Rev. bras. psicoter. 2023; 25(2):103-119
Scotton IL, Neufeld CB. Competências do psicoterapeuta de grupos: uma revisão narrativa. Rev. bras. psicoter. 2023;25(2):103-119
Artigo de Revisao
Competências do psicoterapeuta de grupos: uma revisão narrativa
Competencies of group psychotherapists: a narrative review
Competencias de los psicoterapeutas de grupo: una revisión narrativa
Isabela Lamante Scotton; Carmem Beatriz Neufeld
Resumo
Abstract
Resumen
Introdução
A terapia de grupos tem se mostrado efetiva para tratar uma ampla gama de problemas interpessoais e populações clínicas e por isso, nos últimos anos, observa-se um uso crescente de grupos estruturados e focados em tópicos em várias áreas da saúde e ambientes sociais1,2,3. Existem evidências de que a terapia de grupos é tão efetiva quanto a terapia individual4,5, e que pode oferecer benefícios não disponíveis em terapias individuais2. Além disso, é uma modalidade de tratamento já bem estabelecida e estruturada para vários contextos, e pode se tornar ainda mais comumente implementada, devido à sua relação custo-benefício6.
Este movimento em direção a uma Psicologia Baseada em Evidências (PBE) iniciou-se na década de 1990, com uma iniciativa dos governos e organizações profissionais da América do Norte e Reino Unido em direção à identificação de tratamentos sustentados empiricamente. Nesse sentido, a terapia cognitivo-comportamental (TCC) foi uma abordagem bastante favorecida, pois dispõe de amplas evidências como intervenção eficaz para diversos problemas de saúde mental, possuindo uma forte base empírica7 .
Embora a TCC tenha ganhado notoriedade na prática clínica pela modalidade individual, desde seus modelos mais iniciais esta já apresentava protocolos para intervenções em grupo. Naquele momento, a preocupação se voltava para o acesso simultâneo de um maior número de indivíduos ao tratamento por um único terapeuta e, assim como na modalidade individual, as primeiras intervenções em TCC em grupos (TCCG) foram realizadas com pacientes deprimidos, expandindo-se posteriormente para outros transtornos mentais2,6.
A partir da década de 1970, diversos estudos foram desenvolvidos a fim de avaliar a eficácia da TCCG e, com o passar do tempo, os serviços de saúde públicos e privados começaram a considerar cada vez mais a eficiência, a eficácia e a efetividade dos tratamentos como critérios determinantes na escolha de sua modalidade. Atualmente, estão disponíveis diversos protocolos de tratamento em grupo para os mais variados transtornos já testados quanto à sua eficácia, e pesquisas continuam sendo desenvolvidas a fim de avançar no desenvolvimento de recursos e na efetividade dos resultados2,6.
A TCCG possui aspectos técnicos e aspectos relacionados ao processo grupal. Os aspectos técnicos se referem a todas as estratégias adotadas pelo arcabouço teórico da TCC para atingir o objetivo do grupo, como modificações cognitivas, comportamentais e emocionais8. Nesse ponto, a TCCG diferencia-se das outras intervenções de terapia grupal, que se concentram principalmente nos processos de grupo como um meio de mudança9. Já o processo caracteriza-se pelo conjunto de fatores que resultam das interações entre os membros do grupo e o(s) terapeuta(s) e da condução da terapia em formato grupal, que influenciarão no desfecho da intervenção6,8.
Apesar de os aspectos do processo grupal serem considerados desde o início da TCCG, durante muito tempo, boa parte da prática vigente resultava em uma reprodução da TCC individual apenas; ou seja, as estratégias terapêuticas, técnicas e procedimentos que foram desenvolvidos para o uso com um paciente poderia ser puramente traduzido e aplicado em um contexto grupal, negligenciando os aspectos de processo. Essa característica de reprodução de protocolos individuais, apesar de ter sofrido algumas modificações ao longo dos anos, ainda continua presente em algumas intervenções6.
Entretanto, é fundamental destacar que esses pressupostos técnicos, teóricos e práticos, mesmo eficazes nas intervenções individuais, devem ser associados aos fatores do processo grupal, ou seja, deve-se partir da premissa básica de que o grupo em TCC é um sistema no qual são distribuídas e aplicadas técnicas específicas e, como um sistema, cada grupo reagirá de forma única à aplicação das técnicas2,6,10. Bieling et al. 6 ressaltam que embora as evidências empíricas sobre o processo grupal em TCC sejam escassas, os dados disponíveis indicam que tais fatores predizem a melhora dos participantes e que são considerados importantes por eles.
