Rev. bras. psicoter. 2023; 25(3):76-86
Cossio MD, Cataneo R, Contessa JC, Epsztein JA, Manke P, Gasparin L, et al. Características sociodemográficas, sintomatologia e mecanismos de defesas de usuários de substâncias psicoativas em psicoterapia psicanalítica. Rev. bras. psicoter. 2023;25(3):76-86
Artigo Original
Características sociodemográficas, sintomatologia e mecanismos de defesas de usuários de substâncias psicoativas em psicoterapia psicanalítica
Sociodemographic characteristics, symptomatology, and defense mechanisms of users of psychoactive substances in psychoanalytic psychotherapy
Características sociodemográficas, sintomatología y mecanismos de defensa de usuarios de sustancias psicoactivas en psicoterapia psicoanalítica
Maricéia Duarte Cossioa; Ricardo Cataneoa; Júlia Camargo Contessaa; Jéssica Aronis Epszteina; Priscila Mankea; Larissa Gasparina; Fernanda Schmidta; Carolina De Carli
Resumo
Abstract
Resumen
Introdução
As substâncias psicoativas (SPAs) são consideradas capazes de alterar as funções do sistema nervoso central (SNC), produzindo euforia ou modificando estados de consciência e vigília. Ao longo da história, a humanidade tem usado e desenvolvido diversas SPAs para diferentes fins, como analgesia, alucinação, e melhoria da memória e concentração. Contudo, o uso de substâncias lícitas e ilícitas é atualmente visto como um problema de saúde pública 1. Conforme o Relatório Mundial sobre Drogas, publicado em 2020 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), estima-se que 269 milhões de pessoas, o que representa 5,4% da população no mundo com idades entre 15-64 anos, relataram ter feito uso de drogas pelo menos uma vez em 2017. Aproximadamente 35,6 milhões delas sofriam de transtornos relacionados ao uso de substâncias. Esse dado corresponde a uma prevalência global de transtornos por uso de drogas de 0,7% nesta amostra. Ainda de acordo com o UNODC, a maior prevalência de uso de drogas é em países desenvolvidos e em pessoas com maior nível econômico. Em contraponto, os usuários socialmente e economicamente desfavorecidos têm uma maior tendência a desenvolver transtornos pelo uso de substâncias psicoativas (SPA)2.
Em 2005 foi realizada uma pesquisa brasileira para verificar a prevalência do uso de drogas, álcool, tabaco e o uso não médico de medicamentos psicotrópicos em 107 das maiores cidades do Brasil. A idade dos participantes variou entre 12 e 65 anos e os resultados mostraram que 19,4% dos entrevistados já fizeram uso de algum tipo de droga na vida3. Uma parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) promoveu uma ampla pesquisa no Brasil, em 2015, com cerca de 17 mil pessoas. O objetivo da pesquisa foi estimar e avaliar os parâmetros epidemiológicos do uso de drogas na população, incluindo a população rural, entre 12 e 65 anos, de ambos os sexos. Entre os achados, foi encontrada que a prevalência média do uso de alguma droga ilícita é maior entre homens (5,0%) do que em mulheres (1,5%). Quanto à faixa etária, o uso foi maior entre jovens de 18 a 24 anos com uma taxa de 7,4%, seguida pela faixa etária de 25 a 34 anos com um índice de 4,8%4.
Nessa direção, estudos nacionais realizados em hospitais e centros especializados no tratamento ou reabilitação de transtornos de SPA encontraram dados importantes sobre o perfil de pacientes. Em relação aos dados demográficos, a faixa etária prevalente varia entre 20 e 39 anos, sendo na maior parte composta pelo sexo masculino, solteiros e/ou separados, com escolaridade até o ensino fundamental, desempregados e com renda familiar entre um a três salários mínimos5,6,7. No que se refere aos dados clínicos, estes pacientes apresentavam, em geral, comorbidades psiquiátricas - transtornos esquizofrênicos e de humor - e clínicas, como hipertensão arterial sistêmica e complicações respiratórias, e tinham pelo menos um familiar com histórico de uso de drogas. Muitos relataram o primeiro contato com algum tipo de substância antes dos 18 anos e quase a totalidade deles faziam uso de álcool, sendo esta a droga mais comum e frequente, seguido de tabaco e crack6,8,7.
