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Rev. bras. psicoter. 2023; 25(3):5-7
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Editorial
Heróis Anônimos das Enchentes: O Peso Emocional por Trás da Capa
Simone Haucka,b
Abstract
As enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul resultaram no maior desastre climático da história do estado. Esse evento catastrófico causou inundações devastadoras que afetaram 476 das 496 cidades do estado, destruindo casas, estradas e pontes, e isolando diversas localidades. Durante o auge da crise, bairros inteiros foram submersos, exigindo evacuações imediatas, muitas vezes no meio da noite, com o auxílio de sirenes e alto-falantes. Dados do governo indicam que 2.398.255 pessoas foram diretamente afetadas (22% da população do estado), com 581.643 deslocadas de suas residências, 80.826 abrigadas, e com 82.666 pessoas e 12.503 animais resgatados1,2.
A comunidade gaúcha rapidamente se mobilizou em inúmeras iniciativas de apoio voluntário e doações, revelando resiliência e solidariedade admiráveis. A união coletiva e o apoio mútuo podem gerar senso de propósito e pertencimento, inclusive mitigando os efeitos psicológicos trazidos pela impotência vivida frente a um evento climático extremo³. No entanto, em meio a esta tragédia, um grupo em especial assumiu um papel que os colocou em contato direto com os aspectos mais terríveis trazidos pelas águas que subitamente inundaram grande parte do estado. Dezenas, possivelmente centenas, de civis enfrentaram as águas e, com os recursos que tinham (de barcos e jetskys a "canoas" improvisadas), iniciaram operações de resgate como puderam, retirando pessoas e animais de telhados e áreas completamente inundadas. Esses heróis anônimos certamente salvaram inúmeras vidas, socorrendo muitas famílias. Sem esses corajosos esforços, o número de vítimas fatais teria sido substancialmente maior, não há a menor dúvida.
No entanto, é fundamental reconhecer que nossos heróis também são pessoas e, como todos nós, enfrentam o peso emocional das difíceis escolhas que tiveram que fazer e das perdas que impactaram milhares de gaúchos. Muitos desses voluntários enfrentaram situações de risco extremo e testemunharam o sofrimento humano de maneira direta e intensa, em um contexto que reúne fatores comprovadamente associados a um risco considerável de sofrimento emocional4,5. O peso da "capa de super-herói" que muitas vezes lhes atribuímos deve ser levado em conta. Embora possam parecer invencíveis, também sofrem. Nossos "super-heróis" são seres humanos e o impacto do que viveram pode ser subestimado, inclusive por eles mesmos, tornando mais difícil o reconhecimento da necessidade e a busca por ajuda.
Dados preliminares de um estudo conduzido pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA; CAAE 80017124.7.0000.5327), em que foram avaliadas 599 pessoas, dentre as quais 87 participaram diretamente de resgates de pessoas e animais, indicam que, de fato, muitos podem estar carregando silenciosamente o peso emocional das suas experiências. Os resultados mostram níveis significativamente mais altos de ansiedade, depressão e sintomas de transtorno de estresse agudo em comparação com aqueles que não participaram dos resgates. Além disso, a participação nas operações de resgate foi associada a um risco 2,4 (IC 95%; 1,2 - 4,6) vezes maior de pensamentos suicidas, com 54% dos participantes dos resgates referindo que não tiveram ou não buscaram apoio psicológico, mas acham que precisariam⁶.
Embora sejam dados iniciais, é possível que muitos dos heróis que emergiram durante as enchentes, estejam carregando em silêncio, escondido por suas "capas", o peso do que viveram. É essencial reconhecer esse sofrimento e buscar a ajuda necessária quando os sintomas não estiverem diminuindo e quando não for possível deixar o trauma no passado e voltar a viver o presente. Suas ações foram vitais para salvar vidas, mas alguns podem precisar de ajuda para retomar as suas. A saúde mental desses indivíduos é tão crucial quanto sua bravura, e reconhecer seus sacrifícios deve incluir garantir que recebam o cuidado e o suporte necessários para uma recuperação completa. Compreender a extensão total dos danos que nosso estado sofreu levará anos, e a comunidade gaúcha precisará de muita união e resiliência para se reconstruir. Mas enquanto fazemos isso, não podemos esquecer daqueles que assumiram alguns dos papéis mais difíceis, enfrentando as águas e salvando vidas. É hora de prestar atenção em quão humanos são os anônimos heróis das enchentes.
E, também, nunca esquecer, que, em algum momento de nossas vidas, podemos ser nós esse herói que, por força de contexto e circunstância, carrega o peso de suas vivências por baixo da capa, sem perceber ou sem ter "audácia" de pedir ajuda.
Referências
01. State of Rio Grande do Sul. Bulletins on the impact of rains in RS [Internet]. Porto Alegre: State of Rio Grande do Sul; [cited 2024 Jul 20]. Available from: https://www.estado.rs.gov.br/boletins-sobre-o-impacto-das-chuvas-no-rs
02. Machado GP. Floods in south Brazil: more than an environmental crisis. The Lancet. 2024;404(10447):24-25. doi:10.1016/S0140-6736(24)01024-9
03. Diefenthaeler SM, Hartmann ML, Bassols AMS, Manfro GG, Hauck S. A letter from. Brazil. Lancet Psychiatry. Forthcoming 2024.
04. Garbern SC, Ebbeling LG, Bartels SA. A Systematic Review of Health Outcomes Among Disaster and Humanitarian Responders. Prehosp Disaster Med. 2016;31(6):635-642. doi:10.1017/S1049023X16000832. PMID: 27641075.
05. Brooks SK, Dunn R, Amlôt R, Greenberg N, Rubin GJ. Social and occupational factors associated with psychological distress and disorder among disaster responders: a systematic review. BMC Psychol. 2016;4:18. doi:10.1186/s40359-016-0120-9. PMID: 27114240; PMCID: PMC4845476.
06. Madeira Diefenthaeler S, Cacilhas A, Hartmann ML, Prates-Baldez D, Hauck S. Assessing Mental Health During an Extreme Weather Event in Southern Brazil (artigo submetido).
a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre/RS - Brasil
b Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) - Porto Alegre/RS - Brasil
Autor correspondente
Simone Hauck
hauck.simone@gmail.com
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