequências materiais e psíquicas de grandes tragédias. Solnit se debruça majoritariamente no campo da "sociologia dos desastres" em seu livro, mas, curiosamente, este argumento encontra ressonância em estudos que vem demonstrando que apoio social e comunitário é um fator protetor importante em saúde mental em situações de emergência2,3.

Para autora, para além da conexão, também existem dois componentes vitais precisam surgir nestas situações: propósito e agência. Juntos, estes poderiam atuar como uma janela extraordinária para o desejo e a possibilidade social. Para autora, isto significa que "Se o paraíso agora surge no inferno, é porque, na suspensão da ordem usual e na falha da maioria dos sistemas, somos livres para viver e agir de outra maneira" ("If paradise now arises in hell, it s because in the suspension of the usual order and the failure of most systems, we are free to live and act another way" no original).

No contexto brasileiro, a sucessão de eventos e desastres climáticos que acometeram o país mais intensamente ao longo do último ano vem abrindo espaço para o testemunho de ações individuais e coletivas que permitem vislumbrar o paraíso sobre o qual Solnit escreve. Porém, os desafios que hoje enfrentamos estão longe de serem fatos isolados: as mudanças climáticas progridem em uma velocidade muito maior do que as medidas que buscam amenizá-las4.

Neste contexto, o argumento de Solnit pode ser um lembrete importante de que a utopia não passa de uma fantasia se não for sustentada coletiva e continuamente. Podemos - e devemos - aprender a partir das experiências de diferentes comunidades e culturas. Mais ainda, profissionais de saúde mental precisam estar preparados para não apenas reagir a desastres e emergências, mas pleitear que os impactos das mudanças climáticas na saúde mental sejam também pauta de políticas públicas preventivas.

Somando a estes esforços, apresentamos uma seção especial desta edição da Revista Brasileira de Psicoterapia dedicada à discussão das interfaces entre saúde mental e desastres naturais. Esperamos que os artigos aqui reunidos inspirem reflexões sobre o papel crucial dos profissionais de saúde mental na resposta às crises climáticas e no fortalecimento das comunidades diante de desastres.


Referências

01. Solnit R. A Paradise Built in Hell: The Extraordinary Communities That Arise in Disaster. New York: Penguin Press; 2010.

02. Norris FH, Stevens SP, Pfefferbaum B, Wyche KF, Pfefferbaum RL. Community resilience as a metaphor, theory, set of capacities, and strategy for disaster readiness. Am J Community Psychol. 2008 Mar;41(1-2):127-50. doi: 10.1007/s10464-007-9156-6. PMID: 18157631.

03. Ma Z, Zhou W, Deng X, Xu D. Community Disaster Resilience and Risk Perception in Earthquake-Stricken Areas of China. Disaster Med Public Health Prep. 2022 Mar 16;17:e74. doi: 10.1017/dmp.2021.342. PMID: 35293307.

04. World Meteorological Organization. Rate and impact of climate change surges dramatically in 2011-2020 [Press release]. Geneva: World Meteorological Organization; 2023 Dec 05 [cited 2024 Oct 22].










Psicóloga (UFRGS), Mestre e Doutoranda em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS)

Autor correspondente
Anna Viduani
annacandrade@hcpa.edu.br

 

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