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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2023; 25(3):1-4



Editorial

Dos "abobados da enchente" à eco-ansiedade: a relação entre Clima e Saúde Mental

Felipe Ornella,b; Bibiana Loretoa,b; Helena Ferreira Mourac; Ana Margareth Siqueira Bassolsa; Anna Viduania, Felix Henrique Paim Kesslera,b

 

 

Desde a antiguidade, reconhece-se que as condições climáticas impactam a ocorrência e disseminação de doenças sazonais. No século V a.C., Hipócrates observou a influência das estações nas doenças e incorporou fatores climáticos em seu tratado sobre epidemias, incluindo ventos, águas e estações nos diagnósticos. Esse conhecimento ainda se reflete na linguagem médica e popular atual, que frequentemente associa determinadas doenças ao frio e ao calor, reconhecendo os efeitos do ambiente no organismo, ou seja, "de fora para dentro"1. Essa concepção, amplamente validada para doenças sazonais, foi historicamente distanciada da compreensão da saúde mental, que tradicionalmente é analisada sob uma perspectiva individual e reducionista.

A enchente de 1941 marcou um período crucial na história de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, quando o lago Guaíba atingiu 4,75 metros acima do nível normal, inundando significativa parte da cidade. Cerca de 15 mil residências foram submersas, deixando aproximadamente 70 mil dos 272 mil habitantes desabrigados, o que representou um impacto devastador. A economia local também sofreu severamente, com um terço do comércio e da indústria fechados por quase 40 dias, alterando drasticamente a vida cotidiana dos habitantes e sua saúde física e mental2.

Naquele período histórico, os transtornos mentais ainda não eram reconhecidos na Classificação Internacional de Doenças (CID), sendo incluídos apenas na sexta edição, lançada em 19483. Da mesma forma, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) só seria publicado em 19524. O estigma associado às condições de saúde mental limitava significativamente o estudo e a compreensão desses transtornos, e as medidas de suporte eram bastante restritas, disponíveis nos hospitais psiquiátricos voltados predominantemente a pacientes graves. Consequentemente, os impactos desse evento dramático na saúde mental não foram amplamente documentados pela comunidade científica. No entanto, registros históricos apontam que os efeitos na saúde mental não passaram despercebidos. De lá surgiu a expressão "abobado da enchente", usada para se referir ao comportamento atípico observado entre indivíduos impactados pela catástrofe. Relatos da época descrevem um número considerável de pessoas vagando sem rumo pelas ruas, com olhar perdido e expressão apática, alguns imóveis nas calçadas, demonstrando sinais de profunda tristeza associada à perda de moradia, recursos essenciais, e exposição a condições insalubres. Esse fenômeno, hoje compreendido como Episódio Depressivo ou Transtorno de Estresse Agudo ou Pós-Traumático, ilustra os impactos profundos da catástrofe climática na saúde mental e no comportamento dos afetados.

Nota-se que o termo "abobado" foi historicamente utilizado como sinônimo de "idiota", uma categorização clínica para se referir a um funcionamento intelectual consideravelmente inferior à média. Na nosografia de Pinel, idiotia era um transtorno psiquiátrico, da mesma forma como mania, melancolia e demência 5. Embora amplamente utilizado na época, esse conceito reflete uma visão psicofóbica das condições associadas à saúde mental. Ao longo do tempo, o termo pejorativo "abobado da enchente" passou a ser utilizado regionalmente para descrever pessoas tolas, desmotivadas, apáticas ou excessivamente carentes de atenção, refletindo a percepção social dos impactos psicológicos resultantes de eventos climáticos extremos. Assim, a expressão não apenas remete aos efeitos imediatos de uma inundação severa, mas também evidencia como eventos climáticos extremos podem deixar um impacto duradouro na saúde emocional e mental das populações afetadas.

A tragédia de 2024 adiciona um novo capítulo à história climática do Rio Grande do Sul. Com o lago Guaíba atingindo 5,33 metros, uma das enchentes mais severas registradas no Brasil afetou mais de 2,1 milhões de pessoas, resultando em 538 mil desalojados e 76 mil alojados em abrigos temporários. Mais de 100 municípios foram impactados, com mais de 77 mil pessoas resgatadas e milhares buscando refúgio em condições precárias. Esse desastre recente não apenas sublinha a intensificação dos eventos meteorológicos extremos associados à crise climática global, mas também evidencia o potencial destes acontecimentos de gerar - ou aprofundar - impactos na saúde mental de pessoas direta ou indiretamente afetadas6.

Além dos impactos diretos na saúde mental das pessoas afetadas, a tragédia de 2024 evidenciou o trauma vicário. Concebido por McCann e Pearlman (1990), esse conceito refere-se aos efeitos psicológicos adversos sofridos por indivíduos que, ao trabalhar com vítimas de trauma, são expostos repetidamente ao sofrimento alheio. Profissionais e socorristas civis estão particularmente suscetíveis a essa transformação interna, que resulta em mudanças emocionais e cognitivas, capazes de alterar sua visão de mundo, afetando percepções de segurança, confiança e intimidade. Como consequência, pode surgir uma sensação de impotência ou perda de propósito no trabalho. Além disso, sintomas semelhantes aos do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) - como pensamentos intrusivos, dormência, problemas de sono e hipervigilância - podem emergir, sendo desencadeados pela exposição indireta ao trauma. Profissionais de ajuda, como psicólogos, médicos, assistentes sociais e socorristas civis, entre outros, são particularmente vulneráveis a essa condição devido à exposição contínua a vítimas de trauma e violência10. Vale ainda destacar o papel das redes sociais e da internet. A exposição à mídia durante eventos críticos pode aprofundar manifestações de ansiedade e trauma psicológico, como observado durante a pandemia de COVID-1911. A exposição indireta por meio de vídeos e imagens divulgadas amplamente pode também contribuir para o trauma vicário.