A literatura aponta que o uso de SPA é uma doença complexa que exige que o tratamento possa integrar fatores biopsicossociais, visto que acomete as diferentes camadas sociais. Há vários modelos de tratamento que podem ser propostos para este tipo de paciente como a entrevista motivacional, redução de danos, programa dos 12 passos, grupos de Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), terapia familiar e psicoterapia psicodinâmica9,10.
Atualmente, há um número maior de pesquisas sobre psicoterapia baseadas na abordagem cognitivo comportamental em comparação à psicoterapia psicodinâmica. Apesar disso, a literatura aponta que a psicoterapia psicanalítica tem muito a contribuir como uma das formas de tratamento e de conhecimento, para que haja essa integração entre as abordagens11. Uma revisão de meta-análise comparou a psicoterapia psicodinâmica com outros tratamentos de dependência de substâncias e chegaram a conclusão que as intervenções psicodinâmicas são tão eficazes quanto outras intervenções psicológicas de outras terapias12,11.
A psicoterapia de orientação psicanalítica para o tratamento do uso de SPA vem demonstrando não apenas que funciona, mas que seus resultados persistem mesmo após o término do tratamento, ou seja, que os pacientes continuam obtendo ganhos mesmo após o final do processo terapêutico13,14,15. Com o passar do tempo, o tratamento do uso de SPA nas psicoterapias de abordagem tornou-se mais amplo e flexível para atender às necessidades dos pacientes10. Dessa forma, a psicoterapia utiliza-se dos conceitos-chave da psicanálise, entre eles os mecanismos de defesas, aliada à recomendação da participação dos pacientes em grupos de Alcoólicos Anônimos e/ou Narcóticos Anônimos e acompanhamento farmacológico, quando necessário16,17.
O estudo dos mecanismos de defesa tem sido continuamente desenvolvido e aprimorado, uma vez que estes estão relacionados ao funcionamento do indivíduo, suas características de personalidade e a problemas emocionais18. Pesquisas futuras no campo da psicoterapia psicodinâmica deveriam focar mais na compreensão dos mecanismos de defesa dos pacientes e em quais deles possuem potencial de mudança dentro do processo terapêutico. Eles destacam que defesas mais adaptativas estão associadas a mudanças positivas na psicoterapia, enquanto defesas desadaptativas estão ligadas a uma pior qualidade das relações objetais e a uma maior sintomatologia. Com pacientes usuários de substâncias psicoativas (SPA), a situação não é diferente. Sabe-se que estes utilizam defesas mais imaturas, as quais estão associadas a episódios de recaída11,19.
A literatura até o momento já nos fornece alguns entendimentos sobre a compreensão do perfil dos pacientes com uso de SPA, mas a maioria deles não constituíram como foco os pacientes atendidos em clínicas de psicoterapia de orientação psicanalítica. Nesse sentido, o presente estudo buscou descrever o perfil sociodemográfico e clínico de pacientes atendidos em uma clínica de atendimento de psicoterapia de orientação psicanalítica na cidade de Porto Alegre. Como objetivos específicos, buscou-se verificar os sintomas e os mecanismos de defesas apresentados por estes pacientes, para uma melhor compreensão clínica psicodinâmica dos casos.
Método Delineamento
Foi realizado um estudo naturalístico, transversal, descritivo e retrospectivo em ambulatório de saúde mental no sul do Brasil com os prontuários de pacientes atendidos ao longo de 11 anos.
Local
Trata-se tanto de uma escola de pós-graduação em psicoterapias psicanalíticas, quanto de um ambulatório de atendimento psicoterápico. Os pacientes agendam consultas iniciais de recepção e pesquisa chamadas de triagem, as quais são realizadas por terapeutas do corpo clínico da instituição - psicólogos formados no curso de pós-graduação.
Amostra
Esse estudo incluiu 4615 pacientes adultos e idosos, idades entre 18 e 89 anos, sendo 67% do gênero feminino (n=3092) e 33% do masculino (n=1523) que realizaram consultas iniciais entre maio de 2009 e setembro de 2019. Em termos de faixa etária, apenas 4% (n=184) dos pacientes tinham acima de 60 anos, sendo a média de idade de 33,76 (DP=12,6). A maioria estava solteiro (64,3%, n=2968) e residia em Porto Alegre (84,8%, n=3915). Em relação à escolaridade, 66,7% estava cursando ou já havia concluído ensino superior (n=3078), 28,8% estava cursando ou havia concluído o ensino médio (n=1326) e 4,4% (n=202) apresentava somente ensino fundamental.