O aumento da procura pela terapia de grupos, bem como o crescimento da PBE, têm demandado que os programas de treinamento incorporem mais tratamentos deste tipo em seus currículos7,11 e endossaram a necessidade de treinamento e prática nestas terapias nas instituições de ensino e formação7. Entretanto, uma revisão recente12 apontou que, apesar de cada vez mais profissionais serem treinados, pouca atenção ainda é dada na literatura científica à preparação dos terapeutas que realizarão as intervenções estudadas.
Segundo alguns autores11,12,13, a formação dos terapeutas representa um dos principais desafios na TCC, e argumentam que, na ausência de um "padrão-ouro" para treinar os terapeutas, é provável que exista uma grande variação na qualidade das intervenções oferecidas. Tais intervenções, quando adotadas na prática diária, são realizadas com pouca fidelidade ao modelo terapêutico, resultando em efeitos do tratamento menores do que em ensaios clínicos nos quais foram testadas.
Além disso, embora existam achados inconsistentes e controvérsias na literatura, as evidências existentes sugerem amplamente que a alta competência do terapeuta está relacionada com os melhores resultados da intervenção e com uma baixa evasão do paciente. Isso significa que uma das principais estratégias para transferir os resultados de estudos de eficácia para configurações diárias é garantir níveis adequados de adesão do terapeuta e competência na entrega do modelo terapêutico. Isso implica, portanto, em investir na formação e treinamento dos terapeutas14,15.
Organizações profissionais internacionais atualmente disponibilizam diversas diretrizes e recomendações de práticas e treinamento úteis. Entretanto, estas ainda não foram explicitamente integrados a uma estrutura sistemática baseada em competências nos programas de treinamento em psicologia5. Ademais, no Brasil, a preocupação com o estudo desta temática e com a prática baseada em evidências é ainda muito incipiente. Apesar de existirem alguns poucos trabalhos que se propuseram a estudar sobre quais são as competências necessárias ao terapeuta16,17,18, as pesquisas sobre competências do terapeuta de grupos são ainda mais escassas19.
A partir do que foi exposto, o presente trabalho possui como objetivo fomentar a reflexão acerca das competências do terapeuta de grupos, levando em consideração a importância do investimento na formação dos terapeutas e do seu impacto nos resultados das intervenções.
Método
Uma vez que há uma escassez na literatura e uma lacuna de pesquisas empíricas sobre a temática, este trabalho foi baseado em uma perspectiva narrativa. Os artigos de revisão narrativa permitem publicações amplas, que visam discutir o desenvolvimento de um determinado assunto, de forma teórica ou contextual. Fundamentam-se na análise da literatura publicada em livros, artigos, teses ou outras publicações, em que a busca de material ocorre de forma assistemática, mas proporciona um direcionamento inicial explanatório, viabilizando ao pesquisador a elaboração de ensaios que favorecem a contextualização, problematização e uma primeira validação do quadro teórico do tema em questão20,21.
Para tanto, foi realizada uma busca nas seguintes bases de dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Scientific Electronic Library Online (SciELO), Periódicos Eletrônicos de Psicologia (Pepsic) e PsycINFO. As palavras-chave utilizadas foram "competência/competências" OR "habilidade/habilidades" AND "psicoterapia de grupos" OR "psicoterapeuta de grupos" e suas correspondências em inglês e espanhol. Esses foram definidos com base no objetivo do estudo e a partir das sugestões da base de descritores BVS-Saúde (https://decs.bvsalud.org/). Esta foi uma busca inicial que norteou novas buscas em outros materiais, como sites, livros e capítulos de livro e documentos virtuais, a partir das referências citadas nos artigos.
Foram adotados como critérios de inclusão trabalhos que contemplassem as competências do terapeuta como um todo (de forma ateórica, independentemente de abordagens terapêuticas), e que discorresse mais especificamente as competências do terapeuta cognitivo-comportamental. Além disso, dada a escassez de publicações, foram incluídos também neste estudo trabalhos que abordassem competências do terapeuta também na modalidade individual, pois entende-se que poderiam constituir as bases para as competências na modalidade grupal9,10. Foram excluídos trabalhos que abordassem competências exclusivamente dos terapeutas de outras abordagens teóricas, bem como trabalhos que abarcassem competências do psicólogo que não atua na área clínica.
Não foi definido um recorte temporal, uma vez que se buscou publicações que ilustrassem o movimento da busca por competências desde o início. Foram selecionados um total de 16 referências de interesse no tema, dentre artigos, documentos e sites.