A presença de estressores reais pode fomentar a manifestação de ansiedade e angústia, gerando preocupações mais duradouras - como é o caso de jovens adultos, cada vez mais sensíveis ao que hoje se chama de "ansiedade climática" ou "eco-ansiedade". Definida como uma forma de angústia crônica relacionada às ameaças ambientais e às mudanças climáticas, a ansiedade climática é um conceito recente. Conceitualmente, ela reflete a preocupação constante com o futuro do planeta e os impactos negativos dessas mudanças na vida humana. Os sintomas ansiosos surgem do medo e da preocupação com o futuro dos ecossistemas e da sobrevivência humana frente às mudanças climáticas. Indivíduos que sofrem de eco-ansiedade podem experimentar sentimentos de impotência, tristeza, culpa e desesperança devido à percepção dos impactos ambientais negativos e à percepção de inação ou insuficiência das medidas tomadas para mitigar esses problemas. Crianças, adolescentes e indivíduos cujos meios de subsistência estão intimamente ligados à terra apresentam maior vulnerabilidade7,8. A ansiedade climática pode ser adaptativa quando motiva ações positivas e a busca por soluções sustentáveis, mas torna-se mal-adaptativa quando é excessiva, difícil de controlar e interfere negativamente na capacidade de uma pessoa de dormir, trabalhar ou socializar7,9.

Essas catástrofes destacam não apenas a urgência de políticas e ações efetivas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, mas também a necessidade de apoio psicológico robusto para aqueles direta e indiretamente afetados por tais eventos. As lições do passado, como a enchente de 1941, e os desafios presentes, evidenciados pela tragédia de 2024, sublinham a importância de preparar e fortalecer as comunidades não apenas fisicamente, mas também emocionalmente. Investir em programas de resiliência mental e suporte psicológico/psiquiátrico, não apenas para populações diretamente afetadas, mas também para socorristas, é crucial para garantir que estejam instrumentalizados para lidar com o trauma vicário e continuar prestando serviços essenciais sem comprometer sua própria saúde mental. Somente através de uma abordagem holística que inclua prevenção, mitigação e suporte pós-crise, poderemos minimizar os impactos devastadores das catástrofes climáticas e construir uma sociedade mais resiliente e empática.


Referências

1. Microbial IoMUFo, Threats. Global Climate Change and Extreme Weather Events: Understanding the Contributions to Infectious Disease Emergence: Workshop Summary. 2008.

2. Possa TM, Collischonn W, Jardim PF, Fan FM. Hydrological-hydrodynamic simulation and analysis of the possible influence of the wind in the extraordinary flood of 1941 in Porto Alegre. RBRH. 2022-11-21;27.

3. Bertolote JM, Sartorius N. [Classifications of mental disorders: from Bertillon to ICD-10, the century of international collaboration]. Actas Luso Esp Neurol Psiquiatr Cienc Afines. 1993;21(2):39-43.

4. Surís A, Holliday R, North CS. The Evolution of the Classification of Psychiatric Disorders. Behav Sci (Basel). 2016;6(1).

5. Morris-Rosendahl DJ, Crocq M-A. Neurodevelopmental disorders-the history and future of a diagnostic concept Dialogues in Clinical Neuroscience. 2020/03;22(1).

6. Americas TLRH. Lessons from El Niño: gender-based violence must be on the agenda for future climate events. The Lancet Regional Health - Americas. 2024/06/01;34.

7. Cunsolo A, Harper SL, Minor K, Hayes K, Williams KG, Howard C. Ecological grief and anxiety: the start of a healthy response to climate change? Lancet Planet Health. 2020;4(7):e261-e3.

8. Kurth C, Pihkala P. Eco-anxiety: What it is and why it matters. Front Psychol. 2022;13:981814.

9. Clayton S. Climate anxiety: Psychological responses to climate change. J Anxiety Disord. 2020;74:102263.

10. McCann IL, Pearlman LA, McCann IL, Pearlman LA. Vicarious traumatization: A framework for understanding the psychological effects of working with victims. Journal of Traumatic Stress 1990 3:1. 1990/01;3(1).

11. Liu C, Liu Y. Media Exposure and Anxiety during COVID-19: The Mediation Effect of Media Vicarious Traumatization. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(13).










a Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Porto Alegre/RS - Brasil
b Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas, Hospital de Clínicas de Porto Alegre / Universidade
c Federal do Rio Grande do Sul - Porto Alegre/RS - Brasil. Universidade de Brasília, Departamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina - Brasília/DF - Brasil

Autor correspondente

Felipe Ornell
fornell@hcpa.edu.br

 

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