Do total destes pacientes, 34,9% (n=1610) relatou ter feito uso de alguma substância química nos últimos 30 dias e 11,15% (n=515) referiu o seu uso de substâncias psicoativas ser problemático. Em 5,6% (n=262) dos casos, familiares ou amigos próximos acreditavam que o uso de substâncias do paciente era problemático.
Instrumentos
Foram utilizados uma ficha de triagem e dois instrumentos psicométricos de autorrelato: o Sympton Check-List-90-Revised (SCL - 90 - R) e o Defense Style Questionnaire (DSQ - 40).
A ficha de triagem é um protocolo construído pela instituição e preenchido pelo psicólogo triador na primeira entrevista com o paciente. Esse roteiro busca conhecer os motivos de atendimento e as especificidades clínicas do paciente. Algumas perguntas referem-se a temas específicos avaliados no momento da triagem, sendo um deles o uso de SPA. As questões relativas a este contexto são: 1 -Nos últimos 30 dias você fez uso de alguma substância? 2 -Você acha que o uso que você faz dessa (s) substância (s) é problemático? 3 -Alguém do seu convívio acha que o uso que você faz é problemático? (familiares, amigos, professores). As variáveis de interesse utilizadas nesse estudo foram: perfil sociodemográfico, sintomas e mecanismos de defesa. Ao final da triagem, o triador realiza uma hipótese diagnóstica sobre aquele paciente.
O Sympton Check-List-90-Revised (SCL - 90 - R) é uma escala de autoavaliação composta por 90 itens de sintomas que refletem o padrão psicológico de quem é avaliado. O participante deve responder com qual frequência apresenta cada sintoma descrito preenchendo a escala de 5 pontos, que varia entre 0 e 4 (0 = nenhum pouco a 4 = muito). O instrumento avalia a psicopatologia em termos de nove dimensões primárias de sintomas: somatização, obsessividade - compulsividade, sensibilidade interpessoal, depressão, ansiedade, hostilidade, ansiedade fóbica, ideias paranoides e psicoticismo. Além de ser interpretada em nove dimensões, também avalia três índices globais de distúrbios: Índice Global de Severidade (IGS), Índice de Distúrbio de Sintomas Positivos (IDSP) e o total de Sintomas Positivos (TSP). O Índice Global de Severidade (IGS) é considerado o melhor indicador simples para avaliar o nível atual ou a intensidade de um distúrbio. Ele reúne informações tanto sobre a quantidade de sintomas relatados quanto sobre a intensidade percebida desses sintomas. Por outro lado, o Índice de Distúrbio de Sintomas Positivos (IDSP) serve como uma medida do estilo de resposta, mostrando se o respondente está exagerando ou minimizando os sintomas. O IDSP reflete o nível médio de gravidade dos sintomas relatados, funcionando assim como uma medida da intensidade dos sintomas. Ele é chamado de "positivo" porque calcula a soma dos pontos a partir do valor mínimo de um. Este instrumento foi adaptado para população brasileira e apresentou uma consistência interna de 0,73 a 0,8820.
O Defense Style Questionnaire (DSQ - 40) é um instrumento autoaplicável composto por 40 itens, que avalia 20 defesas, respondidas numa escala de frequência de 1 a 9 (1 = discordo completamente e 9 = concordo plenamente). A escala é dividida em três estilos ou fatores: F1- imaturo (projeção, agressão passiva, acting-out, isolamento, desvalorização, fantasia-autística, negação, deslocamento, dissociação, cisão, racionalização e somatização); F2 - maduro (sublimação, humor, antecipação e supressão) e F3 - neurótico (anulação, pseudoaltruísmo, idealização e formação reativa). Este visa identificar o estilo característico de como as pessoas lidam com os conflitos. Com isso, ele se propõe a detectar mecanismos de defesa utilizados pelo paciente e se eles se organizam de forma madura, imatura ou neurótica. Foi utilizada a adaptação para a população brasileira neste estudo21. Quanto aos índices de fidedignidade, o estilo imaturo revelou melhor consistência (alfa= 0,77), sendo seguido pelo estilo maduro (alfa= 0,68) e neurótico (alfa = 0,71)22. Em prova de teste e reteste de quatro meses (n=33), os coeficientes foram: 0,81 (imaturo); 0,68 (maduro) e 0,71 (neurótico)22.