A partir do que foi encontrado, a próxima seção do artigo foi organizada em dois subtópicos: 1) breve histórico do movimento em direção às competências e as principais diretrizes; e 2) as principais organizações de terapia de grupo e as competências do terapeuta de grupos. Cada um deles será apresentado e discutido a seguir.
Resultados Breve histórico do movimento em direção às competências e as principais diretrizes
Como citado previamente, o movimento em direção a uma definição das competências deu-se num primeiro momento notadamente nos Estados Unidos e no Reino Unido. Uma vez que a sociedade começou a enfatizar cada vez mais a prestação de contas pelos serviços prestados, houve uma atenção crescente correspondente à competência daqueles que prestam serviços psicológicos à população22.
No Reino Unido, o governo britânico lançou uma iniciativa em larga escala pela busca de competências dos terapeutas de diversas abordagens. O Instituto Nacional de Saúde de Excelência Clínica (National Institute of Health and Clinical Excellence - NICE), em 2004, financiou uma série de revisões sistemáticas acerca dos tratamentos psicológicos, gerando orientações para a prática clínica, e apoiou a intervenção psicológica baseada em evidências. Nessa época, foi criado um programa denominado Programa de Acesso às Terapias Psicológicas (Improving Access to Psychological Therapies - IAPT), com dois intuitos: aumentar o acesso da população à psicoterapia e identificar terapias que tivessem bases em evidências23. Para tanto, Roth e Pilling24, em parceria com a IAPT, publicaram uma diretriz delineando as principais competências necessárias para oferecer a TCC eficaz, agrupadas em cinco domínios: competências terapêuticas genéricas, competências básicas em TCC, técnicas específicas de TCC, competências específicas de problemas e metacompetências.
Ainda no Reino Unido, destacou-se o modelo de competências de Bennet-Levy25, denominado modelo DPR (Declarativo-Processual-Reflexivo), que, diferentemente do modelo de Roth e Pilling, não é unicamente focado na TCC. O sistema declarativo consiste no conhecimento de informações factuais, por exemplo, entender o modelo cognitivo do transtorno do pânico ou saber que empatia, calor e genuinidade são habilidades essenciais para a maioria das formas de terapia. Normalmente, o conhecimento declarativo é aprendido didaticamente por meio de aulas, palestras, aprendizado observacional, supervisão ou tarefas de leitura25.
No entanto, segundo o autor, essas abordagens de treinamento podem produzir "conhecimento inerte" que falha na transferência para habilidades práticas (processuais) no mundo real, a menos que complementadas por outras estratégias (por exemplo, dramatização, modelagem, modelação, prática em contextos clínicos, supervisão). O sistema processual consiste, portanto, no conhecimento de "como fazer" e "quando fazer" - regras, planos e procedimentos - que leva à aplicação direta de habilidades25.
Uma vez que as habilidades básicas são aprendidas, o sistema reflexivo permite que os profissionais discirnam em que contexto, sob quais condições e com quais pessoas estratégias específicas podem ser úteis. Essencialmente, a autorreflexão é uma habilidade metacognitiva, que engloba a observação, interpretação e avaliação dos próprios pensamentos, emoções e ações e seus resultados. Os terapeutas aplicam os mesmos processos para refletir sobre as experiências do paciente25,26.
No mesmo período, nos Estados Unidos, uma nova iniciativa de competência profissional encabeçada pela American Psychological Association (APA) estimulou movimentos paralelos de forças-tarefa entre especialidades na prática de psicologia profissional, resultando, entre outros, na formação do Conselho de Especialidades em Psicologia Profissional (CoS) 27. Este conselho é uma associação sem fins lucrativos, inicialmente patrocinada pela APA e pelo Conselho Americano de Psicologia Profissional (ABPP), para representar e apoiar o desenvolvimento e o funcionamento de especialidades reconhecidas em Psicologia Profissional (https://www.cospp.org/).
Nesse sentido, Rodolfa e colaboradores28 apresentaram uma estrutura conceitual para o treinamento em psicologia profissional focada no construto de competência tridimensional: O "Cubo de Rodolfa". Este delineia os domínios de conhecimento, habilidades, atitudes e valores que servem de base necessária a todos os psicólogos, os domínios de competências funcionais que definem amplamente o que os psicólogos fazem e os estágios de desenvolvimento profissional de todos os psicólogos, desde o doutorado (nos EUA, nível a partir do qual os psicólogos podem iniciar a prática clínica) até a aprendizagem ao longo da vida através da educação continuada. O objetivo na apresentação deste modelo é fornecer um quadro de referência conceitual para os responsáveis pela educação em psicologia, credenciamento e regulamentação28. A Figura 1 resume este modelo:
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