Procedimentos de Coleta e Análise dos Dados
O ambulatório recebe seus pacientes através de um serviço de triagem realizado por psicólogos especialistas. Esta triagem tem como objetivo explicar o funcionamento da clínica, identificar a demanda de tratamento dos pacientes e, entre diversas perguntas realizadas, questiona-se sobre o uso de SPA. Ainda durante esse momento inicial os pacientes também respondem a questionários sociodemográficos e clínicos que são entregues pelas secretárias da clínica de acordo com protocolo estabelecido. Após essa entrevista, os pacientes são encaminhados para tratamento conforme a indicação terapêutica. Os tratamentos são realizados por alunos da pós-graduação ou psicólogos especialistas que recebem supervisão sistemática.
Para análise dos dados, foram selecionados no banco de dados somente os pacientes que relataram uso problemático de substâncias. Utilizou-se estatística descritiva com nível de significância de 5%.
Procedimentos éticos
O uso desses prontuários, para fins do presente estudo, seguiu a Resolução n. 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, que discorre sobre a ética em pesquisa na área de Ciências Humanas e Sociais. Além disso, os pacientes concordaram que os dados relativos aos atendimentos fossem utilizados para fins de ensino e pesquisa, assinando um termo de consentimento livre e esclarecido.
Resultados
No referido período (maio de 2009 a setembro de 2019), 515 dos pacientes adultos que passaram pela rotina de triagem da instituição relataram uso problemático de substâncias psicoativas. A tabela 1 mostra as características sociodemográficas e clínicas desta amostra.
Destacou-se o número semelhante de homens e mulheres que buscaram tratamento e relataram uso problemático de SPA (Homens - 50,7%, n=261 / Mulheres - 49,3%, n=254), sendo a maioria solteiro (68%, n= 350) e com ensino superior (61,3%, n=316). A faixa de renda mensal ficou entre 2 a três salários-mínimos (39,2%, n=202), seguidos por pacientes com renda entre 4 a seis salários mínimos (29,5% n=152). Verificou-se também uma maior incidência de Transtornos de Humor (afetivos) (47,8%, n=244).
Nos resultados do SCL-90, descritos na tabela 2, observa-se que há na amostra uma predominância de sintomas positivos moderadamente severos (47,8%, n=246) e bastante severos (36,5%, n=188). Estes pacientes também demonstraram, em sua maioria, um Índice Global de Severidade (IGS) pouco severo (39,8%, n=205) e moderadamente severo (39,8%, n=205).
Ressalta-se, ainda, um maior índice de Depressão (32,4%, n=167) e Obsessividade / Compulsividade (21,2%, n=109) enquanto categoria Bastante Presente na patologia destes pacientes. Na categoria Moderadamente Presente, novamente aparecem com maior frequência a Obsessividade / Compulsividade (36,5%, n=188) e a Depressão (34,0%, n=175), seguidas pela Sensibilidade Interpessoal (34,0%, n=175). E na categoria Pouco Presente as dimensões Psicotismo (45,0%, n=232) e Somatização (40,4%, n=208) tiveram maior pontuação.
Em relação aos estilos defensivos, os resultados do DSQ-40, descritos na tabela 3, demonstraram a média de pontuação destes pacientes nos itens relacionados defesas maduras (M=46,02, DP = 18,49); defesas neuróticas (M=37,52, DP = 9,833) e a defesas imaturas (M=97,72, DP = 25,121). Além disso, constatou-se que a defesa que obtive maior média foi a acting out (M=11,52, DP=6,3) e a menor média foi a defesa desvalorização (M=7,19, DP= 4,68). (Inserir Tabela 3).
Discussão
Este estudo buscou descrever o perfil sociodemográfico e clínico de pacientes atendidos em uma clínica escola, bem como verificar os sintomas e os mecanismos de defesas apresentados por estes pacientes. Destacouse que, da amostra geral de adultos que buscou psicoterapia, 11,15% relataram um uso problemático de uso de substâncias psicoativas, o que é considerado um número bem elevado se comparado com os resultados da UNODC de 2020. Apesar disso, é necessário ter cautela nessa análise, pois no presente estudo trata-se de uma amostra clínica enquanto o estudo da UNODC é com a população geral.
Observou-se um número semelhante de homens e mulheres que buscaram tratamento e relataram uso problemático de SPA. Esse dado parece diferir em alguns estudos que mostram que os homens apresentam maior risco de uso de substâncias psicoativas como o álcool23,24. Da mesma forma, no quesito escolaridade identificou-se que a maioria da população do estudo está em nível superior, resultado diferente de outros estudos que apontam que maioria tem ensino fundamental completo ou ensino médio5,7. Já semelhantemente a outros estudos5,6,7,25, percebe-se que o estado civil predominante é o solteiro. Esses dados merecem discussão e análise considerando que em diversos aspectos diferenciam-se dos demais estudos de forma geral. Talvez uma hipótese para essas diferenças seja de que na maioria das vezes o motivo de busca principal para psicoterapia não é o uso de drogas. Outro ponto que pode ter relação é com alguns aspectos da clínica, o tipo de tratamento oferecido pela clínica, não ser um local específico para atendimento de dependentes químicos e a sua localização, que é em um bairro de classe média alta da cidade. Um último aspecto relacionado pode ser o que de pessoas com ensino superior, por apresentarem maior capacidade de reflexão, consigam buscar um tratamento que abarque não somente o seu comportamento relacionado à droga, mas também aspectos que podem estar influenciando seu uso.
Os motivos que levaram esses pacientes ao tratamento relacionaram-se principalmente aos sintomas de ansiedade e depressão, observados tanto no momento da triagem, como no SCL-90. Essa característica é interessante de ser contrastada com o relato daqueles que manifestaram uso problemático de substâncias psicoativas. Parece que se trata de uma população que apresenta sofrimento emocional intenso e que talvez não esteja associando esses sintomas com o uso da substância psicoativa, sendo que a literatura aponta que o uso de álcool e drogas pode causar transtornos de humor26. Verificou-se também uma maior incidência de Transtornos de Humor (afetivos) na amostra, o que corrobora com outros estudos que encontraram comorbidade psiquiátrica em 42,3%7 e 13,4% da população estudada6. Nesse último estudo, dos 13,4% que tinham transtorno psiquiátrico, 41%, era de transtornos de humor6.
Um ponto forte desse estudo é a discussão sobre os mecanismos de defesa mais utilizados por esses pacientes, considerando que conhecer as defesas contribui no plano terapêutico e que elas estão relacionadas a diferentes diagnósticos nosológicos. O resultado de que as defesas imaturas predominassem de alguma forma era esperado, sendo que a maior média foi a de acting out o que parece ter toda relação com o uso de drogas no sentido do descontrole e "freio", considerando que o acting out é a maneira direta do indivíduo reagir a um conflito emocional através da ação. Nesse sentido, a ação substitui o pensar, refletir e a expressão dos sentimentos21. Diversos estudos apontam o uso de mecanismos de defesa imaturos por pessoas usuários de drogas27, como a negação28.
Já neste estudo foram encontradas também o uso de fantasia autística, cisão e somatização com maior média o que se diferencia de outros estudos que encontraram que o mecanismo imaturo mais utilizado seria a agressão passiva29. Em outro estudo com usuários de SPA reincidentes, apontou-se que o uso da racionalização é bastante presente e de que a desvalorização é menos utilizada por esses pacientes, o que também se apresentou nesta pesquisa30.
Quanto aos resultados relacionados às defesas maduras, são utilizadas por alguns pacientes defesas como a sublimação, antecipação e humor. A literatura aponta que indivíduos dependentes de álcool, que se utilizam de estratégias de coping orientado para a tarefa, usam mecanismos de defesa maduros, como a sublimação, com mais frequência do que aqueles que apresentam coping misto. Esse resultado é interessante devido ao possível uso de um mecanismo de defesa maduro. Esses estão focados no sucesso e no cumprimento dos compromissos assumidos. Esses também são mais propensos a adiar a gratificação, mas deve-se lembrar que, nesse grupo de participantes, essa habilidade é menor que na população geral29. Porém no presente estudo não foi avaliado estratégias de coping para poder fazer essa afirmação com relação a nossa amostra, mas pode-se pensar que os indivíduos que estão focados na tarefa podem perceber maior perspectiva de tempo futuro, e isto pode estar relacionado também ao tipo de mecanismo de defesa.
A observação e compreensão do perfil sociodemográfico e clínico, considerando tanto os sintomas presentes quanto os mecanismos de defesa em pacientes que usam de forma sistemática SPA parece ser relevante e imprescindível. A tendência dessas pessoas de gerenciar suas emoções através de mecanismos de defesa imaturos parece tornar elas ainda mais frágeis e suscetíveis às drogas. Somam-se a isso uma escalada de problemas emocionais, depressivos, de ansiedade e de hostilidade, gerando resultados ainda mais negativos na vida do sujeito. Toda essa compreensão faz-se presente e necessária no planejamento do tratamento a ser prescrito.
Considerações finais
Esta pesquisa descreveu o perfil sociodemográfico e clínico, os sintomas e os mecanismos de defesas de pacientes usuários de SPA atendidos em uma clínica de atendimento de psicoterapia de orientação psicanalítica.
Foram encontrados que estes pacientes são tanto mulheres quanto homens, solteiros e com maior nível de escolaridade. Apresentam na sua maioria transtornos de humor, sintomas depressivos e de ansiedade e hostilidade, utilizando-se de mecanismos de acting out, fantasia autística, cisão e somatização.
Esse estudo mostra-se relevante por ser desenvolvido em uma clínica de psicoterapia psicanalítica que se propõe a atender diversos tipos de dificuldades emocionais que podem acometer o sujeito. Dessa forma os pacientes aqui relatados faziam parte de uma população mais ampla que busca tratamento e que a demanda principal não era o uso de SPA.
A partir desses achados pode-se pensar em formas de melhor acolher esses pacientes e de traçar um apropriado plano de tratamento. Parece que se trata de um perfil de pessoas que apresenta dificuldades na regulação emocional, necessitando de intervenções que auxiliam no desenvolvimento de formas de enfrentamento de situações difíceis e ameaçadoras e no gerenciamento de suas emoções.
Esse estudo apresenta algumas limitações como não ter medido a quantidade e frequência do uso de SPA por cada sujeito e não ter avaliado os diagnósticos de transtornos psiquiátricos da amostra através de instrumentos psicométricos. Esses fatores deveram-se ao fato de tratar-se de uma clínica escola que atende todo tipo de população e que não tem medidas que avaliem e registrem de forma sistemática o uso de substâncias de cada paciente. Isso acaba sendo feito individualmente e de forma mais subjetiva entre terapeuta e paciente. Apesar de não terem sido utilizados instrumentos para avaliação do diagnóstico, esse era realizado por uma equipe treinada para esse fim. Sugere-se como desenvolvimento desse tema e pesquisas futuras o acompanhamento desses pacientes ao longo de seus tratamentos até o seu desfecho, podendo-se assim conhecer mais sobre aspectos: que tipo de aliança terapêutica é estabelecido se ocorre mudanças nos mecanismos de defesa com o passar do tratamento e como ocorrem os desfechos, se em comum acordo como terapeuta ou não.
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Contemporâneo: Instituto de psicanálise e Transdisciplinaridade, Departamento de Pesquisa - Porto Alegre/RS - Brasil
Autor correspondente
Fernanda Schmidt
fernandamdriemeier@gmail.com
Submetido em: 16/08/2023
Aceito em: 26/06/2024
Contribuições: Maricéia Duarte Cossio - Conceitualização, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Ricardo Cataneo - Análise estatística, Conceitualização, Redação - Preparação do original; Júlia Camargo Contessa - Conceitualização, Metodologia, Redação - Preparação do original, Visualização; Jéssica Aronis Epsztein - Conceitualização, Investigação, Redação - Preparação do original, Visualização; Priscila Manke - Análise estatística, Conceitualização, Redação - Preparação do original; Larissa Gasparin - Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação dooriginal, Redação - Revisão e Edição; Fernanda Schmidt - Análise estatística, Gerenciamento do Projeto, Redação - Revisão e Edição, Supervisão; Carolina De-Carli - Conceitualização, Redação - Preparação do original, Visualização.
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